Capítulo 36
No dia em que decidiu passar o resto da vida ao lado de Júlio, Leandro estava tão feliz. Recebia do marido um olhar tão terno e amoroso, que amou sentir a sensação de segurança e conforto que aquele olhar o proporcionava, acreditando que era um bem aventurado por saber que em todos os dias da sua vida receberia aquele olhar reconfortante.
O que ele não imaginava é que toda aquela sensação de segurança, afeto e amor anos depois se transformaria num pavor aterrorizante. Ver Júlio caminhando em sua direção, olhando-o com fúria, franzido o cenho, como uma fera presta a devora-lo, o fez sentir as pernas bambas e as batidas do coração dispararem disritmadas. Sentiu-se paralisado e uma torturante sensação de fim cada vez que os passos brutos de Júlio se aproximavam dele.
No entanto, Júlio desviou da sua direção, indo direto para a livraria. Ele estava totalmente imerso ao ódio, que nada via ao seu redor, as imagens não eram nítidas, tudo era como borrões insignificantes. O seu foco era Abner, o homem que ele julgava ter roubado o que jamais se conformou em perder: Leandro.
Em fração de segundo, Júlio estava dentro da livraria e o seu punho fechado atingia o rosto de Abner com tanta força, que o fez cair ao chão.
Do lado de fora, Leandro temia pela vida do ex amante, e sem pensar, correu para dentro da livraria gritando pelo nome de Júlio. Vanessa fez o mesmo.
Patrícia saia da confeitaria com o pacote de açúcar na mão. Ela desconhecia o que estava acontecendo dentro da livraria, mas ao ouvir o patrão chamando por Júlio, chegou a conclusão que algo ruim estava preste a acontecer. E também correu para lá.
Ao entrar, Patrícia se assustou com a cena de violência que presenciava. Os dois homens trocavam socos e os seus rostos sangravam.
Leandro tentou apartar a briga, pondo-se como obstáculo entre os dois.
Patrícia tentou segurar Abner, mas não tinha força física o suficiente para isso.
O clima era de tensão. Os corações batendo aflitos e acelerados, gritos de trocas injúrias pelos rivais e pedidos de ajuda de Patrícia. Estantes indo ao chão, devido ao impacto dos corpos dos homens que se devoravam numa violência feroz.
Júlio puxou Abner pelos cabelos e acertava a sua cabeça pelos corredores das estantes. Em uma das pancadas, Abner aproveitou para tomar posse de um livro de capa dura. Em seguida, Júlio sentiu um forte chute entre as suas pernas que o fez perder as forças, interrompendo as agressões ao rival, o que Abner viu como uma oportunidade para dar, com força, por muitas vezes, com o livro no rosto machucado de Júlio, despejando naqueles golpes todo o ódio que sentia.
_ Solte o meu pai, seu filho da puta!_ ao terminar de gritar essas palavras, Vanessa partiu em direção a Abner, mas foi detida por Leandro, que a segurou pela cintura e a levou para fora da loja, temendo que a filha fosse atingida por algum golpe.
_ Você fique aqui!_ Leandro ordenou nervoso, com a voz rouca e trêmula.
Ele voltou correndo para a livraria, segurou Abner envolvendo os seus braços nas axilas do jovem, o arrastando para trás, para que se afastasse de Júlio, que estava caído no chão.
_ Seu merdaaaaaaaa! Lixo, desgraçado!_ gritou Júlio, se levantando e partindo em direção a Abner com o punho cerrado, mirando em direção ao rosto do rival._ Você não tinha o direito de se aproximar da minha família! Não deveria ter tocado no meu marido! Você vai se afastar dele!
Antes que Júlio se aproximasse, mesmo com os braços presos por Leandro, Abner levantou uma das pernas e chutou o peito de Júlio.
_ Eu não vou me afastar de ninguém, mau caráter! Você fala como se o Leandro fosse uma da suas propriedades! Ele não é! Você não teve competência para manter o seu casamento, então aceite que já acabou!
_ Não acabou não! Nunca vai acabar! Você vai pagar por tudo que me fez, seu michezinho de bosta! Vai se arrepender do dia que me conheceu.
_ Disso já estou mais do que arrependimento. Você acabou com a minha vida.
_ Isso não foi nada. Não sabe o que te espera.
_ Vai me matar, covarde? Porque você só é homem com uma arma na mão.
_ Eu vou te dar algo muito pior do que a morte.
_ Já chega vocês dois!_ Gritou Leandro arrastando Abner para fora da livraria, o atirou ao chão. Apavorado, a imagem de Abner recebendo um tiro de Júlio o atormentava e temia que aquilo pudesse acontecer novamente. Trancou a porta da livraria, para impedir que Abner entrasse.
Abner temeu deixar Leandro sozinho com Júlio na loja trancada. Tentava arrombar a porta com chutes, mas foi segurado por um dos homens que foram acionados por Patricia.
Em meio as brigas, a mulher saiu correndo para fora da livraria, gritando por ajuda.
