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Quando estava saindo, ela me chamou do banheiro e me lembrou que teríamos consulta com o Dr. Galeano ainda hoje por volta das 16:00. Ainda hoje saberíamos se a saúde física dela estava em ordem, porque nossa saúde mental estava a toda velocidade.
No almoço uma intensa troca de olhares e sorrisos pode ser notada pela nossa filha mais velha que não se conteve e disse:
- Credo, gente! Parece que você nem dormem juntos…
Rimos da observação e continuamos nossa refeição. Logo após, preparadas as meninas para a escola, fiz questão de levá-las, pois voltaria ao escritório até a proximidade da consulta com o Dr. Galeano. O trabalho fluiu que foi uma beleza! Impressionante o que podemos realizar quando trabalhamos mais relaxados. Próximo ao horário, fui buscar Nanda que já me esperava. Vestia o mesmo vestido de antes do almoço, mas agora usava uma sandália mais discreta (quero dizer, mais "senhora"), uma maquiagem suave e um batom pouco mais escuro que o tom de seus lábios. Por fim, emoldurava seu rosto um lindo e suave sorriso.
Ao entrar no carro, tive a impressão de ver, através de um facho da luz do sol que ousou atravessar seu vestido, que ela estava sem calcinha. Não me aguentei e perguntei:
- Nanda, você está indo no médico sem calcinha?
- Credo, Mark! Como você pode pensar isso de mim!? Quem você pensa que eu sou, uma puta dessas de rua que fica se exibindo para qualquer um? - Respondeu, claramente simulando.
- E a resposta é… - Insisti.
- Claro, né. - Rebateu.
Eu tinha certeza que ela estava sem, mas preferi não discutir, porque já não sabia mais o que se passava na cabeça daquela criatura, mas resolvi cutucar enquanto pegávamos o caminho do consultório:
- É que safada do jeito que você anda, vai acabar molhando seu vestido a qualquer momento...
- Até parece… - Me respondeu, mas não pode evitar de olhar para baixo e, com as mãos, analisar melhor o vestido.
- Eu sabia. - Falei e comecei a rir.
- Ah, vá… - Começou a rir também.
- Então, quer dizer que você é como essas “putas de rua”? - Brinquei.
- Sou! Para meu marido, eu sou sempre que ele quiser. - Disse passando a mão em minha perna, mas advertindo: - E se eu puder, é claro…
- Só para mim? - Perguntei, correndo minha mão pela sua perna e notando que os pelinhos de seu braços se arrepiaram.
- Bom. Sabe como é que é, né!? Se você deixar… - Falou dando uma gostosa risada.
Rimos e voltamos a conversar amenidades do dia a dia enquanto a viagem se desenvolvia, mas logo a conversa descambou para o sexo novamente:
- Nanda, o que você quis dizer com não fez nem um décimo do que queria comigo? - Perguntei.
- “Mor” esse negócio de sadomasoquismo e imobilização é de outro mundo. Tem cada coisa. Tem umas coisinhas que eu quero fazer contigo mesmo, mas vou deixar para depois que estiver tudo bem comigo, porque quero fazer a gente aproveitar o máximo...
- Olha lá, hein!? Confio em você, mas também tenho meus limites. Bumbum em que mamãe passou talquinho está fechado permanentemente para uso particular. - Falei, rindo.
- É!? Nem um dedinho, um fiozinho terra? - Perguntou sorrindo e me encarando.
- Nem vem, Nanda! Eu só tenho polo positivo. Eu só descarrego, não recebo carga. Não sei se está me entendendo?...
- Credo! Que homem mais careta!...
- Careta! Eu!? Olha o tanto de coisa que a gente já fez. Você não pode me chamar de careta... - Disse, indignado.
- Vamos ver… - Disse ela, tentando encerrar o assunto.
- Vamos ver nada! - Isso não vai rolar: “Vade mecum”, “vade mecum”, pra você! Já estou falando agora pra valer para o futuro.
