NARRAÇÃO: ARTHUR
— Atrás de ti, seu imbencil! — gritou um homem, antes de socar o Cristian, que caiu no chão desacordado.
Do nada, outros dois homens apareceram. Eu esquivei do primeiro, mas a mata estava muito fechada, então, esquivar seria um problema. O cara que nocauteou o Cris correu na minha direção e entramos em uma luta corporal. Na confusão, acabei perdendo o terçado e tive que usar a força bruta.
O homem exalava um mau odor ímpar. Esse é um dos problemas do apocalipse. As pessoas esqueceram de sua higiene. No meio da briga, dou um chute no homem, que puxa uma faca e me ameaça. Os outros três homens amarram o Cristian e o levam sem cerimônias. Na distração, levo um soco no rosto, mas não tão forte para me derrubar, por isso, finjo um desmaio.
— Homem fraco. — afirma o homem me colocando em seu ombro.
O que eu fiz? Estava próximo ao suvaco do tal homem. Eu queria vomitar pelo odor, mas tive que me manter firme para não estragar o disfarce de vítima indefesa. Não andamos muito tempo, só que para mim pareceu uma eternidade. Sou jogado com violência contra algo de metal. O lugar é gelado e está molhado.
— O Ulisses achou uma mulher. — anuncia uma voz masculina.
— Achamos dois. Um deles é forte e pode ser treinado, o outro vai virar comida, só que vamos fatiar a mulher primeiro. Faz tempo que não como teta de mulher. — disse o homem que me prendeu, enquanto fechava uma porta de metal.
Puta que pariu. Esses caras comem carne humana. Vamos virar comida? Eu preciso pensar em alguma coisa, mas estou aqui deitado. Isso é tão patético. Não posso deixar o Cristian ser fatiado. Prometi ao Coronel que tomaria de conta dele. Eu sou o pior namorado do mundo. Deixei um grupo de canibais nos capturar e seremos uma refeição e tanto.
Pelo menos, os babacas não me prenderam. Eu posso pensar em um plano de fuga decente e nos salvar desta situação escrota. Abro os olhos e minhas suspeitas são confirmadas. Estou preso em uma espécie de gaiola gigante. Havia bastante sangue e resto de restos humanos próximo a mim. Eu não consigo mais segurar o vômito.
Fecho os olhos para não pensar no odor horroroso daquele lugar. Percebo que não existe mais ninguém próximo. A visão do cativeiro não é tão certa, mas estamos em uma espécie de clareira e no fundo existe uma caverna. De repente, o silêncio é quebrado com uma moça que é carregada por um dos homens. Ela grita e esperneia. A minha reação é automática, fico em pé e busco uma maneira de quebrar a porta de metal.
— Olha só, o irmão acordou, Jeremias. — Alguém bate na parte de trás da gaiola. Viro para trás e vejo um homem barbudo. Seus dentes são amarelados e podres.
— Deixem essa mulher, porra! — eu grito, batendo na grade.
— Calma, irmão. Você vai prová-la também. Precisamos de mais gente igual a você. — explica o homem, dando a volta na gaiola. — Sabe, suas habilidades são únicas e nos vão ser úteis.
— Cadê o Cristian? — questiono. — Se vocês ameaçarem ele, eu vou matar todos. — ameaço, deixando fugir um grunhido.
— Tudo no seu tempo, meu garoto. — ele avisa.
De repente, uma movimentação diferenciada acontece dentro da caverna. O homem vai caminhando tranquilamente para lá. Droga, o que está acontecendo? Eu chuto a porta repetidas vezes, mas não dá para quebrá-la. Não há sinal de luta e nem nada do tipo. Se bem que a caverna fica a uma distância considerável.
A falta de informação me deixa inquieto. Pareço um leão ansioso para escapar da gaiola e acabar com as presas. Vejo alguém se aproximando. Fico em posição de alerta, entretanto, meu mundo desaba quando percebo que a pessoa em questão é o Cristian. Ele está banhado de sangue e segura um machado em uma das mãos.
— Bebê, você está bem? — questiono, mas ele não me responde, apenas usa o machado para quebrar a corrente da gaiola. — Cris, — saio e verifico se tem algum machucado em seu corpo. — você está bem?
— O, o corpo humano é cheio de surpresas. Eu, eu. — Cris está tremendo e começa a vomitar.
— O que aconteceu? — perguntei e o Cris apontou para a caverna. — Fica aqui. — pedi, pegando o machado e seguindo para a caverna.
Geralmente, eu não tenho medo, mas quando se trata do Cristian parece que me transformo em outra pessoa. A caverna é mal iluminada, entretanto, o odor é insuportável. Encontro o primeiro corpo na entrada. É o homem que me carregou nos ombros. Seu rosto está em um péssimo estado.
Haviam outros corpos dentro da caverna, mas o que me chamou a atenção foi de uma mulher. Ela teve todos os membros decepados. Será que foi o Cristian? Não. Eu não acredito. Ele fez tudo em seu poder para se defender. Infelizmente, eu não consegui protegê-lo. Não temos mais o que fazer neste lugar horrível.