_ Me solta! Eu não vou deixar o Leandro sozinho com aquele monstro.
Temeroso, Leandro arrastou o sofá em direção a porta, para servir como barreira, impedindo a entrada.
Ele e Júlio trocavam olhares distintos. Enquanto Leandro olhava temeroso, quase implorando para que aquela situação chegasse ao fim, Júlio o olhava com ódio. Tinhas os olhos avermelhados e úmidos, pupilas dilatadas, as veias pareciam que saltariam do pescoço e o peito subia e descia numa respiração ofegante.
_ Júlio, pelo amor de Deus, me deixe em paz! É só isso que te peço, por favor! Você já está namorando.
_ Mas é você quem eu amooooo!_ Júlio gritou com uma voz estrondosa e rouca, como se da sua garganta emitisse o som do inferno.
_ Isso não é amor! Você tá doente!
_ Não é amor? Você vai mesmo me dizer que não é amor? Você não tem noção de tudo que passei e ainda passo por amor a você. Eu estou sendo atormentado por pessoas que tive que me envolver, porque você chorava por causa do fato de o seu papai não aprovava o nosso casamento! Ou você acha que eles nos deixaram em paz só por vontade própria? Eu pouco me fodia para a opinião deles, mas você sempre me atormentou com as suas lamúrias! Tudo o que está acontecendo é culpa sua! Eu sempre fiz tudo por você! Eu suportei aquele velho desgraçado do Procópio para poder sustentar o playboyzinho mimado, eu batalhei para ter tudo o que tenho para te dar o melhor! E como você me agradece? Me abandona! Me troca por um Zé ninguém qualquer! Eu sujei as minhas mãos de sangue por sua causa! Eu me afoguei num monte de merdas por sua causa!
_ Eu nunca te pedi nada disso._ Leandro disse com calma. Estava tão triste, que não conseguia deter as lágrimas._ Eu nunca quis o seu dinheiro. Você nunca pensou no meu bem, só o enriqueceu para usar o seu dinheiro para me fazer o seu refém. Você sempre me machucou, enquanto me fazia acreditar que estava me acariciando. Enúmeras vezes, me fez duvidar da minha própria sanidade mental...como isso dói, Júlio! Dói pra caralho!
Leandro apoiou as mãos no balcão, tentando recuperar o fôlego e desabava em lágrimas, ignorando os gritos que vinham de fora.
_ Eu não sei o que você quer dizer com "sujou as mãos de sangue por mim"...e tenho medo de saber. Mas eu nunca te pedi isso...eu nunca quis isso...eu só queria que você me amasse como eu te amei...eu só queria que você me respeitasse...
_ Mas eu te amo, porra! Te amo muito. E não me arrependo de nada do que fiz. Faria tudo novamente. Eu te amo.
_ Mas eu não te amo! Eu não te amo! Aceite isso de uma vez por todas!_ Leandro gritou.
_ Pai, pelo amor de deus! Abra essa porta! Abra._ implorava Vanessa, batendo no vidro da porta.
_ Olha o que você fez, Júlio. Eu não quero que a Vanessa passe por isso. Isso é muito doloroso pra ela!
_ Você não está preocupado com a Vanessa, Leandro. Se estivesse, não teria colocado aquele merda aqui dentro.
_ Eu não estou preocupado com a Vanessa?_ Leandro gritou revoltado._ Como se atreve a dizer isso? É com ela que me preocupo! Sempre me preocupei!
_ Veja a forma como a Vanessa está agindo desde que você saiu de casa. Mas é claro, pra que vai se preocupar com a sua filha, se a sua vida sexual vem em primeiro lugar? Afinal a sua família estava te atrapalhando de trepar com aquele imundo do Abner. Você é um egoísta, Leandro!
_ Por que você é tão cruel, Júlio? É por isso que eu deixei te amar!
_ Não. Você não deixou de amar! Sabe por quê? Porque você não é nada sem mim.
_ Mentira! Eu não vou mais acreditar nisso! Eu tenho competência sim! Eu conquistei muitas coisas.
Júlio soltou uma gargalhada irônica.
_ Você conquistou? Você conquistou o quê? Leandro, você saiu da minha casa para se encostar nas costas da Valéria, nem se importou de ser um peso pra ela. Depois, quis pagar de fodão independente comprando um apartamento com o dinheiro da venda de um dos carros que eu comprei pra você, ou seja, com o meu dinheiro. E esta merda de livraria? Você não conquistou nada! Ganhou de presente do Papai, que adquiriu dinheiro trabalhando pra mim! Percebeu que sem mim, você não teria nada? Você é só um peso pra as pessoas, meu amor. Foi um peso pra Valéria, apesar de ter trinta e dois anos depende do dinheiro de papai, mamãe e do marido.
"Aceite a sua posição de incompetência natural, você não tem direito ao orgulho. Coisa que nem o seu pai sente por você. Agradeça por ter a mim, para te garantir sobrevivência. Eu deveria abrir mão de você diante de tanta ingratidão, mas como eu te amo, apesar de tudo, sempre vou estar disposto a pôr o mundo sob os seus pés. Só quero que seja grato e se comporte com lealdade e obediência... você não passa de uma criança burra e vulnerável, que precisa muito de um protetor."
