Matei os desgraçados. O Cristian está encolhido atrás de uma pilastra. Encosto nele, mas o mesmo recua um pouco. Sento ao lado dele, não digo nada. Ainda estou me recuperando do coice que levei no peito. Deito a minha cabeça no ombro do Cristian, que treme. Talvez com medo de mim. Eu nunca teria coragem de machucá-lo.
Os últimos dias têm sido uma montanha russa de emoções. Cheguei na Vila de São Jorge, sem qualquer resquício de memória. Em seguida, conheci melhor o Cristian e a maneira como as coisas funcionavam na minha casa provisória. Porém, o ponto de guinada veio com a missão que fiz ao lado do Coronel Afonso.
De acordo com o Coronel, homens de uma facção estão rondando a região e roubando os poucos recursos. Fizeram até um desvio no único rio do local. Encontramos um comboio indo em direção ao vilarejo, mas conseguimos eliminá-los. Realmente, sou uma arma de guerra. Mas, o Cristian traz o melhor de mim. Ele não sabe a influência que exerce sobre mim.
— Sinto muito. Você não deveria ter visto isso. — falo, quebrando o silêncio entre nós.
— Eles iam matar a Luna. Obrigado. — agradece Cristian, fazendo carinho na minha cabeça. — Deixa eu ver você.
— Estou bem. — disse, mas ele não acreditou em mim e me fez tirar a camisa. — Eu estou acostumado, Cristian. Foi só um baque. — busco diminuir a dor que sentia.
O meu peito estava roxo e com as marcas das ferraduras do cavalo. O Cristian pega uma garrafa de água e molha o meu peitoral. Suas mãos estão frias e trêmulas. Quando se trata dele, eu me transformo em uma criança mimada. Será que o que vivemos é tão errado assim? Será que na sociedade antiga, os gays eram tratados dessa maneira? São tantas perguntas.
— Adam, o que vamos fazer com os corpos? Não podemos deixá-los assim. — Cristian questiona passando a mão no meu peitoral.
— Podemos enterrá-los em algum jardim. Eu fiz a bagunça, eu cavo o buraco. — solto, sendo repreendido por ele, que dividiu a culpa pelos assassinatos, o que me fez rir.
Não caçamos naquele dia. Passamos parte do tempo cavando as covas para os homens. O Cristian insiste em fazer uma prece para eles. Eu não creio que seja uma pessoa religiosa. E nem Cris deveria ser, mas ele age dessa maneira, ele age com empatia e misericórdia.
Nem preciso dizer que estou acabado. Os meus músculos estão doloridos e o peito latejando. Passo unguento para aliviar a pressão do coice, enquanto o Cristian prepara o "jantar": milho com batata. Fazemos tudo em silêncio. Acho que precisamos de espaço para digerir toda a situação com os homens mortos por mim.
O sol começa a se pôr no horizonte. Não temos resquícios de luz natural, por esse motivo, corremos até um córrego próximo para tomar um banho. A água parece cheia de facas, o queixo treme e o corpo não dá conta, entretanto, a higiene é necessária, ainda mais depois de cometer assassinato.
Deixamos as roupas velhas para secar e colocamos peças mais quentinhas. Resolvemos dormir em um dos prédios abandonados. Trouxemos um saco de dormir e para a segurança de todos, incluindo dos cavalos, vamos ter turnos. Eu vou ficar na parte da madrugada, depois acordo o Cristian e, assim, até o dia amanhecer.
— Você está bem? — pergunto, sentando ao lado do Cristian, que está dentro do saco de dormir.
— Sim. Ainda estou pensando em tudo o que vivemos nas últimas horas. — ele revelou.
Estamos no escuro. Não tenho uma noção certa da direção da mão de Cristian, mas a procuro. Os nossos dedos se encontram. Eles estão gelados. Entrelaçamos as mãos e apertamos forte.
— Desculpa, eu não queria ter agido daquela maneira, Cris. Sua opinião é muito importante. — confesso, fechando os olhos, apesar do breu da noite.
— Nada mudou, Adam. Ainda continuo gostando de ti. — ele me acalmou.
Perdido em meus pensamentos. Assim que eu posso definir a minha vida nos últimos dias. As memórias estão fragmentadas e soltas dentro de mim. Eu só preciso organizá-las. A missão que eu participei deve ter dado muito errado para que o helicóptero caísse. O Coronel Afonso contou que não sobrou nada da aeronave, apenas ferro torcido.
Eu devo ter caído em uma árvore para suavizar a descida, com certeza, era algo que eu faria agora. Continuo tendo minhas habilidades de luta e caça. São quase como instintos de sobrevivência disparados do meu subconsciente. O frio começa a apertar, uso o cobertor que o Cristian me deu para esquentar um pouco.
Agora, o foco vai para os homens misteriosos. A farda deles não tinha qualquer identificação. Eles carregavam mochilas, porém, só haviam algumas armas e água. Será que os dois eram andarilhos? Eu não duvido de nada. O importante é manter o Cristian em segurança.