Nossos pertences estão jogados em uma pilha de coisas velhas. O Cristian continua no mesmo lugar que o deixei. O pego pela mão e sigo para um riacho que não fica tão distante da clareira. Com todo o cuidado, dou um banho no meu namorado, que continua em silêncio. Talvez, remoendo tudo o que fez na caverna.
— Amor, existem algumas coisas que são inevitáveis. Você fez o que deveria ser feito. Você sobreviveu. — falo, enquanto molhava o seu rosto.
— Eu sempre fui treinado para matar zumbis. Eu sei que eles são humanos transformados, mas é diferente. — Cristian estava transtornado com tudo o que viveu na caverna.
— Eu sei, meu príncipe. Só sinto muito. — o abraço e sinto o corpo dele tremer. — Eu queria que não nos encontrássemos nessas circunstâncias. Queria um mundo sem essas merdas para a gente viver bem, sem correr riscos. Eu sinto muito, amor.
— Obrigado por existir na minha vida. Eu te amo. — o Cristian começa a chorar, eu apenas o reconforto. Esse era o momento dele liberar toda a tensão.
— Eu te amo, Cris. Eu te amo demais. Por isso, eu te peço para voltar. Eu não ia aguentar te perder. — pedi.
— Não. — ele se afasta. — A gente já chegou tão longe. Vamos até o fim. Nós dois. Eu já te mostrei que sou mais que capaz de ajudar na missão e...
— Eu não disse isso, amor. Eu só não quero que se machuque. Quem sabe o que vamos enfrentar na torre? — questiono, rezando para ele ir embora.
— Não me importa. Eu vou ficar ao seu lado, Arthur. — saindo chateado e me deixando com cara de bobo.
Ok. Eu não vou mais discutir. Precisamos de toda a concentração necessária para enfrentar os próximos obstáculos. Por causa do desvio, a gente perdeu algumas horas de sol e descansamos em um ônibus abandonado no meio da floresta. Fizemos algumas armadilhas de som para ficar ligados nos perigos.
O frio se fez presente mais uma vez, porém, a temperatura caiu de uma maneira avassaladora. Comemos algumas frutas e uma carne seca. Entramos no mesmo saco de dormir, porque não estamos afim de morrer congelados. Como eu previ, o Cristian continuava reflexivo e desnorteado, só espero que isso passe logo.
Eu nasci para matar. Isso foi o que me disse o capitão responsável pelos treinos do IBDT. Com 14 anos, eu já havia matado outras pessoas. Esse tipo de ação virou comum, uma vez que o mundo enlouqueceu junto com a epidemia. De tempos em tempos, algum psicopata megalomaníaco aparecia e cabia a nós impedi-los. Já perdi a conta de quantos soldados eu assassinei durante o tempo que servi à instituição.
— Cris, fala comigo, por favor. Qualquer coisa. Eu só quero ouvir o som da tua voz. — pedi, abraçado com o meu namorado.
— Sobre o que você quer conversar? — ele questionou aninhando o corpo dele contra o meu.
— O último livro que você leu. — sugeri, aproveitando o momento para absorver todo o calor do corpo dele.
— Bem, se chama "As Crônicas de Nárnia" e fala de um universo mágico que é governado por um leão falante. — ele explicou, quase me lembrando o meu namorado de verdade.
— Entendi. O que mais?
— O leão se chama Aslan. De tempos em tempos, ele convoca crianças para lutar pelo seu reino e...
Enquanto o Cristian contava a história, eu me pegava pensando nas coisas que passei na infância. Será que também fui convocado pelo Aslan para defender o mundo dos zumbis? Eu era apenas uma criança. Sofri bastante para alcançar os padrões dos meus superiores. Ok, que as coisas melhoram com o tempo, porém, nada vai apagar as marcas que eu carrego.
Fui me perdendo na voz doce do meu namorado e adormeci. Só assim para a minha cabeça sossegar. Desde que recobrei a memória tenho lampejos das coisas que vivi. Nem preciso dizer que a maioria é ruim, não é? Acordei tremendo de frio, na verdade, quem tremia era o Cristian. Ele não deveria estar comigo. Eu deveria ter sido mais enfático quanto a participação dele na missão.
Pela manhã, o clima continua tão baixo quanto o dia anterior. As janelas do ônibus estão condensadas pelo frio, algo que é positivo, pois ninguém nos vê do lado de fora. Ficamos abraçados por um longo tempo. Eu sei que o Cristian está acordado, porque sua respiração é inconstante, e vez ou outra, ele solta o ar pela boca.
Comemos maçãs e bananas no café da manhã, além de um cereal horrível que a equipe da Vila de São Jorge desenvolveu para nutrir os moradores. Recolhemos as mochilas e seguimos o caminho para a torre. Faltam poucos quilômetros e ainda não tenho ideia da situação do local.
Caminhamos por uma estrada abandonada. Os carros se tornaram parte da natureza. Parecem estátuas bizarras. De longe, percebemos a presença de um camburão novo. Ele se destaca no cenário, pois não está cercado de plantas e mofo.
— Esse carro é novo. — observa Cristian, erguendo o arco e sacando uma flecha.
— Vamos nos aproximar com cuidado. — ordenei, temendo que tipo de perigo nos aguarda à frente.