Cada palavra dita por Júlio atingia como lâminas, dilacerando a sua alma. Sentia-se pequeno, inútil e desesperado. Não tinha mais forças para dizer nada. Apenas chorava, sentindo a angústia mastigar o seu coração.
Júlio afastou o sofá da porta e saiu.
Vanessa entrou na livraria e correu para abraça-lo. Ao ser tomado pelos braços da filha, Leandro perdeu as forças e desabou no chão, arrastando Vanessa junto.
Permaneceram abraçados, ele a apertava, chorando alto.
_ Calma, pai! Calma! O que aconteceu?
Leandro estava em choque, não conseguia emitir um som que não fosse o choro.
_ Maldito! Olha o que esse cara causou._ Vanessa dizia, se referindo a Abner.
Patrícia se compadeceu do amigo. Relembrou as inúmeras vezes em que o viu naquele estado por culpa de Júlio e sentiu muita raiva.
_ A culpa é toda daquele demônio do Júlio! Ele não tinha nada que fazer aqui.
Ela correu para pegar um copo com água com açúcar para dar ao amigo.
...
Aos poucos, Leandro foi abrindo os olhos e percebendo que estava em seu quarto, vestindo o seu pijama. Em fração de segundo, sentiu o peito angustiado, relembrando as horríveis emoções que sentira na livraria.
Levantou ofegante e desesperado. Mas foi detido por uma mão suave que pousava em seu peito.
_ Xuuuuu! Tá tudo bem! Você está seguro agora, a mamãe está aqui.
Angela o abraçou, acariciando as suas costas e beijando a sua cabeça, o que o fez se sentir um pouco mais calmo.
Como Leandro não conseguia reagir, Patrícia se encarregou de ligar para Angela e Valéria, que chegaram alguns minutos depois.
Angela se apavorou ao ver o estado do filho e o medicou com um forte calmante. Em seguida, com o auxílio das outras, o levou para o apartamento, trocou as suas roupas e o pôs na cama, onde Leandro adormeceu profundamente, devido ao efeito do calmante.
_ Tudo isso foi culpa sua! Garota insuportável!_gritou Angela depois de Vanessa ter contado tudo o que aconteceu._ O que você tinha que ter chamado o Júlio? Tava querendo o quê? Ver morte? Não se lembra do último desastre que aconteceu quando esses três se encontraram?
_ Eu..._ antes que Vanessa terminasse a frase, recebeu uma bofetada da avó, o que despertou um sorriso em Valéria.
_ O Leandro já passou por muitas coisas ruins. E a última coisa que ele precisa agora é ser atormentado por você e aquele projeto de demônio do seu outro pai. O seu comportamento ultimamente só o tem deixado aflito. Olha aqui, garota, ou você entra na linha, ou eu vou te pôr nela sob pancadas.
_ A culpa não foi minha. O Abner estava lá dentro. O meu pai não deveria colocar aquele homem nas nossas vidas de novo._ Vanessa disse chorando, pondo a mão no rosto.
_ Agora, quem vai falar sou eu._ afirmou Valéria._ Você é tão metida a fodona, a cheia de marra, mas não passa de uma estúpida impulsiva! O seu pai não está trepando com o Abner. Ele recebeu uma proposta de trabalho para sediar um evento literário na livraria. Uma das exigências do editor era que ele trabalhasse em conjunto com a confeitaria do Abner.
_ Ele não tinha que ter aceitado trabalhar com aquele homem!
_ Você sabia que há um mundo além do seu umbiguinho? Nem todas as pessoas não são patricinhas mimadas como você. Elas precisam trabalhar para pagar as contas. E mesmo se o Leandro estivesse trepando com o Abner ou com qualquer outra pessoa, você não tem nada a ver com isso!
_ Verdade._ interpelou Patricia._ Você deveria se preocupar com as próprias notas, que o Leandro me disse que estão baixíssimas. Já pensou em ser uma filha melhor? Você não lava uma louça, não passa uma vassoura no chão, não faz nada para ajudar o seu pai quando vem pra cá.
_ Eu não sei fazer nada.
_ Ah, mas dar a boceta você sabe._ disse Valéria._ Vanessa, eu sei que você adora causar o caos. Então, se quiser infernizar alguém, infernize o Júlio e deixe o Leandro em paz.
_ Exatamente. Você viu como o meu filho ficou hoje? Você quer que o seu pai tenha um enfarto?
_ Claro que não, vovó! Nunca!
_ Então, nos ajude a cuidar dele. Você não é mais uma criança. É uma mulher e se comporte como uma não só na cama.
_ Eu errei. Mas não fui a única.
_ Eu sei disso. Júlio é mais culpado de tudo. Mas ele ainda me paga por todo mal que está causando ao meu filho. Eu só exijo que você não ajude a piorar a situação.
