[...]
Nem cinco minutos depois, ela veio ao meu encontro e, pelo seu semblante, eu vi que aquela história tinha algum fundamento de verdade. Ela veio me encarando, mas como a encarei de volta, curioso por uma explicação, ela baixou os olhos. Não aguentei e cobrei:
- Nanda, não quero mentiras entre a gente. É a última vez que vou te perguntar. - Insisti.
- Não tem nada mesmo. Poxa… - Se deitou na cama, de costas para mim e apagou as luzes do quarto.
O brilho da lua entrava pelo vidro da porta de correr e me dava condição de ver que ela estava encolhida em seu canto. Me alterei e saí do quarto, indo para a sala. Estranhamente, ela não veio atrás de mim. Dormi no sofá porque já estava chateado com a discussão e agora descobrir uma possível mentira dela iria me arrasar de vez. No outro dia de manhã, fui ao quarto me vestir e ela já estava acordada com o celular nas mãos. Ela se surpreendeu ao me ver entrando e guardou o aparelho rapidinho. Vi tensão em seus olhos, mas não trocamos uma única palavra. Vesti uma roupa social e avisei que iria buscar as meninas:
- Espera que eu vou com você. - Me pediu.
- Vai ser honesta comigo e me contar o que aconteceu? - Ela se encolheu na cama novamente: - Então fica!
Fui até a casa de meus pais e praticamente acordei as meninas. Já expliquei que acabei conversando com a Nanda e já tinha voltado para casa. Elas ficaram mais felizes. Minha mãe ainda preparou um café da manhã para elas e voltamos. Nanda já havia se levantado e preparava alguma coisa na cozinha. Me despedi delas para poder ir ao escritório, mesmo que mais cedo que o normal e ela me convidou:
- Acabei de passar um cafezinho.
- Já tomei na minha mãe. - Respondi.
- Cê não vai me fazer essa desfeita, vai?
Eu a encarei e ela entendeu a mensagem: eu não queria ficar perto dela. Em MG, existe um costume que ensina que realmente é uma desfeita não tomar um cafezinho quando convidado. Apesar disso, eu não me movi e ela veio me buscar pelas mãos. Me sentei e ela nos serviu um café na mesma xícara, porque tínhamos esse costume de sempre partilhar o mesmo copo, a mesma xícara. Isso nos fazia sentir unidos, era coisa nossa. Tomei uns goles e já ia me levantando quando ela me segurou pela mão:
- Olha o teu WhatsApp no escritório. - Me pediu.
- Olhar o quê?
- Só olha. Lê com calma e depois eu te respondo tudo o que você quiser.
Eu sou prático demais e ela deveria saber disso. Abri o WhatsApp na mesma hora e na frente dela que arregalou os olhos. A primeira mensagem já me deixou nervoso:
Ela - “Antes de tudo, quero que saiba que EU TE AMO mais que a minha própria vida.”
Ela - “Eu não te contei exatamente tudo o que aconteceu no camarim naquela noite no rodeio. Desculpa.”
Nesse momento, eu a encarei e ela me olhava estática, com os cotovelos sobre a mesa e uma mão na boca. Vi nessa hora que ela poderia ter feito uma cagada e achei melhor não continuar lendo. Me levantei bravo e ela tentou me segurar pela mão, mas não conseguiu porque eu não deixei. As meninas estavam no quarto e fui direto para a rua, pois queria entrar no meu carro e sair dali. Depois que tranquei o portãozinho de acesso, me dei conta de que estava sem minhas chaves e tive que interfonar para que Nanda me deixasse entrar novamente. Ela abriu o portão e fui para dentro. Ela trancou a porta da sala, tirou as chaves e ficou na frente da fechadura:
- Tenho que ir trabalhar! - Falei, me alterando.
- Por favor…
- Nanda, sai da minha frente. Não piora o que já não está bom. - Pedi, calmamente.
Maryeva vinha entrando na sala nesse momento e, vendo o clima que estava entre a gente, já disparou:
- Mas que inferno vocês dois! Já estão brigando de novo!? Porque não se separam de uma vez?
- Ninguém está brigando, Morzinho. Sua mãe só está brincando que não vai me deixar trabalhar. Só isso. - Falei.
- Não me trata como idiota, pai! Sei muito bem quando você está bravo. - Falou apontando para mim: - E você está muiiiiito bravo! Só não sei com o quê…
- Tô nada. Tanto que vou tomar um café com sua mãe agora. - Falei indo para a ilha da cozinha, onde me servi uma nova xícara de café.