No dia da confusão no refeitório, o Coronel Afonso teve uma conversa sincera comigo. Existe nele uma preocupação extrema com o filho. Diferente dos outros rapazes, o Cristian é sensível, só que não foge do perigo. Eu prometi que ensinaria tudo o que sei sobre defesa pessoal. E vou cumprir essa promessa.
Hoje, por exemplo, fiquei feliz com o desempenho do meu magrelo no parkour. A coragem dele vai muito além da sensibilidade. Espera, eu disse "meu magrelo"? Que brega, Adam. Nunca repita isso em voz alta, por favor. Estou apaixonado, mas tenho dignidade. A temperatura continua caindo e deixo o Cris dormir.
Aos poucos, o céu vai ficando claro. Alguns galos começam a "cantar" e o Cristian acorda em um pulo. Ele está todo descabelado e perfeito, eu dou risada, porque a situação é engraçada.
— Você não me acordou, Adam. — reclamou Cristian, limpando a baba que escorria de sua boca.
— Eu não tive coragem de te acordar. — assumi, levantando e me espreguiçando, mas sentindo dor.
— Não, não. Você vai dormir, enquanto eu faço o café, por favor. Caso contrário, vou me sentir culpado. — ele pediu, saindo do saco de dormir. — Entra, logo.
— Se eu fosse você pegava esses galos. Eles podem servir para alguma coisa. — tirei minha bota e entrei no saco de dormir, aproveitando o clima ainda agradável.
— Ok, boa noite, bebê. — soltou Cristian, ficando todo sem graça e saindo do quarto.
Dormi com um sorriso no rosto. Infelizmente, a felicidade durou pouco. Lembrei de uma passagem pesada da minha vida. Durante a infância, eu treinava em um quartel general do Instituto Brasileiro de Doenças Tropicais (IBDT). Eu estava com fome, cansado e machucado, mas eles continuavam o treinamento. Eu não era o único. Haviam outros garotos iguais a mim.
Eu sou obrigado a competir com os outros guris. É uma espécie de gincana, mas uma que machuca. O trajeto é traiçoeiro e complicado. Não sou o primeiro a partir. Espero os outros garotos tomarem a dianteira. Alguns fracassam logo no início. Os soldados ficam gritando e torcendo pelos seus favoritos. Ninguém chama o meu nome.
Um dos soldados me empurra, acho que devo seguir em frente. Começo o percurso e já sei onde os meus colegas erraram e consigo passar sem grandes problemas. De repente, os olhos dos treinadores se voltam para mim. Eu gosto da atenção. O meu coração não está acelerado, acho que esse é o segredo da frieza dentro de mim.
Pulo, corro e desvio. Sou pequeno, então, passar por alguns obstáculos não é um problema. Ultrapasso todos e chego na linha de chegada em poucos minutos. Um soldado se aproxima de mim e dá um tapa no meu rosto.
— Dois minutos, Soares. Isso é o máximo que você consegue? — ele questiona, o que me faz fazer xixi nas calças. A minha sorte é que um forte temporal está caindo.
— Estou com fome, senhor. — digo, recebendo outro tapa e caindo no chão cheio de lama.
— Todos vocês, mais uma volta! — o soldado grita e todos precisam retornar para o início do percurso.
Acordo sem ar. A dor no meu peito está em alta. O Cristian está parado ao meu lado. Seu olhar é curioso. Será que eu disse algo, enquanto dormia? Espero que não. Ele pediu para eu tirar a blusa. Ainda sonolento, sento no chão e tiro a peça de roupa. Cacete, o meu peito está com um hematoma enorme, parece um desenho de tão bizarro.
— Você não vai acreditar, mas eu achei uma caixa de suprimentos. Deve ser dos homens mortos. Dentro havia ingredientes para unguento, o último médico da vila nos ensinou como produzir. — explicou Cris, pegando um pouco da pomada e passando no meu peito.
Senti um alívio imediato. Finalmente, consegui respirar sem dor. As mãos de Cristian passeiam pelo meu peito, entretanto, eu não sinto tesão. Eu fico feliz. Ele cuida de mim de uma maneira tão doce e honesta. A cada dia que passa, fico mais apaixonado pelo "meu magrelo". Será que esse amor vai trazer consequências para o futuro? Bem, só o tempo dirá.
Para o café da manhã, o Cris preparou um mingau de aveia, que achou na caixa de suprimento, e batata doce cozida. Eu me sinto melhor das dores. Levanto e vou até a tal caixa para buscar por pistas. Eu fico perplexo. É uma das caixas que eu vi no sonho, ou melhor, lembrança.
— Tá tudo bem? — ele perguntou, pegando no meu ombro.
— Hum. — minto, ao olhar para a caixa de metal com as iniciais "IBDT". — Vamos, temos que aproveitar o sol para a caçada.
— Ah, eu não esqueci a aula de parkour, viu. Promessa é dívida. — Cristian solta, andando eu meu lado e segurando no meu braço, assim como os casais da vila fazem.
— Pode deixar. — garanti, sobrepondo a minha mão sobre a dele. Depois, dou mais uma espiadinha na caixa, que fica para trás, completamente, vazia. — O que será que eles estão aprontando? — penso.