As quatro conversaram, chegando a um acordo de como cuidariam de Leandro. Vanessa prometeu que ajudaria Angela a cuidar dos afazeres domésticos, enquanto estivessem na casa. Patrícia e Valéria ficariam responsáveis de se encarregarem da livraria, até que Leandro se sentisse bem.
Naquela noite, Angela preparou o jantar. Cozinhou legumes e peixe ao vapor para serem servidos com arroz branco.
Leandro não quis jantar. Sempre que estava tenso perdia a fome. Mesmo que a mãe insistisse, nada descia.
Durante o final de semana, Leandro não quis sair do quarto. Permaneceu debaixo do edredom, com as janelas fechadas. Por diversas vezes, Vanessa tentou anima-lo. Mas de nada adiantava, o que o deixava muito mal, já que não queria que a filha presenciasse o seu sofrimento.
_ Pai, eu sei que está frio, mas podemos correr no calçadão da praia. Lembra que você adorava fazer isso? Dizia que te revigorava.
Leandro a olhava cansado e abatido. Sentia vergonha de demonstrar fraqueza.
_ Vá você, meu amor. Eu não estou me sentindo bem.
_ Mas eu estou de castigo.
_ Pode ir, mas só por hoje.
_ Eu não vou a lugar nenhum sem você. Já sei! Vou preparar um daqueles sanduíches naturais que você adora! E também vou comprar umas besteiras no supermercado para comermos durante uma sessão de cinema em casa. Você escolhe o filme. E não se preocupe. Eu só vou comprar coisas saudáveis: chips de batata doce, barra de creáis, uvas, iogurte e frutinhas vermelhas.
Leandro não conseguiu dizer nada. Só desejava que Vanessa não ficasse por perto para que pudesse libertar o choro.
Antes de ir ao mercado, ela o levou o prometido sanduíche de frango desfiado com maionese e salada de alface e tomate, com um suco natural de maracujá.
Despediu-se com um beijo no rosto.
Assim que a menina saiu, Leandro ligou para Valéria e pediu a amiga para que fizesse o favor de passar a tarde com Vanessa.
_ Não acredito que ela está te perturbando.
_ Não está. Eu só preciso ficar sozinho. Por favor, cuide dela pra mim?
Mesmo a contra gosto, Valéria concordou. Ordenou a Vanessa que fosse para a sua casa para dar um pouco de espaço para Leandro.
Angela não quis deixar o filho sozinho naquela tarde. Passou a tarde e a noite lá.
Para ela era doloroso demais ver o filho sendo consumido pela tristeza. Sentia-se impotente. Desejava ter o poder de arrancar toda aquela melancolia que se instalava sobre o seu amado filho.
Procurou ser a mais respeitosa possível. Cuidava da casa e da alimentação de Leandro com esmero, sem ser invasiva.
_ Amor, eu estou na sala. Qualquer coisa que precisar, é só me chamar.
_ Obrigado, mãe. De verdade. Só peço que cuide da Vanessa também. Principalmente da alimentação dela.
_ Não se preocupe com nada. Deixe tudo comigo. Só descanse.
Angela se aproximou da cama e o beijou na testa. Acariciou o rosto do filho com doçura.
_ Eu te amo tanto!
_ Eu também te amo, mãe._ Leandro disse sem conseguir conter as lágrimas, e se sentiu ridículo por isso. Recebeu um abraço afetuoso.
Os dias pesavam em Leandro. Passavam com lentidão e tristeza. As palavras de Júlio o feriam cada vez mais fundo cada vez que se recordava delas. Aquela voz maldita ecoava na sua mente, desnudando todo o seu fracasso. As lembranças das brigas que presenciou provocaram dores de cabeça e ardência no peito, que ele ocultava das mulheres para não preocupa-las ainda mais.
Mas nenhuma delas estavam dispostas a deixar que Leandro fosse arrastado para as profundezas da depressão.
Decidiram organizar um almoço para reunir todos os ex colegas e amigos da empresa, onde Leandro trabalhou.
_ Eu não sei se estou em condições de receber visitas, Val.
_ Mas vai receber. Você não pode se entregar desse jeito. E além do mais, você não precisa se preocupar com nada. Eu, a Patrícia e a Angela vamos cuidar de tudo.
_ Eu também, papai. Como estou em férias, posso ficar por aqui e lavar a louça e cuidar de você.
Leandro deu um sorriso fraco.
_ Você lavar a louça! Por essa eu não esperava.
A visita dos amigos o animou um pouco. Leandro não os recebeu enérgico como sempre fazia, mas se esforçou para ser um bom anfitrião. Devido, ao frio, passou a maior parte do tempo, sentado no sofá enrolado numa manta.
Sorriu um pouco com as anedotas dos amigos e recordações dos momentos felizes que viveu enquanto trabalhava na empresa de Valéria.
A dedicação e o carinho que recebeu da mãe, filha e a amigas aliviava, aos poucos, o seu sofrimento. Sentia-se confortável com o carinho que recebia delas.