Maryeva me seguia com os olhos, mas já tinha notado. Ela sempre foi inteligente e o amadurecimento lhe dava condições de supor com razão que estava certa. Ainda assim, se sentou no sofá e ficou teclando o celular, mas agora certamente atenta ao que se passava na área da cozinha. Eu olhava para Nanda e ela estava tensa. Abri novamente o WhatsApp e ela agora tentou evitar que eu lesse a mensagem. Eu a fuzilei com um olhar e não deixei tocar meu celular. Voltei a ler:
Ela - “Naquele dia, no camarim, no corredor próximo ao banheiro, eu beijei o Cadú e mais dois amigos dele, que apareceram de repente e chegaram, chegando, cobrando o mesmo tratamento. Como eu já estava bem alterada pela bebida, acabei cedendo.”
- Beijo com mais dois!? - Sorri, já a encarando mais tranquilo: - Essa é sua preocupação?
Estranhamente, ela não se acalmou. Ao contrário, ficou ainda mais tensa. Voltei a leitura e aí a pancada me atingiu em cheio:
Ela - “Eu contei para você que tinha feito um boquete no Cadú e depois disse que era brincadeira. Desculpa, eu menti! Não sei se por medo da sua reação ou por ainda acreditar que você estivesse me testando, mas eu menti.”
Ela - “Naquele dia, depois que fui ao banheiro e já tinha beijado ele e os dois amigos, ele me prensou na parede e cobrou outro beijo, e eu dei. Daí ficamos nos amassando e ele, sem que eu esperasse, tirou o pau e colocou no meio das minhas pernas. Quando ele sentiu que eu estava sem calcinha quis me comer de todo o jeito, mas meio que recusei.”
Ela - “Daí a única forma que consegui achar para ele me deixar ir embora sem um escândalo foi fazer uma punhetinha para ele. Só que, não sei como, a certa altura, eu acabei chupando ele um pouquinho.”
Ela - “Mas foi só um boquetinho de nada, rapidinho e só nele. Bem superficial e ele não gozou na minha boca, só na minha mão. Eu juro!”
Ela - “Pensei em te contar várias vezes, mas, não sei porquê, nunca tive coragem. Com o passar do tempo e depois de tantas aventuras que a gente viveu, muito mais intensas que isso, pensei que nem importasse mais, justamente por ter sido algo tão superficial e rápido.”
Ela - “É o único segredo que guardei de você. EU JURO!”
Ela - “Quando quiser conversar, estarei te esperando. Se quiser saber de algum detalhe, eu te conto. Só não fique bravo comigo, por favor.”
Ela - “Me desculpa de coração!”
Ela - “EU TE AMO MUITO!!!”
- Poxa, Nanda!?... - Foi a única coisa que consegui falar quando terminei de ler.
- Pelo amor de Deus. - Me pediu, baixinho: - Me desculpa!
O boquete em si eu teria relevado numa boa se ela tivesse me contado a verdade naquele dia. Afinal, eu a havia liberado para ela experimentar essas situações. Queria que fosse na minha presença, porque era a minha fantasia… Entretanto, honestidade eu esperava por parte dela sempre, em qualquer situação. Pensei em brigar, discutir, xingá-la, mas me lembrei que Maryeva nos fiscalizava pelo canto do olho do sofá. Então, respirei fundo e fechei os olhos na vã tentativa de que fosse só um sonho ruim. Nesse momento Mirian entrou correndo, feito um tufão:
- Eu tô sentindo cheiro de pizza? - Perguntou, vindo em direção ao formo: - Ma, tem pizza aqui!!
Maryeva se levantou e veio sondar a descoberta da irmã. Perguntaram se poderiam comer um pedaço e claro que deixamos. Se sentaram entre a gente e eu só tinha olhos para elas. Nanda me encarava muito preocupada, principalmente porque eu não havia brigado, estava concentrando tudo aquilo dentro de mim. Decidi corresponder da mesma forma que ela, covardemente, usou para me confessar aquela “traição”. Digitei uma mensagem e ela não chegou, porque provavelmente seu aparelho estava sem bateria. Me levantei para sair, rumo ao escritório, dando um beijo em minhas filhas e a ignorando completamente. Ela veio ao meu encontro, simulando estar se despedindo, com olhos levemente marejados:
- Mor… - Falou alisando minha gravata.
- Me deixa! O que eu tinha para dizer, já foi dito, aliás, escrito. - Falei bem próximo de seu ouvido: - Dessa vez, você conseguiu. Parabéns!
Disse e saí, fechando a porta atrás de mim sem olhar para trás.
[...]
“Consegui, o quê?”, me perguntei sem entender o que ele quis dizer ao sair. Fui até meu quarto e coloquei meu celular para carregar. Ainda teria que aguardar um minutinho para religá-lo. Aquele minuto pareceu uma eternidade. Religuei o aparelho e tive que esperar o sistema reinicializar, o tempo não cansava de me massacrar. Quando finalmente se ativou, abri o WhatsApp e havia uma única frase do Mark:
Ele - “EU CANSEI!!!”
