NARRAÇÃO: CRISTIAN
A Vila de São Jorge é quase um relógio. Cada um precisa fazer o seu trabalho direito para as coisas não ficarem bagunçadas. Além da enfermaria, a Vila conta com uma horta, estábulo, cozinha e o depósito de armas. Com a queda do mundo moderno, a maioria das armas que passaram a ser utilizadas contra os zumbis foram as armas brancas e arco-flechas. Inclusive, eu sou um excelente arqueiro, o único que conseguiu abater quatro zumbis com o tiro perfeito.
Hoje, estou trabalhando no depósito de armas. Precisamos limpar todas as armas, porque é muito raro encontrar uma em bom estado, a maioria está enferrujada ou danificada. A sorte da vila foi encontrar o Alexandre, um ex-militar, que sabe fabricar projéteis, porém, a produção é demorada e não podemos sair atirando para todos os lados, cada bala conta.
Estou sonolento. Eu não preguei o olho ontem. Existe uma estranha atração entre mim e o José Ninguém (JN), o carinhoso nome que o soldado desmemoriado recebeu. Seus olhos são tão melancólicos e me fitam de uma maneira única. Eu não posso me apaixonar por uma pessoa que acabei de conhecer. Ainda mais alguém que pode representar um risco para essa comunidade. Preciso afastar os meus pensamentos dele.
Após lustrar todas as armas, eu começo a limpeza da oficina. O Alexandre é um porco. Deixa tudo jogado e desorganizado. Quase ninguém gosta de pegar esse serviço, porque demanda muito tempo e energia. Pelo menos, ninguém vem aqui durante a semana. A distribuição de projétil acontece aos domingos.
De repente, um estrondo me tira dos pensamentos sobre o JN. Eu corro para a área externa e vejo uma nuvem de fumaça no portão da área Norte. Algumas pessoas correm na direção oposta, mas eu preciso saber o que está acontecendo. Empunho o arco e preparo a primeira flecha. Um zumbi aparece e não tenho pena. Acerto bem no meio da testa do desgraçado.
Fomos treinados durante anos para embates surpresas. Geralmente, acontece quando outra comunidade quer invadir para pegar os nossos recursos. Só que mapeamos uma área grande e não encontramos nenhuma por perto. Pelo menos, no raio de 100 quilômetros para cada lado. Até a cidade de Porto Alegre está abandonada, sem qualquer vestígio de vida. Quem será que explodiu o muro?
Enfim, os arqueiros são as prioridades, porque as flechas são mais fáceis de fabricar. Atrás de nós, ficam posicionados os atiradores com armas de precisão. Não tem nenhum sinal de vida, quer dizer, tirando os zumbis que entram em uma maior quantidade. Já disparei 10 flechas e os mortos-vivos continuam invadindo a vila.
— Atletas! — um dos guardas grita em cima da torre de vigilância.
Puta que pariu. Esses são os piores. Os atletas são os zumbis recém transformados. Eles possuem uma força ímpar, assim como uma velocidade de causar inveja. Eu pego uma lança. O objetivo é atravessar o corpo do zumbi, enquanto alguém atira em sua cabeça. Um cara gosmento corre na minha direção e consigo atingi-lo no peito. O desgraçado é forte, só que alguém manda bala em sua cabeça e o infeliz morre, de novo.
As coisas começam a ficar feias, quando o número de atletas aumenta. Partimos para o plano B, ou seja, mano a mano. Eu sou pequeno, então, uso isso a meu favor. Eu não perco tempo e saio arrancando cabeças com um terçado, a minha segunda arma favorita. A essa altura estou coberto de sangue e tripas. Busco atingir os zumbis mais distraídos, mas um deles me derruba no chão.
Eu luto para me soltar, mas o zumbi é mais forte. Geralmente, eles mordem no pescoço. Juro que por um segundo ouvi o zumbi dizer "Morre". Estou pronto para desistir, quando alguém taca uma terçadada na cabeça do maldito. É o soldado, o cara sem memória. Ele está ofegante e me ajuda a ficar de pé. Estamos cercados por uma horda, entretanto, o JN luta com uma maestria que nunca vi.
Diferente de nós, o JN usa o ambiente a seu favor, chegando até a confundir os mortos-vivos. Em certo momento, ele sobe em uma das casas da vila e desaparece. Eu recuo, mas continuo em alerta. Do nada, o JN pula segurado em uma corda e maceta a cabeça de vários zumbis, que caem no chão imóveis.
Um grupo tapa a passagem dos zumbis com um caminhão antigo. Com certeza, o barulho da explosão que os trouxe para cá. No chão, dezenas de cabeças e corpos inertes. Vai ser difícil arrumar essa bagunça. O meu pai aparece todo sujo de sangue. As batalhas nunca são fáceis. Ele pede que alguns soldados busquem na área para saber quem eram os invasores.
Aos poucos, os moradores vão aparecendo e ajudam a limpar a área. O JN nos ajuda, mas fica em silêncio. Ele é do tipo de homem que não fala muito, diferente de mim, que conversei com todos sobre o ocorrido.