No entanto, ainda estava triste, pois as palavras de Júlio se instalavam na sua alma como um veneno maldito. Chegando a conclusão que Júlio tinha razão. Acreditou que não era merecedor de nada que tinha, tudo veio de alguém, chegando a pensar que era um peso para as pessoas que ama.
Genaro soube do ocorrido por uma ligação que recebeu de Vanessa.
_ Ora, eu sou sempre o corno da situação. O último a saber de tudo. Por que ninguém me disse nada antes?_ reclamou Genaro.
_ Está tudo um caos por aqui, vovô. Essa semana está sendo agitada. Focamos no meu pai.
_ E como ele está?
_ Mal. Raras vezes sai do quarto.
_ E a livraria?
_ Val e Patrícia estão cuidando de tudo.
_ Eu vou dar uma passada aí amanhã. Vou com a Lorena. Ela está preocupada com o Leandro.
_ Ah, conta outra, vô. Desde quando essa mulherzinha se preocupa com o meu pai? E a vovó não sai daqui. Ela não vai gostar nada de dar de cara com a Lorena.
_A Lorena é a minha mulher, goste vocês ou não. Eu sou o pai do Leandro, tenho tanto direito de visitá-lo quanto a sua avó. Os nossos problemas conjugais só desrespeitam a nós e mais ninguém. Não é problema seu e nem do Leandro. Eu vou aí sim e com a minha esposa. A não ser que o seu pai se oponha, já que ele é o dono da casa.
Vanessa não teve outra alternativa a não ser se calar. Ao contar a Leandro sobre o desejo de Genaro em querer vistá-lo, Angela estava presente, o que Vanessa acreditou que faria Leandro recusar receber Genaro e Lorena.
No entanto, foi frustrante para Vanessa, quando Angela disse que voltaria para a casa para que Leandro pudesse receber o pai e a madrasta.
_ Obrigado, mãe, pela compreensão. Você pode voltar quando quiser. Mas eu creio não seria confortável pra você com o papai e a Lorena aqui.
_ Não seria mesmo, meu filho. Mas eu entendo que ele é o seu pai e gosta tanto de você, quanto eu gosto. Além do mais, já passei tempo demais aqui. Você precisa do seu espaço e privacidade. Mas, se precisar de mim, não hesite em me chamar a qualquer momento.
A visita foi marcada para o dia seguinte, que era domingo. Antes de partir, Angela se certificou que tudo estava em ordem na casa e deixou uma lasanha á bolanhesa na geladeira, dentro de um pirex com tampa. Recomendou a Vanessa que pusesse no forno assim que os visitantes chegassem. Para a sobremesa, ela comprou uma torta de chocolate numa padaria próxima.
_ Vê se se comporta e não vá aborrecer o seu pai, arranjando brigas com a Lorena._ ordenou Angela.
Aos primeiros raios de sol daquele frio domingo, antes de abrir os olhos, Leandro, deitado como um feto em sua cama, se recusava a nascer. Enquanto o seu corpo permanecia inerte, seus olhos percorriam pelo quarto, buscando dentro de si algum resigno de força para encarar mais um dia.
Caminhou até o banheiro em passos cansados, se libertando do pijama, ficando nu sobre as águas do chuveiro.
O ambiente físico era silencioso, mas o seu coração as aflições ainda estavam lá, gritando.
Não era fácil lutar contra a sensação de fracasso que o acometida. Errou como pai, errou ao escolher o marido, errou como filho ao não dar aos pais o orgulho que eles almejavam sentir por ele. Não se tornou o bem sucedido advogado que eles tanto queriam. Não conquistou nada. Na amizade com Valéria sugou mais do que recebeu.
Ao pensar em Júlio, sentia como se estivesse acorrentado a ele, chegando a se perguntar se um dia se libertaria. Se seria capaz de conduzir a própria vida.
As lágrimas se mesclavam com as águas da ducha. Estava tão cansado!
Ao sair do box, enrolou uma toalha branca na cintura e foi escovar os dentes.
Olhou pelo espelhinho da pia a sua imagem decadente, rosto pálido, emagrecido e os pelos da barba e bigode domando o seu rosto.
_ Você é lindo de qualquer jeito...mas tenho que ser sincera de dizer que sem a barba fica muito melhor._ Vanessa estava na soleira da porta do banheiro, encostada com os braços cruzados, sorrindo gentilmente.
_ É... você tem razão. Vou dar um jeito nisso._ Leandro disse em tom de brincadeira, erguendo a navalha.
_ Está perfeito!_ Vanessa exclamou ao ver o pai com a cara limpa novamente.
Genaro e Lorena chegaram algumas horas depois. Ela usava um vestido branco, estampado com pequenas florzinha amarelas, a barriga já estava volumosa e arredondada, mostrando que uma vida humana ali estava sendo gerada.
_ Como a sua barriga está linda!_ Leandro admirou com sinceridade. Enquanto a abraçava e dava três beijos em seu rosto.
_ Já vou para o quarto mês de gestação! E você, está tão abatido, coitado.