- Tá, mas tem um monte de coisa que eu ainda quero fazer contigo, mas não vou te contar senão é capaz de você começar a me regular. - Disse gargalhando: - Tem cada coisa…
- Nanda!... - Disse, a advertindo.
Ela chorava de tanto rir da minha preocupação. Voltamos a falar amenidades e logo eu estava estacionado próximo ao consultório do Dr. Galeano. Subimos até sua antessala de mãos dadas e assim chegamos até a mesa de sua atendente que nos recebeu com um sorriso no rosto, tamanha era nossa felicidade. Quinze minutos depois o doutor Galeano nos recebia em sua sala:
- Fernanda, Mark, que imenso prazer vê-los assim tão bem e felizes. - Disse, com um imenso sorriso no rosto enquanto nos dava um abraço: - Isso é realmente ótimo!
- Como vai, doutor? É bom te ver também. - Respondi, seguido pela Nanda.
- Sentem-se, vamos conversar um pouco. Mas, antes de qualquer coisa, gosto de começar por um assunto importante… - Fez uma breve pausa e nos encarou.
Nanda arregalou os olhos já esperando pelo pior e eu fechei o sorriso no mesmo momento, também temeroso:
- Fala, doutor. Sem rodeios… - Pedi.
- Café, gente. Só ia perguntar se me acompanham num cafezinho? - Disse, rindo.
- Ô, doutor. O senhor me mata do coração. - Disse Nanda, respirando aliviada.
Aceitamos o café e ele se dirigiu a mesinha para fazer aquele mesmo ritual. Ligar a máquina, aguardar o aquecimento, definir qual o café pretendido, preparar e servi-lo. Feito tudo isso, sentou-se à nossa frente:
- Bem, e vocês? Me falem como têm passado? - Pediu.
- Doutor, eu queria saber dos exames? Ficaram prontos? - Perguntou Nanda.
- Calma, Fernanda. Há tempo para tudo… - Respondeu.
- Doutor, por favor. Por melhores que estejam sendo nossos dias, eu estou angustiada demais. Isso está me corroendo por dentro… - Ela insistiu.
- Tudo bem. Posso apresentar os resultados na frente do Mark? - Perguntou.
- Que pergunta é essa, doutor? Ele é meu marido, tem todo o direito de estar aqui junto comigo. - Disse e seus olhos começaram a marejar: - É tão ruim assim?
- Calma, Fernanda. Calma. - Disse se antecipando ao choro iminente dela: - As notícias são ótimas. Todos os resultados deram negativo.
Nanda começou a chorar:
- Nanda, que é isso? A notícia é boa! - Falei para acalmá-la.
- Eu sei. É de felicidade. - Disse e voltou a chorar como uma criança.
Comecei a rir e o doutor Galeano também, que continuou:
- Houve só uma pequena variação na sua flora vaginal, mas conversando com minha filha ela disse que essa variação pode ser de cunho emocional. Nada para se preocupar.
- Isso tudo é ótimo, doutor! Vida normal agora? - Perguntei no calor da emoção, me esquecendo que os exames ainda teriam que ser repetidos.
- Infelizmente, ainda não, Mark. Daqui um mês aproximadamente ela terá que repetir os exames para gonorreia, clamídia, HPV, sífilis e hepatite, depois o de HIV com noventa dias e, por fim, os de sífilis, hepatite e HIV com seis meses.
- É. Eu tinha me esquecido… - Falei.
- Mas não desanimem. Normalmente, os próximos só irão confirmar os resultados destes. Fiquem tranquilos e já podem comemorar. Já venceram mais uma batalha.
Nanda nessa altura já tinha parado de chorar e sua expressão já era de preocupação:
- Quer compartilhar alguma coisa, Fernanda? - Perguntou o doutor Galeano.
- Poxa, doutor, mais seis meses de dúvidas. Eu não sei se dou conta… - Disse, agora desanimada.
- Fernanda, é claro que dá. Eu até estava pensando em receitar um remédio para ajudar a controlar uma eventual ansiedade, mas depois que os vi chegando de mãos dadas e felizes, acho que não será necessário. Vocês só precisam um do outro. Simples assim…
- E como eu seguro ele por seis meses, doutor? - Perguntou, apontando para mim.