Aquela frase poderia significar muita coisa ou nada. Ainda assim um arrepio ruim me percorreu a coluna, porque tudo indicava ser o pior possível. Perdi minhas forças no mesmo instante e meus braços tombaram na cama. Um flashback começou a passar na minha mente: buscava em todos os momentos bons, acertos, tudo, algo que me ajudasse a fazê-lo ver que aquilo era de menor importância e, por isso, acho que não chorei. Passado sei lá quanto tempo, olhei novamente para o celular, na esperança de eu ter imaginado “coisas”, mas a mensagem continuava lá.
Tentei clicar uma mensagem de desculpas, mas eu tremia tanto que meus dedos não acertavam as letras corretamente e o corretor ortográfico do aplicativo não me ajudou, pois não conseguia entender o que eu queria escrever. Decidi mandar uma mensagem de áudio:
Eu - “MENSAGEM DE ÁUDIO - Mark, Mor, pelo amor de Deus. Me desculpa! Eu só tive medo naquele momento e depois achei que não teria mais importância alguma. Aquilo não significou nada. Deixa eu me explicar, por favor.”
A mensagem foi enviada e recebida no celular dele, mas ele não me respondeu. “Deve estar no trânsito ainda!”, pensei. Cinco, dez minutos e nada. Insisti:
Eu - “MENSAGEM DE ÁUDIO - Pelo amor de Deus, Mark. Fala comigo.”
Mais um tempinho e ele me respondeu:
Ele - “Por favor, leve as meninas à escola. Mais tarde a gente conversa.”
Ele queria conversar e isso já era um bom começo. Voltei para a cozinha e comecei a preparar coxa e sobrecoxa de frango assada com batatas no molho de cerveja, prato que sei que ele adora. Aliás, ele e todas nós. Preparei o prato, arrumei a mesa com toda a pompa e circunstância que o momento exigia e arrumei as meninas para a escola. Onze horas e nada dele chegar. Onze e meia e nada. Quase meio dia, liguei e ele não me atendeu. Tentei mais duas vezes e nada. Pedi a Maryeva que tentasse e ela foi atendida na primeira, então usei o celular dela:
- Mor, o almoço já está pronto! - Falei.
- Fernanda!? - Falou surpreso: - Eu já estou almoçando.
- Mas eu estava te esperando.
- Lamento. Estou em meio a uma reunião e decidimos almoçar por aqui. - Falou, sem qualquer emoção na voz: - Você vai levar as meninas para a escola?
- Eu levo. Pode deixar.
- Então, tá bom. Até mais.
- Beijo. Te amo.
- Tá.
“Tá!? Que merda de despedida é essa?”, pensei. Servi as meninas e elas ficaram mais chateadas que eu por ele não estar almoçando conosco. Ele sempre fazia questão de almoçar conosco, mas hoje, sem qualquer aviso, faltou. Elas foram terminar de se arrumar e eu também fui, pois decidi ir ao seu encontro no escritório. Não iria esperar mais para me desculpar. As levei à escola e na volta comprei um cappuccino duplo para tomarmos junto no escritório. Cheguei e fui surpreendida pela secretária que me disse que ele estava fora praticamente todo o dia em reuniões para resolver alguns problemas:
- Será que ele vai demorar muito? - Perguntei.
- Não sei dizer, mas posso ligar se você quiser, dona Fernanda?
- Não. Não precisa. Vou aguardar mais um pouco. Fica tranquila. - Disse e me recostei na poltrona da sala de espera, já tomando aquele capuccino para tentar me acalmar.
[...]
Saí irado de casa. A mentira dela me doeu forte. Não sei se somente pela mentira em si, mas depois das duas discussões que tivemos nos últimos dias e suas ofensas, me senti no direito de estar doído. Estava tão incomodado que decidi sair de casa. Fui então à imobiliária de Rodolfo, um advogado amigo meu de longa data, e aluguei uma kitnet sem nem mesmo ir ao imóvel, confiando apenas na palavra dele. Ele, apesar de muito discreto, não deixou de notar meu semblante abatido e acabei adiantando para ele o motivo, o que acabou sendo bom porque ele, como advogado, me deu algumas orientações que somente quem está fora do problema consegue enxergar.
Por volta das quinze horas, fui até minha casa ter uma conversa com a Nanda. Ela não estava. Fui até nosso quarto e minhas coisas ainda estavam nos sacos pretos de lixo e achei providencial. Peguei os dois sacos e os levei comigo para o carro. Rumei direto para a kitnet. Lá chegando pude ver que era um imóvel novo e bem cuidado, além de ser projetado com todas as facilidades para um solteiro, serviria para minha estadia tranquilamente. Não passava de uma sala e cozinha integrados, quarto e banheiro com lavanderia. Nem precisei me preocupar com cabides, porque Nanda os havia jogado junto com minhas roupas nos sacos. Estava a anos-luz de ser igual à minha casa, mas era o que tinha para o momento.