Lorena dissimulava uma cara de preocupação, mas, por dentro, estava contente em ver a infelicidade do enteado.
_ Nós temos uma boa notícia! O seu irmão é um menino! Um meninão!_ Genaro contou radiante de felicidade.
_ Será que dessa vez teremos o tão sonhado filho advogado, meu amor?_ Lorena acariciava a barriga, enquanto Vanessa revirava os olhos para cima.
Leandro tentava conter a dor. Não que sentisse raiva do irmão, mas sentiu vergonha de si mesmo. Doía saber que não era motivo de orgulho para o seu pai, e que talvez, aquela criança seria.
Durante o almoço, Leandro mais ouvia e comia do que falava. Abrigou-se no silêncio para não demonstrar tanto as suas dores emocionais. Genaro e Lorena contavam como a vida deles caminhavam, a gestação, o quarto do bebê, as viagens que faziam.
_Já escolheram o nome?_ Vanessa perguntou.
_ Ariel._ Lorena respondeu orgulhosa e sorridente.
Apesar de todos os enjôos, Lorena realmente estava feliz com a maternidade. Sentia nascer em si um amor tão bom, como nunca experimentou na vida.
_ O nome é muito bonito._disse Leandro.
_ Eu já acho que é nome de sereia.
Genaro gargalhou com a frase de Vanessa.
_ Não, meu amor. Ariel é um nome unisex. Mas é mais frequente em pessoas do sexo masculino.
_ Sim. E significa "Leão do senhor." É o nome de um anjo._ Lorena acrescentou.
_ Querida, você me disse que tem uma amiguinha aqui no condomínio.
_ Tenho sim, vô. É a Rebeca. Ela mora aqui ao lado.
_ Então, por que não vai até lá bater um papo com ela, para que nós adultos podermos conversarmos?
_ Eu posso, pai?
Leandro concordou com a cabeça. E Vanessa se retirou para ir escovar os dentes e saiu em seguida.
_ Então, meu filho, o que aconteceu? A Vanessa me contou tudo...mas eu preciso ouvir a sua versão.
_ Eu não tenho nada a dizer. Creio que a Vanessa já deve ter contado tudo.
_ E por quê você não me contou?
_ Porque eu não quis te preocupar. O senhor tem a sua vida e o bebê está a caminho.
_ Você também é o meu filho. A sua vida me importa tanto quanto a do Ariel. E por que você foi trabalhar com aquele Abner? Deveria ter afastado aquele homem da sua vida. Ele só te fez mal. Também deve ter cuidado com o Júlio. Ele é um psicopata! Leandro, você não sabe o quanto me apavora tudo isso. Temo pela sua segurança.
_ O seu pai tem toda razão, Leandro. Todos nós sabemos o quão perigoso o Júlio pode ser. Ele tem um ciúme doentio por você. É bom tomar cuidado não só com ele, mas com o Abner também. Eu o conheço muito bem e sei que ele não presta. Abner pode te arrumar muitos problemas. Eu te aconselho a se afastar o quanto puder dele.
Leandro não quis responder para não prolongar o assunto. Apenas concordou que tomaria mais cuidado com ambos os homens.
_ E a livraria? Como vai indo? Dando muito lucros?
_ Vai bem, pai. As vendas não são ruins. E com os eventos teremos um lucro maior. Será um UP em todos os aspectos.
_ É bom que dê lucro mesmo. Assim o Genaro não fique com a sensação que desperdiçou dinheiro. Não que eu não confie em você, Lê. Muito pelo contrário, te acho muito inteligente. Mas convenhamos que você é muito inexperiente nos negócios.
_ Vocês querem uma fatia de torta de chocolate? É da padaria daqui de baixo. É uma delícia.
Leandro não esperou pelas respostas deles. Apenas levantou e foi para a cozinha buscar a torta. Era para ele a sua fuga daquele assunto.
....
Leandro havia estipulado que não abriria a livraria as terças-feiras. Não era um dia de muito movimento. E além disso, Patrícia precisava de uma folga semanal, além dos domingos. Assim, Leandro teria tempo para organizar a sua casa e as outras áreas da sua vida.
Mesmo sendo a sua folga, Patrícia ligou para Leandro avisando que passaria em seu apartamento para vistá-lo. Levou consigo algumas frutas frescas.
_ Não precisava se incomodar. Você já está fazendo tanto por mim, amiga.
_ Ah, não se preocupe. É um prazer ficar com você e te fazer uns mimos.
Patrícia dizia andando em direção á cozinha. Abriu a geladeira e se surpreendeu por essa está quase vazia.
_ Lê, você precisa fazer umas compras. O que anda comendo? Se bem que julgando pela sua aparência, você não deve tá comendo nada. Eu vou preparar uma vitamina de banana pra você... cadê a Vanessa?
_ O Júlio mandou a motorista dela vir buscá-la. Mandou dizer que extrapolamos, que os dias úteis são dele.
_ Pra que isso, gente?! A menina não está em férias?! Júlio é tão mesquinho._ enquanto falava, Patrícia preparava a bebida de banana batida ao leite.