- Qual é, Nanda!? - Falei.
- Qual é nada, Mark! Você já até tentou colocar a boca e se eu não tivesse te parado, teria ido mais fundo. - Falou, com uma seriedade desnecessária.
- Fernanda… Preservativo resolve isso, minha cara. Use sem medo… - Falou o doutor Galeano como se tivesse falando com uma criança.
- Mas ela pode rasgar. E se ela arrebentar e, eu estiver doente, ele também pode ficar. Eu não posso correr o risco de estar com AIDS e passar isso pro meu marido, doutor. - Disse e depois de uma breve pausa, continuou: - As outras eu sei que tem tratamento, mas a AIDS não. Não posso deixar minhas filhas órfãs de pai e mãe.
Por mais que eu quisesse ajudá-la, fiquei sem palavras naquela hora e preferi deixar que o doutor Galeano a amparasse:
- Sua preocupação é legítima, Fernanda, mas desnecessária. A qualidade dos preservativos atualmente no mercado é muitíssimo boa. Seu risco é mínimo. Pessoalmente eu indicaria marcas mais tradicionais, que já tem um bom tempo de mercado, para tranquilizá-la ainda mais… - Disse.
- Ainda assim eu não confio, doutor…
- Olha, li certa vez que existe um trabalho sendo realizado na Universidade de Utah para desenvolvimento de uma espécie de preservativo em gel, que funcionaria como uma camisinha líquida para proteção contra gravidez e infecções, mas, que eu saiba, ainda não está no mercado. - Tomou um gole de seu café e continuou: - O que posso te orientar a fazer, seria utilizar um preservativo de tradição, aliado com gel espermicida e lubrificante à base de água para torná-lo ainda mais seguro. Mas te digo de antemão que um risco mínimo sempre haverá.
- Você ouviu, Mark. Tem risco! Então é "não" até o último exame. - Disse para mim.
- Nanda o que ouvi o doutor falar é que o risco é mínimo, quase inexistente. Para e pensa: em todos esses anos juntos, quantas vezes você viu um preservativo rasgar? Acho que nunca.
- Já sim. Com um consolo nosso. - Se tocou que o doutor estava na sala: - Desculpe, doutor. Saiu sem querer.
- Está tudo bem, Fernanda. Também uso uns brinquedinhos com minha esposa. Isso é bem normal hoje em dia. - Respondeu.
- Se tem risco, eu não quero! - Disse, se fechando.
Vendo que aquilo poderia descambar para uma discussão, preferi o papel do apaziguador:
- Tudo bem. A gente pesquisa melhor na internet com calma e se encontrar alguma marca que te passe segurança, a gente pode tentar.
- Não, Mark! Ponto final. - Disse.
- Tudo bem, então… - Falei, me recostando na poltrona, desanimado com a resistência dela.
Ficamos ali um tempinho em silêncio. Eu recostado na poltrona, olhando para tudo e para o nada, e ela na poltrona dela, de pernas e braços cruzados, balançando o pezinho superior, numa clara demonstração de incômodo. O doutor Galeano, experiente, vendo o bloqueio dela naquele momento, não mais insistiu e passou a fazer outras perguntas periféricas:
- Mas me falem de vocês. Têm conversado bastante?
- Sim, doutor. Vida tem que seguir, não é!? - Falei.
- É. A gente até que conversa bem, doutor.
- Sexo, pelo que eu entendi, suponho que ainda não… - Falou, como que perguntando.
- Então… - Comecei a falar, mas acabei caindo na risada.
- Mark, para!. - Disse, já rindo também.
- Doutor, vamos dizer que a gente esteja trabalhando e desenvolvendo muito bem o quesito “preliminares”... - Disse, entre risos enquanto me lembrava do ocorrido na manhã: - Só não estamos chegando nos “finalmentes”, se é que me entende!?
- Isso é bom. Algo como se fosse o começo de namoro, certo? - Insistiu ele.
- Um pouquinho depois do começo, dou…
- Mark, para. Eu tenho vergonha… - Disse ela me interrompendo.