Quase quatro e meia da tarde, resolvi voltar para o escritório. Lá chegando, topo com a Nanda sentada na sala de espera e mais dois clientes. Perguntei quem havia chegado primeiro e minha secretária indicou que fora a Fernanda. Perguntei se ela poderia esperar e ela não se opôs. Fui atender o casal de clientes e depois de quase uma hora, chegou a vez da Nanda. Ela entrou com um copo de capuccino na mão:
- Desculpa, Mor. Comprei pra gente, mas você demorou e acabei bebendo quase tudo. - Me mostrou o copo: - Ainda tem um pouco, mas já está meio frio. Quer?
- Não. Obrigado, Fernanda. Entra! - Pedi.
Ela entrou, me encarando como que esperando um selinho, mas desviei o olhar e fechei a porta atrás dela:
- Senta. - Pedi.
- Você está bravo comigo, né? Eu sei, pode falar.
- Então vou falar! Passei em casa agora há pouco para conversarmos, mas você não estava. Peguei minhas coisas que já estavam ensacadas e levei para um kitnet que aluguei…
- Aluguei, como? Como assim? - Ela me interrompeu.
- Estou saindo de casa, Fernanda. Aliás, já saí.
- Não! Não faz isso. Nem estou falando por mim, eu te peço pelas meninas. Não sai de casa. Eu faço qualquer coisa para você voltar. Qualquer coisa… Mas volta pra casa.
- Eu não vou voltar. Só quero conversar com você sobre a melhor forma de organizarmos a rotina das meninas: escola, dia a dia, visita, etc, tudo para elas não sofrerem um baque muito forte.
- Mark, pelo amor de Deus! Foi uma mentirinha de nada! Só uma punhetinha, uma esfregada e um boquetinho, nem fui até o final. A gente já fez coisa muito mais cabeluda, já passou por coisa muito pior e se entendeu. Não faz isso comigo, com a gente.
- Você realmente acha que estou saindo só por causa de um boquetinho? Estou saindo pela mentira. Você não foi honesta comigo. Eu só soube porque o Cadú estava bêbado e deu com a língua nos dentes. - Respirei fundo porque vi que já estava me alterando: - E também teve nossas últimas discussões, acusações, ofensas, sei lá! Acho que acabou somando tudo. Só sei que eu cansei!
- Pelo amor de Deus. Não faz isso! Eu posso consertar tudo. Eu posso. - Começou a falar, já choramingando: - Só me dá uma chance.
- Você quer resolver a questão das meninas agora ou prefere ir para casa e me ligar depois?
- Mark, por favor!
- Vou fazer diferente: eu vou buscá-las hoje e as levo para casa. Lá eu converso com elas, explico que a gente se desentendeu e, por isso, vou ficar uns dias fora de casa.
Ela se levantou e veio se ajoelhar do meu lado, se segurando na minha calça e pedindo uma nova chance, mas dessa vez eu queria paz e acreditava piamente que ela não teria como me dar isso:
- Fernanda, solta a minha calça e sai de perto de mim! Não dificulta as coisas e fica firme porque suas filhas vão precisar de apoio. - Falei.
Ela não queria me largar, então precisei tirar suas mãos meio que à força de minha pernas e mandei que se acalmasse e se sentasse na cadeira em frente a minha mesa. Ela foi e estava arrasada. Chorar, até não chorava, mas seu semblante estava horrível. Interfonei para minha secretária perguntando se mais alguém me esperava e ela negou. Então, a dispensei e pedi que trancasse a porta da frente. Isso daria tempo para Nanda se recompor. Minutos depois, ela me perguntou se podia usar o banheiro e é óbvio que permiti. Voltou pouco depois, mais recomposta:
- Eu vou te reconquistar, nem falo de perdão agora. Eu errei por não ter sido honesta. Desculpa mesmo! Só me dá uma chance. Eu vou te conquistar de novo, do zero se for preciso. - Me falou.
- Boa sorte.
Bem nesse momento o som de notificação de mensagem tocou no meu celular e, coincidentemente, no dela também. Pensei, no ato, que fosse o malandro do Marcos tentando entrar em contato. Peguei meu aparelho para ver quem era e me surpreendi: Denise havia criado um grupo para nós três e enviava uma mensagem de saudação. Ela deve ter notado minha surpresa e foi verificar no seu próprio celular. Ao ver quem enviara a mensagem, ela disse:
- Não pode ser. É um problema atrás do outro. Parece que ela sentiu o cheiro da carniça e já veio planar como um urubu em cima da sua cabeça.