Leandro respirou fundo, buscando um pouco de fôlego para falar mesmo sentindo a dor dos ferimentos emocionais.
_ Ele fez isso para me machucar. É o que ele sempre faz._ Leandro não conseguiu uma lágrima, que limpou com as costas da mão.
_ Eu não suporto te ver assim.
_ Como está a livraria? Eu prometo que amanhã mesmo, vou até lá. Você já teve trabalho demais.
_ Ah não se preocupe que tá tudo muito bem. A Val contratou um rapaz para me ajudar.
_ Eu não acredito que mais uma vez estou dando trabalho pra Valéria. Eu sou mesmo um péssimo amigo.
_ Não diga isso, homem de Deus! O rapaz é de confiança. O nome dele é Nicolau. É meu vizinho e conheço desde criança. É um ótimo menino e trabalha muito bem. Ele estava mesmo precisando de trabalho.
_ Mas eu não tenho dinheiro para contratar outra pessoa e não é justo que a Valéria pague!
_ Não tem dinheiro agora, mas terá depois dos eventos. E falando nos eventos.
Patrícia se aproximou entregou o copo para Leandro. Retirou do um pen drive do bolso da calça jeans.
_ O Abner contratou um designer gráfico para elaborar os trabalhos da divulgação dos eventos. O designer gráfico fez várias opções e o Abner deixou que você elegesse a que mais te agradasse antes de mandar para a gráfica, ou postar no perfil da livraria e da editora. Como você o bloqueou, eu não me senti a vontade de passar o seu número para ele. Aí ele me pediu para entregar o pen drive.
"Eu tomei a liberdade de pedir o Nicolau para dar uma limpeza no quintal da livraria, comprei umas plantas e flores para enfeitar o jardim, para que tudo fique lindo nos dias do evento."
_ Obrigado por tudo.
Patrícia o fitou por um instante, como se conseguisse ver o fundo da sua alma. O seu olhar era compadecente.
_Leo, eu sei que você ficou muito mal com toda aquela briga. Mas não foi isso. Eu trabalhei na cobertura por anos, sei muito bem o quanto Júlio usava as palavras para te machucar. Era o canal de violência dele, já que é fraco demais para usar a física. O que aconteceu enquanto vocês dois estiveram sozinhos dentro da loja? O aquele monstro te disse para te machucar tanto.
Leandro pensou um pouco no que ia dizer. Estava pesado demais e precisava desabafar. Concluiu que não poderia fazer isso com os outros entes queridos. Não queria preocupar ainda mais os pais e a filha. Conhecia Valéria e queria evitar que a amiga tivesse mais um surto de raiva.
De todos, Patrícia era a melhor opção. Ela era compreensiva, calma e discreta. Muitas vezes, foi uma boa ouvinte e conselheira. Leandro confiava muito nela.
Ambos sentaram um ao lado do outro no sofá. Patrícia sentia o coração angustiado ao ouvir Leandro relatar o que aconteceu. No entanto, ela sentia que deveria controlar as lágrimas, não era justo provocar qualquer tipo de preocupação em Leandro, pois era ele quem precisava desabafar.
_ Eu me sinto péssimo por ter me tornado o que me tornei. O que eu conquistei? Nada. Tudo que tenho alguém teve que me dar. Eu fui um péssimo filho! Os meus pais investiram tanto em mim, tanto na minha educação e eu nunca tive sucesso profissional. Me tornei um fracassado que aos 32 anos de idade o meu pai teve que me dar dinheiro para abrir uma livraria! A vida inteira dependi do Júlio pra tudo. Eu tinha medo de não dar conta da minha própria vida sem ele e por isso me mantive numa relação que estava infeliz. Eu fui um péssimo pai. Eu nunca me ocupei com nada de útil, a única coisa que tive que fazer era educar essa menina e olha que está acontecendo, Patrícia...olha como ela está se comportando._Leandro dizia entre lágrimas, soluçando.
Patrícia o abraçou com força, compadecida.
_ Não! Não e não! Não é você quem está falando, é o Júlio! Ele enfiou todas as essas coisas na sua cabeça! Você é um ótimo pai, tem cuidado da livraria muito bem e não tem nenhuma culpa do que aconteceu com a Vanessa. O Júlio está com raiva porque você não quer voltar pra ele...ele só quer te infernizar. Não permita que isso aconteça.
_ Eu estou me sentindo muito cansado, Patrícia. Não consigo me mexer e estou me tornando um fardo pra todo mundo. A minha mãe está com muitos problemas, mas se sacrifica pra vir pra cá cuidar de mim. A Vanessa é só uma menina e está fazendo coisas que não está acostumada. Sem contar nas responsabilidades que você e a Valéria estão tendo com a livraria...tudo isso tá me deixando tão mal.