- Nanda, para de frescura. Ele é nosso terapeuta. Está nos ajudando a superar problemas emocionais que tem relação, direta ou não, a um fato sexual. - Eu disse, só parando para tomar um gole de café: - Qual o problema dele saber que você me fez um ou dois boquetes?
Ela me encarou com olhos arregalados e baixou a cabeça. Estava roxa de vergonha. Ficou assim um tempinho e já emendou:
- Deixa… Você vai ver quando eu te aliviarei novamente. Você me paga!
- Que foi? - Perguntei, sem entender mesmo se tinha dado uma mancada.
- Fernanda, não há qualquer motivo para vergonha. Tudo o que falam aqui, fica aqui. Além do mais vocês são adultos, casados, se amam, é normal quererem aproveitar sua intimidade juntos. O que vocês fazem e como fazem só cabe a vocês decidirem. - Falou doutor Galeano.
- Viu!? - Eu falei pra ela.
- Vi! E você também vai ver...
- Credo, Nanda. Pior é que depois de hoje, dá até para eu ficar com medo mesmo… - Disse e ri novamente.
- Mark! Se você ousar falar, eu vou brigar com você de verdade. Não brinca comigo! - Disse, rangendo os dentes.
- Fica tranquila. Esse segredo é só nosso. - Disse, lhe piscando um olho.
- É bom mesmo…
- Mas e a respeito das conversas entre vocês. - Insistiu o doutor Galeano: - Chegaram a conversar sobre o que nós conversamos aqui? Ficou alguma questão ainda mal resolvida?
Olhamo-nos nesse momento e acho que nós dois ficamos relembrando tudo o que fora dito naquela sessão. Nanda se adiantou:
- Doutor, eu acho que não. Eu acho que entendi as dúvidas e medos dele. Talvez a única coisa que ainda me incomode é um temor de que ele possa ainda estar pensando em se vingar do Brunão e daqueles outros lá…
- Entendo. Mark, e você? - Insistiu.
Nesse momento, eu ainda estava relembrando todas as informações e tentando encontrar as melhores palavras para não correr o risco de ofendê-la:
- Mark! - Insistiu, uma vez mais, o doutor Galeano: - Porque não compartilha conosco seus pensamentos.
- “Eles” ainda estão um pouco confusos, doutor. Estou tentando procurar a melhor forma de falar. - Respondi: - Acho que prefiro não falar nada agora.
- Mark, fala! Fala qualquer coisa. Talvez se você acabar com todas as suas dúvidas, você esqueça esse negócio de vingança. - Nanda falou.
- Ela tem razão, Mark. O desejo de vingança nasce com a dor, mas é a culpa e a incerteza que a fazem crescer. Não tenha medo de se abrir. Ela está te dando essa liberdade. - Insistiu Galeano.
Eles me encaravam e realmente eu estava engasgado desde aquela sessão em que praticamente vomitamos nossas dúvidas e verdades um no outro. Mas estávamos trilhando um caminho legal, sem percalços aparentes, e eu tinha medo de ofendê-la se perguntasse o que queria saber. Nesse momento, a providência divina se fez presente em nossas vidas novamente e ouvimos três batidas na porta e então ela se abriu revelando a face da doutora Camila:
- Pai, me desculpa entrar assim sem ser anunciada, mas a Geralda não está na recepção e eu preci… - Parou por um momento quando nos viu e disse: - E eu precisava falar com você mesma, Fernanda.
Dito isso, ela entrou na sala, cumprimentou-nos e continuou:
- Não sei se meu pai já te adiantou os resultados, mas está tudo indo muito bem. Só houve uma pequena variação de sua flora vaginal, mas nada para se preocupar. Dá um pulinho na minha sala depois que te explicarei o que fazer, mas fica tranquila que é uma besteirinha de se resolver.
- Ah, vou sim, doutora. Só terminarmos aqui que desço lá.