- Planar em cima da minha cabeça como um urubu? - Comecei a rir: - Então a carniça sou eu?
Ela começou a rir também da própria furada e por ter me feito sorrir um pouco naquele momento. Disso eu não podia reclamar, a gente ria muito fácil um do outro. Sabíamos nos divertir e aproveitávamos muito. Brincadeiras, sarros, piadas, sustos, cócegas; às vezes, nós parecíamos mais crianças que nossas próprias filhas:
- Tá vendo. A gente se faz bem. Só me dá mais uma chance. Por favoooorrrrr… - Me pediu, outra vez.
- Vai pra casa, Fernanda. Depois que eu pegar as meninas, vou para lá e nós conversamos com elas.
- Ah, Mark… Esquece dessa loira. Deixa eu cuidar da gente.
- Eu nem toquei no nome dela. Você é quem está falando. - Respondi, ríspido: - Eu não quero uma mulher agora. Quero paz! Para mim e minhas filhas.
Nanda se surpreendeu e, vendo que não iria conseguir me convencer, se levantou para sair de minha sala. Antes de sair, entretanto, se virou e me disse:
- Vou de conquistar! Da primeira vez, foi você que me conquistou. Agora, serei eu. Só não se fecha para mim.
Preferi não responder e me virei para a tela do meu computador. Ela saiu, fechando a porta de minha sala. Minutos depois voltou:
- Fica pelo menos no quarto de hóspedes? Até elas assimilarem.
- Tchau, Fernanda.
- Para de me chamar de Fernanda. Que saco isso! Fica?
- Não!
Fechou a porta e ouvi seu salto se afastando dessa vez. Na hora de costume, fechei o escritório e fui buscar minhas filhas na escola. Eu ainda não sabia como dizer o que precisa falar para elas e decidi deixar a coisa fluir naturalmente. Chegamos em casa e elas entraram direto para seus quartos. Nanda roía a unha na ilha da cozinha. Ao ver que estávamos sozinhos, veio tentar novamente:
- Por favor, fica aqui! Não precisa sair. Você fica na suíte e eu fico no quarto de hóspedes. Do jeito que você preferir. - Me propôs.
- Não dificulta. - Respondi e já chamei as meninas para conversarmos.
Elas vieram e se sentaram na ilha. Nanda já começou a ficar com os olhos marejados e o clima ficou horrível. Típico capricorniano, fui praticamente direto ao assunto:
- Meninas, é… Olha só. Eu e sua mãe… - Fiquei sem palavras, olhando para os rostinhos delas.
- Vocês estão se separando? - Maryeva mandou na nossa testa.
- O que é separando? - Mirian quis entender.
- Então… Eu e sua mãe tivemos um desentendimento e eu vou morar numa outra casa, por enquanto. Sei que é meio esquisito, mas vocês não vão ser prejudicadas em nada. Vou continuar vendo vocês, buscando na escola, vamos poder almoçar ou jantar juntos, é só a gente combinar. Vocês nem vão notar.
- O que foi que ela te fez, pai? - Perguntou Maryeva para mim, logo encarando Nanda com a cara fechada.
- “Ela” tem nome, Maryeva. É sua mãe. Fale com respeito. - Pedi: - A gente só se desentendeu e vai dar um tempo. Só isso.
- Eu vou com você, pai! - Falou Maryeva.
- Mas como vai comigo? - Perguntei, surpreso.
- Vou com você, e ponto!
- Morzinho, presta atenção: sua casa é esta aqui, suas coisas estão aqui e eu aluguei um kitnet pequeno. Só tem um quarto. Se te levar agora, não tenho como te dar o conforto que merece.
- Não tem problema: durmo no sofá!
- Dorme um dia, talvez dois, três, mas vai chegar uma hora que você não vai aguentar mais. - Falei: - Me dá um tempinho então. Vou procurar um apartamento maior e depois a gente conversa novamente.
- E eu vou ficar sozinha? - Falou Mirian.
- Claro que não. Você tem a mamãe, tem eu, sua irmã.
- Eu não quero ficar sem a Ma. - Insistiu.
- Calma, Morzico! A Maryeva não está indo para lugar algum. Você não vai ficar sozinha.
Nanda já enxugava as primeiras lágrimas e, naturalmente, não me ajudou em nada para diminuir a tensão daquele momento. De repente, Mirian desceu de seu banco e foi ligeira para os quartos. Até pensei que tivesse ido chorar e a chamei, mas ela me respondeu que só tinha ido pegar uma coisa e já voltava. Mudei de tática e comecei a explicar para Maryeva que era só um tempo e talvez eu voltasse logo.