— Mandou bem com os zumbis. — comentei, assustando o JN, que o observava o movimento da vila.
— Ah, obrigado. — ele se limitou em dizer.
— Cara, que movimentos foram aqueles? Uma hora cê tava no chão, na outra, em cima dos telhados. Eu quero aprender. — disse, não obtendo resposta do JN. — O que você pensa sobre isso?
— Não sei. Deve ter sido só um aviso, pois só os zumbis que invadiram. — ele comentou, sem olhar pra mim, algo que me deixou triste e confuso.
— Ei, soldado sem memória, o Coronel Afonso que falar com você. — avisou um dos guardas da vila.
— Com licença. — ele pediu, antes de seguir o guarda.
Eu sou muito fuxiqueiro. Esse é o meu maior defeito. Eu não perco tempo e corro em direção ao prédio que fica o "quartel-general" do Coronel Afonso. Ele deve estar no meio de um gerenciamento de crises. Por sorte, não perdemos ninguém importante no ataque e para nós qualquer vida é válida, até mesmo a do gay aqui.
Vou me esgueirando pelas sombras. Eu sou igual a um fantasma. Entre na sala de operações e um grupo está conversando com o JN. Eles agradecem pela ajuda, mas ainda o consideram uma ameaça para a vila, principalmente, com esse ataque.
— Nenhuma recordação? — questiona o coronel.
— Não, senhor. Mas, já disse e repito, eu não sou e nem pretendo ser uma ameaça para vocês, ainda mais com a ajuda. — afirma o cara desmemoriado.
— Encontramos essa plaquinha na sua farda. — entregando o cordão para o soldado, que lê atentamente.
— A. Soares. — ele diz em voz alta. — Esse deve ser o meu nome. Eu me chamo, eu me chamo Adam. Então, não era um sonho.
— Adam, você tem treinamento militar? — perguntou o Coronel, olhando fixamente para ele.
Claro que ele é, pai. A forma como ele lutou para defender a vila só pode ser de um militar. O Adam dominou a batalha e não deu paz para os mortos-vivos. A equipe o encheu de perguntas, principalmente, sobre suas habilidades de luta. Porém, o coitado não sabia o que responder, uma vez que não lembrava de nada.
Pressionado, o Adam desmaiou e caiu como uma batata no chão. O levaram para a enfermaria. Como algumas pessoas sofreram ferimentos por causa da explosão, a enfermeira Lidiane estava trabalhando dobrado. Eu como o bom samaritano que sou ofereci meus serviços para cuidar do forasteiro.
Até apagado, o Adam é bonito. Seu rosto mostra uma imponência que nos faz tremer na base. A camisa deixa os seus músculos aparentes. O frio começa a tomar conta do quarto, então, pego uma coberta e o deixo de uma maneira confortável. Aproveito para pegar uma garrafa de água e algumas frutas. Tenho certeza que o soldado misterioso não comeu nada nas últimas horas.
Pego um livro para ajudar a passar o tempo. É um romance brasileiro de Machado de Assis, o "Quincas Borba". A leitura é complicada, mas estou aprendendo algumas palavras novas. A saga de Rubião é uma crítica ao convívio social. A luz da vela me ajuda a continuar a leitura do livro.
Nem percebo o tempo passar. Aos poucos, a claridade invade o quarto. O Adam continua a dormir tranquilamente na cama. Eu me aproximo para vê-lo melhor sob a luz do dia. Eu toco em seu rosto com delicadeza. De repente, ele abre os olhos e avança sobre mim. Eu busco uma maneira de me defender, mas suas mãos são fortes.
— Adam, por favor. — eu peço, segurando suas mãos. — Adam, eu não, eu não...
— Você! — gritou Adam, os seus olhos estavam opacos.
— Adam. — o ar não consegue escapar dos meus pulmões.
Uso minhas últimas energias e dou um chute no saco dele. Com a dor, o Adam cai e fica de joelhos no chão.
— O que deu em você? — perguntei, ainda sem ar e segurando na parede.
— Eu estava, eu não. Me desculpa. — pediu Adam. — Cristian, eu não queria te machucar. Me perdoa. Eu não queria.
Indefeso. Apesar do porte físico avantajado, ele parecia uma criança indefesa e carente. Eu não sei o que deu em mim, mas fiquei de joelhos e o abracei. Pedi para que ele tivesse calma e paciência para lidar com as pressões da falta de memória.
— Vamos dar um jeito. — falei o abraçando e fazendo carinho em sua cabeça. — Vamos dar um jeito, juntos.
— Porque você me trata assim? — ele perguntou, encostando o queixo no meu ombro e me deixando acariciá-lo.
— Eu não sei. — respondi, ainda confuso com os meus sentimentos. — Eu me sinto responsável por você.
— O... obrigado por se importar.
Ficamos abraçados por quase cinco minutos. Eu nunca me aproximei de uma pessoa tão rápido. Eu estou apaixonado, não tem como negar. E no momento de fraqueza do Adam, eu percebi que talvez o sentimento seja recíproco. Preciso descobrir o que ele sente por mim, e já sei até a maneira de como vou fazer isso. O Adam que me aguarde.