O doutor Galeano, macaco velho, viu uma oportunidade e não quis desperdiçá-la:
- Camila, sei que você está com a agenda lotada. Então, porque não pega a Fernanda e a leva agora. Assim, você já resolve a situação dela enquanto faço companhia pro Mark. - E a encarou com uma expressão que não consegui identificar na hora, mas hoje tenho certeza ser algum combinado entre eles para que ela retirasse minha esposa.
- Uai, pai, por mim pode ser. Vem Fernanda. É rapidinho… - Disse, já estendendo a mão para Nanda.
- Mas… Mas doutor, a gente não estava no meio de uma questão? - Perguntou Nanda, indicando minha direção.
- Fica tranquila. A gente vai te esperar. E assim a Camila resolve sua situação e você não fica dependendo de aguardá-la atender seus demais pacientes. - Justificou, levantando-se para acompanhá-las até a porta.
Assim que fechou a porta, voltou-se a se sentar a minha frente e falou:
- Vamos lá, Mark. Eu sei que você quer falar, mas está com medo dela se ofender ou de atrapalhar na sua recuperação. Fala para mim e eu vou encontrar uma forma suave de trazer esse assunto à tona.
- Doutor, eu não sei se realmente é necessário tocarmos nesse assunto…
- Eu até imagino o que seja, mas seria muito melhor você enfrentar esse seu temor por iniciativa própria. Fala comigo, rapaz. Põe pra fora.
Depois de um pouco pensar, resolvi me abrir:
- Certo, doutor. Naquele dia eu falei um monte e ela também. Entretanto, algumas contradições sobre o que ela me contou no dia e no que ela contou aqui me deixaram um pouco cismado. - Comecei a falar.
- Continue. - Pediu me olhando nos olhos.
- Por exemplo, para mim ela disse que teria sido forçada a fazer sexo oral nos dois cabeludos. Aqui ela disse que um a forçou e que no outro fez por vontade própria… Falei.
Ele somente balançou a cabeça positivamente, ouvindo o que eu dizia:
- Depois, para mim ela havia falado que fora presa por um dos cabeludos para que o Brunão a penetrasse. Aqui ela disse que se lembrava de ter sido presa apenas quando ele a penetrou na boceta, mas que não se lembrava de estar sendo forçada quando ele a penetrou atrás. E como eu já disse para o senhor, quando arrombei a porta, a impressão que tive foi justamente de que ela estaria fazendo por livre e espontânea vontade.
Ele agora me encarava, mas não demonstrava concordar ou discordar:
- E, por fim, ela não chegou a responder se quis ou não transar com eles, nem se gostou ou não de dar para o Bruno. Pode parecer loucura, posso até parecer insensível, mas essas contradições me deixaram e ainda me deixam desconfortável. Às vezes, eu penso que ela pode não estar contando toda a verdade ou mentindo mesmo, sabe-se lá por qual motivo. E é isso!
Ele continuou me encarando, depois pegou um bloquinho e fez algumas anotações a respeito do que eu havia falado e perguntou:
- Por que você quer saber tudo isso? Qual a diferença que fará na sua vida saber se ela quis, se fez por vontade própria, se gostou ou não? Sua vida não está boa com ela como está? - Ele me perguntou.
- Eu não sei. Mas alguma coisa nessa estória me incomoda. Parece não fechar…
- Olha, você só está confuso ainda e o choque de toda a revelação ainda te assombra. Para mim, parece muito claro que ela foi drogada, ou você desconfia do que ela falou? Se for isso, podemos pedir uma mecha de cabelo dela e fazer um exame. - Disse, me encarando.
- Doutor, eu rezo para que ela não esteja mentindo, porque se ela não tiver sido drogada, então toda a estória que ela contou é mentira e eu teria as piores respostas para tudo.
- Desconfia dela, Mark?
- Não. Eu acho que não…
- Mark, vamos revisitar aquele dia para tentar aclarar as ideias. Lembre-se do primeiro momento em que você se lembra de tê-la visto depois que a salvou. Como ela estava? Normal ou alterada?
- Meio alterada, doutor. Bem alterada…
- Ela exalava cheiro de bebida?
- Esse parâmetro não se sustentaria, porque vodka não tem cheiro, doutor.