Ficamos conversando a dois, porque Nanda era corpo presente e alma ausente, e logo Mirian voltou com uma camisa de manga comprida minha e uma blusa de manga comprida da Nanda nas mãos. Se sentou no banco novamente e as colocou em cima da ilha. Pediu para Maryeva ajudar ela a encontrar a frente e depois de Maryeva ter feito isso, pegou a manga esquerda da minha camisa e amarrou na direita da blusa da Nanda. Nós olhávamos sem entender nada até que ela falou:
- Pronto! Agora vocês já podem vestir.
- Vestir? - Perguntei.
- É! Se eu e a Ma temos que fazer isso quando a gente briga, vocês também tem.
Lembrei-me que, certa vez, as duas tinham se pegado como cão e gato numa briga e eu as obriguei a usar uma camisa juntas por um dia inteiro, para aprenderem a não brigar mais. Tinha visto na televisão uma experiência parecida com uma camisa feita sob medida com dois buracos para a cabeça e que, obviamente, eu não tinha. Então peguei a maior que eu tinha em casa, fiz dois buracos nos ombros. Obriguei que se abraçassem e as vesti com a camisa. Ela resmungaram muito no início, mas pouco depois já estavam se divertindo juntas e começaram a brincar, uma tendo que usar a mão da outra. Nunca mais tiveram uma briga séria. Discussões várias, mas briga nunca mais.
Ver minha caçula bolar uma solução parecida com aquela, me moeu o coração e fui abraçá-la. Não aguentei e chorei, puxando a Maryeva que, por mais forte, acabou chorando junto. Depois as peguei e fomos os três para o sofá, onde eu ainda tentava explicar que não era tão simples resolver um problema de adulto, que precisávamos dar esse tempo, mas que eu estaria sempre presente, que bastava me ligarem que eu viria correndo. Ficamos um tempão conversando e acabei jantando lá com elas.
Depois elas me pediram para colocá-las para dormir, coisa que eu já não fazia há muito tempo e quiseram no mesmo quarto. Acabamos improvisando uma barraca e ficamos conversando com a luz apagada e uma lanterna nas mãos até altas horas. Dormimos os três embaixo da barraquinha. Já de madrugada, senti uma movimentação e notei que Nanda vinha se deitar conosco. Ela se colocou atrás de mim, me abraçando e falou um “Eu te amo! Boa noite.”, dando-me um beijo na nuca. Não respondi.
No dia seguinte, eu estava moído fisicamente, porque dormi todo torto num colchonete e apertado com as três. Me levantei com um baita torcicolo, sem conseguir virar a cabeça. Nanda acordou praticamente junto e vendo que eu tentava me esticar e virar o pescoço, entendeu na hora. Veio então em meu socorro:
- Torcicolo, né? - Perguntou.
- É. Acho que é…
- Deixa que eu resolvo. - Falou e já veio me massagear, mas eu recusei, me levantando: - Não. Não precisa. Vou sair enquanto elas estão dormindo. Depois ligo para elas.
- Mark, espera. Eu faço um café. - Me pediu.
- Estou indo. - Disse e saí como um fugitivo do carcereiro.
Fui para minha kitnet. Tomei um banho rápido e troquei de roupas. Não consegui fazer nem um café porque ainda não havia feito uma compra mínima. Saí e tomei um pingado num bar próximo. Depois fui para meu escritório. Às nove, recebo uma mensagem da Maryeva e da Mirian:
Elas - “MENSAGEM DE ÁUDIO - Fugiu da gente, né!? kkkkkkkk Já vamos deixar a barraca montada pro nosso acampamento de hoje. Não se atrasa!”
Eu - “Pode deixar. Depois passo aí para levar vocês na escola e a gente conversa.”
O dia transcorreu sem nada de relevante. Essa rotina se repetiu por mais uns quatro dias, até que na sexta elas me pediram para conhecer meu kitnet. Após a aula, levei as duas e elas acharam tudo muito pequeno, apertado e não era para menos: nossa casa tem quase trezentos metros quadrados num terreno de quase seiscentos. Na parte superior são quatro suítes, mais a sala de estar integrada com a de jantar e a cozinha. Na parte inferior, há um salão de festa e um quarto para visitas, mais área de lazer, serviço, cozinha gourmet com saída direta para a piscina. No porão, fica o canil das cachorras e ele é maior que meu atual kitnet.
Ainda assim, acharam ele bem legalzinho e perguntaram se poderiam passar o final de semana comigo. Eu concordei e depois de conversarmos com a Nanda que fez um “bicão”, contrariada, acabou concordando. Fizeram suas malas e, enquanto isso, Nanda veio novamente tentar me convencer a voltar. Não conseguiu. Dormimos nós três no kitnet e fizemos a maior farra o final de semana inteiro. Na outra semana, concordaram que eu dormisse no meu kitnet no meio da semana, mas que ainda fosse vê-las todos os dias, o que eu fazia com o maior prazer e sempre que podia. Aliás, a partir de então, elas deixaram de frequentar a chácara de meus pais para ficarem comigo nos finais de semana.