- Certo. Mas ela parecia estar bêbada?
- Não. Ela só parecia estar perdida, desorientada, só isso.
- Parecia um robozinho, não é? Você manda, ela faz. Você puxa, ela vem. Não é isso?
- Não sei se era tanto assim. Mas acho que sim…
- Apatia, falta de opinião, consciência turbada, são todos sintomas de uso da escopolamina, ou alguns subprodutos da dimetiltriptamina, a cetamina, o flunitrazepam, o GHB e alguns anti-histamínicos, em conjunto com álcool. “Boa noite, Cinderela!”, você certamente já ouviu e até deve ter topado com isso no seu trabalho?...
- É, mas…
- Rapaz, tire essa dúvida do seu coração. Pelo seu relato, depois pelo dela e agora pelos sintomas que você me disse, eu tenho plena certeza de que ela foi drogada e, nesse caso, perdendo a consciência ou a capacidade de se opor, presume-se a violência e o estupro é configurado.
- É, eu sei. Desculpa. Por isso que eu não queria falar, é coisa da minha cabeça.
- Não. Sua dúvida é pertinente, por isso que eu quero solucioná-la de vez. Então, vamos lá. Você concorda que, drogada, ela deixa de ter vontade própria, correto?
- Correto.
- Então, ela não participou por vontade própria, sendo ponto resolvido. Quanto ao “querer”, ela também deixou bem claro que só quis e deixou acontecer porque, durante a alucinação, acreditou que você estava ciente e de acordo com tudo aquilo. Inclusive, quando você perguntou se ela queria terminar a transa interrompida, ela foi enfática em negar. Se lembra?
- Sim.
- Então, ela também não queria. Só faltaria resolver a questão do “gostar”, ou seja, se ela gostou do ato sexual oral que deixou fazerem nela ou da penetração propriamente dita, mas considerando que ela estava drogada, alucinando, eu acho que isso seria irrelevan…
- Ela gostou, doutor. - Eu o interrompi: - Ela chegou a falar que gozou nas mãos ou bocas deles e depois fez oral voluntariamente com um deles, e ainda me chamou pelo nome do Bruno naquela nossa transa. Qual outra razão teria?
- Rapaz. Eu vou te falar uma coisa com um grande risco de você me interpretar mal. Por isso, quero que você me ouça com muita atenção e pense em tudo antes de concordar ou discordar. Nem precisa me responder hoje. - Tomou um pouco de água e continuou: - Fernanda é uma mulher adulta, sexualmente ativa e liberada sexualmente, afinal vocês vivem um relacionamento liberal, não é?
- Sim. - Respondi, realmente não entendendo onde ele queria chegar.
- Qual é a principal premissa psicológica de quem vive um relacionamento liberal? Sabe me dizer?
- Sair com outras pessoas para envolvimento sexual?
- Sim, mas não é só isso. Até chegarem a essa decisão, vocês passam por uma fase psicológica muito interessante. Vou explicar: Quem vive esse tipo de relacionamento entende desde logo que sexo é diferente de amor. Amor se vive exclusivamente com o parceiro e o sexo pode ser compartilhado com outras pessoas.
- Tá. É um raciocínio lógico. - Concordei.
- Essa dicotomia talvez tenha sido o escudo que protegeu a Fernanda de um trauma maior.
- Como é que é? Agora eu não entendi.
- Quando Fernanda aprendeu a separar sexo do amor, ela fez uma reserva mental relacionando o amor exclusivamente para você, ou seja, a parte pura daquela relação ficou protegida no coração dela e aparentemente por isso não foi contaminada pela violência daquele ato. Já o sexo, como algo que ela já compartilhava com outras pessoas, com sua concordância e conivência é claro, ficou relegado a uma menor importância na “psique” dela. Por isso que, para ela, ter transado ou não com eles não pareceu ter uma grande importância, justificando a ocorrência de poucos efeitos negativos decorrentes do trauma e eu diria até de uma recuperação surpreendente.