[...]
Quando as meninas convenceram o Mark a dormir em casa na barraca durante a semana, eu tive esperança que elas mesmas iriam trazê-lo de volta. Mas isso acabou quando elas combinaram que ele poderia dormir lá durante a semana e elas ficariam com ele nos finais de semana. No primeiro final de semana, me dei conta do que é estar só quando me vi naquela casa imensa. Somente o som dos passarinhos tentava animar o ambiente, mas eu sentia uma falta alucinante de minha família. Fiz uma chamada de vídeo para Maryeva no meio da noite e ela me mostrou que eles estavam fazendo um piquenique no meio da sala. Ficamos conversando um pouco e até troquei algumas palavras com o Mark. Ele estava mesmo muito feliz por ter as filhas por perto. A noite de sexta foi terrível.
No sábado, durante o dia, decidi ser cara de pau e liguei para o Mark, perguntando se ele não iria me convidar para conhecer sua “nova casa”. Ouvi um sonoro “Não!” que ele, ao ver minha cara de surpresa e decepção, complementou com um “Talvez mais para a frente”. Ainda vi a Mirian vindo bisbilhotar nossa conversa e assumir o celular para dar uma volta pelo kitnet dele, chegando até a Maryeva que continuava séria comigo, mais que o costume. Provavelmente, ela me culpava pelo fato do pai ter saído de casa e estava certa, de uma certa forma. Depois de um tempo conversando comigo, Mirian devolveu o celular para o Mark e nos despedimos.
Aquela situação estava acabando comigo e liguei para a Bia, na esperança dela poder me ajudar. Expliquei toda a situação e ela disse que viria conversar comigo. Horas depois ela chegava no portão de minha casa:
- Nanda. Ô menina… Como você está? - Me perguntou, entre os tradicionais dois beijinhos na face.
- Tô só o pó, Bia! Principalmente hoje, que as meninas ficaram com ele, me dá vontade de me jogar da sacada…
- Para com isso, Nanda! Levanta a cabeça. O Mark não te conheceu deprimida, conheceu? - Balancei negativamente a cabeça: - Então, você não pode se mostrar assim se quiser reconquistá-lo.
- É mais fácil falar do que fazer, Bia. Não tenho ânimo pra nada…
- Eu sei. Não é fácil. - Ela disse pondo a mão sobre a minha: - Mas eu vou te ajudar. Pra começar, vou dormir aqui hoje! Assim, a gente conversa sem pressa e pensa em como amansar seu marido.
- Obrigada, Bia, mas e o Bernardo? Vai ficar bem sozinho?
- Vai, sim. Ele já é bem grandinho…
Minha casa até estava razoavelmente arrumada, porque eu prometi que iria cuidar bem das meninas, mas naquele dia a cozinha estava um lixo. Eu não tive coragem de arrumá-la. Bia se dispôs a estragar suas unhas e foi organizar a louça enquanto conversávamos. Pediu também uma pizza e abrimos um vinho tinto suave para bebermos e tentarmos pensar numa forma de trazer o Mark de volta para minha vida:
- É, Bia… Pisei na bola feio e agora o Mark está uma fera comigo. - Respondi, desanimada: - Já estou com medo de não conseguir salvar meu casamento.
- Mas o que você fez de tão grave assim, menina? Até agora você não me contou.
- Uma mentira, Bia. Ele acabou descobrindo uma mentira do meu passado.
- Seu passado de solteira ou de casada?
- A gente já estava casado.
- O que aconteceu?
Contei para ela o que aconteceu no camarim com o Cadú e que eu não havia tido coragem de contar para o Mark. Aliás, que eu havia contado e depois falado que era uma brincadeira. Ela me ouviu em silêncio e depois falou objetivamente:
- Errou feio mesmo, Nanda! Honestidade é tudo para um casal, principalmente para um casal que vive entre dois mundos, o tradicional e o liberal. Quando você mente ou omite e o parceiro descobre, ele pode perder a confiança em você e começar a duvidar de tudo mais que já contou.
- Eu sei! Eu errei… Mas só fiz isso porque eu ainda tinha medo da reação dele no início e porque ainda pensava que ele pudesse estar me testando.
- Ainda assim, Nanda. Errou! Você nunca poderia ter duvidado das intenções dele, mesmo porque foi ele que propôs a vocês entrarem no meio.
- Eu sei. Eu sei…
- É a única coisa que você escondeu dele? Não teve mais nada? - Me encarou, séria: - Você não chegou a transar com esse Cadú no camarim, não, transou?
- Não, Bia. Não! Pelo menos, não que eu lembre.
- Como assim, Nanda?