Aquelas palavras me pegaram de surpresa. O pior é que, por mais absurdas que fossem, faziam algum sentido:
- Mark! Tá tudo bem aí, rapaz? - Me perguntou o doutor Galeano.
- Doutor, isso é loucura!
- Não. Essa é a maravilha e a desgraça da mente e da alma humana. A liberdade sexual que você deu para ela e que para a grande maioria das pessoas é suja, imunda, impensável, acabou servindo para protegê-la dos efeitos psicológicos nocivos que seriam decorrentes da violência sexual. Na cabeça dela, sexo é só sexo, por isso ter transado ou não, contra vontade ou não, não teve uma importância relevante.
- Mas e o fato dela ter gostado? Isso não é errado? - Insisti.
- Gostar de sexo é um ato instintivo e ela, como mulher liberada, já é pré-condicionada a gostar. Ali, naquele momento, drogada, sua parte racional foi mitigada, sobrando apenas o lado animal, se podemos dizer assim. Então, o contato sexual para ela deve ter sido prazeroso, sim. Aliás, ela chegou a falar que gozou quando lhe fizeram oral, então gostou.
- Tá, vamos dizer que seja isso. Então, o fato de eu ter interrompido o ato sexual final, não pode tê-la frustrado sexualmente? Ela não poderia ter a vontade de terminar o que começou?
- Quando falamos do psicológico, não há uma resposta pronta. Pode ser que sim, como pode ser que não. No caso dela, como ela não praticou o ato conscientemente e agora entendeu que aquele ato foi errado, eu acredito que não. Mas só com o tempo e observação, e essa tarefa será sua principalmente, teremos certeza disso.
- Eu não acredito que ela pode ainda querer terminar a transa com aquele filho da puta! Pior, com ele e os amigos! - Falei, claramente injuriado.
- Mark, não se foque nisso. Essa hipótese pode nunca acontecer ou se desenvolver. Foque no fato de que ela está se recuperando maravilhosamente bem e que vocês até mesmo já estão retomando sua vida sexual. - Disse e então me encarou sério: - Agora, vou ser bem sincero com você: o trauma que me dará maior trabalho para resolver não é o dela, é o seu! Eu sei que você ainda pensa em se vingar e sei disso só de olhar nos seus olhos.
Nessa hora, ouvimos três toques na porta novamente e ela se abre revelando a filha do Dr. Galeano e Nanda:
- Tudo certo lá? - Perguntei.
- Tudo. Demorei porque ela estava me explicando sobre um tratamento que terei que fazer, mas nada sério, praticamente só banho de asseio. Além disso, já aproveitou para explicar os exames que ainda terei que fazer e acabei tendo uma aula sobre sexo seguro. Mas depois te falo. - Se voltou então para o doutor Galeano: - Doutor, nós falávamos sobre meu caríssimo marido se abrir, não é?
- Sim, Fernanda, mas não se preocupe. Tive uma maravilhosa conversa com ele e acredito que tenha dado alguns argumentos interessantes para dissipar algumas nuvens que ainda pairavam sobre sua cabeça. Só estamos precisando resolver a questão da culpa que ele ainda sente e que o prende a um desejo de vingança, não é, Mark?
- Mas ele vai superar isso, doutor. Pela nossa família, eu tenho certeza que ele vai superar isso e esquecer dessa ideia tola. - Disse Nanda, colocando sua mão sobre a minha.
- Vamos dar tempo ao tempo. Quem sabe essa vontade não se resolve por si própria. - Respondi.
- Nanda, você culpa ele pelo que te aconteceu? - Perguntou o doutor Galeano.
- É claro que não, doutor! Eu sei que por ele, nada disso teria acontecido. - Respondeu, bastante enfática.
Mas eu sabia que aquilo não era verdade. Por mais e mais palavras que pudessem dizer, eu sabia que tinha responsabilidade em tudo o que havia acontecido a ela e, por maior que fosse minha vontade de esfolar aqueles animais, eu já começava a aceitar uma vingança um pouco mais, digamos, “didática”. Só dependeria da ajuda do destino e talvez de uma mãozinha do Agenor.