- Eu estava bem bêbada, Bia. Eu me lembro que ele esfregou o pau embaixo de mim e até tive a impressão de que chegou a entrar. Daí eu me debati e me afastei dele, fazendo ele terminar na minha boca e mão.
- Nanda, você não sabe se deu ou não?
- Juro que eu não me lembro. Acho que não, mas pode ter havido uma penetração rápida porque eu senti alguma coisa. Talvez sim… Eu não sei, Bia. Não tenho certeza.
- Camisinha?
- Claro que não, Bia! Naquela hora, a intenção era só dar uma sarrada e não transar.
- Bom, já faz um tempão e, com certeza, você já fez exames de saúde e não deu nada depois, não é?
- Já. Já, sim. Estou tranquila quanto a isso.
- Ótimo! Menos mal… - Bia insistiu: - E você já contou tudo para o Mark, não é?
- Tudo, menos a parte de que ele pode ter me penetrado…
- Poxa, Nanda! - Resmungou: - E você vai contar?
- É o certo a fazer! - Suspirei: - Mas ele já está tão bravo que nem sei…
- Se você contar, suas chances de reconquistá-lo ficarão ainda menores. Você sabe, não sabe?
- Sei, mas se eu não contar e ele descobrir depois, meu casamento acabará sem a menor chance de volta.
- É… Isso é! Bem, essa é uma decisão que você terá que tomar e o quanto antes. Se demorar demais, pode ficar ainda pior.
- Eu sei…
Bia ficou me encarando por um momento, tentando encontrar alguma palavra de conforto, mas acredito que ela própria me enxergava como a traidora da situação e isso dificultava tudo:
- Você já ligou para ele hoje?
- Sim. Tentei fazê-lo me convidar para conhecer seu kitnet, mas ele recusou por enquanto. Daí conversamos mais algumas coisas superficialmente e desligamos.
- Liga!
- Agora, Bia?
- Que horas suas filhas costumam dormir?
- No sábado, por volta das dez horas da noite.
Bia consultou o relógio de seu celular e falou:
- Liga! Diga que quer colocá-las na cama através do celular e lhes dar um beijo em cada. Depois você manda um beijo para ele também e deseja “Boa noite!”. Não deixa esse costume de se despedir dele acabar. Você é a esposa dele! Ele pode até não querer ser seu marido agora, mas você quer continuar sendo a esposa dele, sempre! Entendeu?
- Acho que entendi…
- Então, liga!
A ideia dela não era ruim. Eu poderia conversar um pouco com as meninas, me despedir delas, talvez faria o mesmo com ele. Fiz uma chamada de vídeo e após o celular chamar duas vezes, ele me atendeu:
- Alô? - Ouvi aquela voz deliciosa.
- Mor? É, digo, Mark?
- Claro que sou eu, né, Nanda.
- As meninas já foram deitar?
- Foram escovar os dentes. Porque?
- Queria colocá-las para dormir, se você não se importar?
- Vou chamá-las… - Disse, colocando o celular em algum lugar.
Logo Mirian veio pegar o celular e eu perguntei se já iam se deitar, o que ela confirmou. Indo até a cama, onde Maryeva já se encontrava. Deitou então ao seu lado e ficamos conversando algumas besteirinhas e no final me despedi delas. Pedi que chamasse o Mark para devolver o aparelho e ainda vi quando ele deu um beijinho em cada. Apagou então as luzes, saindo e fechando a porta do quarto. Então, me encarou no aparelho:
- Enfim, sós! - Brinquei com ele.
- É… Pois é!
- Já vai dormir?
- Daqui a pouco.
- Estou com saudade… - Falei, sendo sincera.
- Também sinto sua falta, Nanda, mas acho que ainda é melhor a gente dar um tempo. Esfriar a cabeça, sei lá… Eu não… Deixa pra lá, Nanda.
- Quer almoçar aqui amanhã?
- Obrigado, mas não. Eu já prometi para as meninas irmos no pesqueiro comer alguma coisa diferente.
- Ah! No pesqueiro… Então, tá.
- Amanhã à tarde, eu as deixo aí com você. Fica tranquila.
- Tá…
- Quer ir no pesqueiro com a gente, Nanda?
- Eu!?
- Conhece mais alguma Fernanda, Nanda?
- Só você tem mais duas primas com esse nome, Mark. - Respondi, sorrindo: - Mas se o convite tiver sido para mim, eu aceito. Se não for te incomodar…
- Não. Tá tudo bem. Passo aí por volta das dez, ok?
- Tá. Vou esperar vocês. - Eu sorria, boba: - Beijão na boca pra você. Boa noite, meu amor!
- Boa noite, Nanda.
Por mais que eu tenha ficado surpresa e feliz com aquele convite, aquela despedida seca mostrava que eu ainda teria muito trabalho para reconquistá-lo.