_ Ei! Não se sinta assim. Todas nós estamos fazendo tudo isso porque te amamos. E não é um fardo cuidarmos de quem amamos. Eu também sou mãe, eu passaria por qualquer coisa para cuidar dos meus filhos. É isso que a Angela está fazendo sendo mãe, essa é a nossa natureza. A Vanessa não vai morrer se fizer alguma tarefa doméstica. E quanto a Livraria, nem eu e nem a Valéria nos incomodamos de cuidar de tudo.
Leandro ergueu a cabeça e enxugou as lágrimas. Por mais que sofria, desejava não desistir.
_ Não...isso não é certo. Amanhã eu vou à livraria nem que seja me arrastando. Depois vou cuidar da minha casa e parar de dar trabalho.
_ É bom que você volte a trabalhar. Você vai focar a sua cabeça em outras coisas e não vai ficar pensando nas merdas que o Júlio te disse. Eu só quero muito que você não acredite e nem deixe aquele homem te destruir.
....
Patrícia passou a tarde com Leandro. Para acalma-lo, ela preparou um chá de camomila e tentou puxar outros tipos de assunto para que Leandro pudesse se distrair.
Saiu da casa do amigo no fim da tarde.
No ônibus, a caminho de casa, recebeu uma ligação de Abner. O moreno, há dias, estava aflito para saber noticias de Leandro. Pensou em procurá-lo, mas achou prudente não ser invasivo e dar o espaço que Leandro precisava.
Através de Patrícia, ele soube que Leandro não estava bem de saúde e se sentiu culpado por isso. "Se eu não tivesse entrado na briga com Júlio, nada disso teria acontecido."
_ Ele não está bem, Abner. Eu soube de algo que eu temo muito que o Leandro tenha uma depressão profunda por conta disso.
_ O que você soube?!_ Abner perguntou preocupado.
_ A história é longa. Não dá pra falar por telefone.
_ Você está muito ocupada agora? Teria tempo pra conversar comigo? Por favor, eu estou muito preocupado com ele e preciso saber o que aconteceu.
_ Tá bom. Me encontre naquele boteco de lá de perto de casa.
_ Ok. Eu vou de moto. Num pulo chego lá.
_ Puta que pariu! Eu mato aquele desgraçado!_disse Abner, socando a mesa branca de plástico do bar.
_ Pior que me deu uma dó no coração. Puxa o Leandro tá realmente triste. Ele não merece ficar daquele jeito.
_ Patrícia, Júlio me sacaneou de várias formas, chegando até mesmo a atentar contra a minha vida. Eu fui capaz de deixar tudo pra trás...relevar mesmo. Peguei todo o dinheiro que adquiri e investi na confeitaria, aluguei um apartamento e dei continuidade a minha vida. Sabe... foda-se...eu não sou de viver de passado...mas eu não vou tolerar o que aquele desgraçado está fazendo com o Leandro! Ah, não vou mesmo! Leandro é a melhor pessoa que já conheci na vida. Eu o amo muito e o sofrimento dele me machuca. Eu preferia até que fosse eu que estivesse sofrendo o que ele está sofrendo. Eu não vou permitir que o Júlio faça mal a ele e saia impune! Não vou mesmo.
"Júlio se acha o fodão, o que pode tudo porque tem grana e amigos influentes, mas ele não tem noção do que sou capaz de fazer pra defender o homem que eu amo. Acabou a brincadeira, Patrícia! Júlio mexeu no meu ponto de ebulição. Aaaaah, se fosse comigo tudo bem, mas com o Leandro! Com o Leandro não! Júlio que se prepare, que eu vou botar pra foder! Pra fodeeeer!"
...
Leandro ainda não se sentia bem para sair de casa. Era como se na cama havia braços invisíveis, que prendessem o seu corpo com a intenção de o impedir de sair.
No entanto, apesar de se sentir um fracassado, Leandro não sabia desistir. Dentro dele havia um pequena força, que se esforçava muito para reagir.
Pensou que ele não deveria mais decepcionar as pessoas, não era justo deixar tudo nas costas das amigas e deixar o pai ainda mais decepcionado. Imaginou que por investir dinheiro, Genaro cobraria satisfação da situação da livraria. E ele sentia muita vergonha em ter que dizer que a abandonou.
Lutou contra a vontade de finitude e encarou aquele dia nascente.
Decidiu chegar mais cedo que de costume. Abriu as portas do local, e se sentiu bem aí ver que Patrícia e Valéria conseguiram manter tudo em ordem.
Assustou-se ao ouvir a porta se abrir e Abner entrar sério.
Leandro sabia que mais cedo ou mais tarde teria que se encontrar com ele para conversar sobre os eventos da editora, mas aquele não era um bom momento para isso. Desculpou-se, dizendo que o procuraria mais tarde, inventando a desculpa de que estava ocupado, resolvendo problemas administrativos.
_ Nós precisamos conversar._ Abner disse com firmeza, demonstrando que não desistiria tão fácil.
_ Abner, por favor, eu não tenho condições de conversar com ninguém agora.
_ A Patricia me contou tudo.
_ Sério?! Que merda! Eu confiei nela! Não acredito que a Patrícia me traiu desse jeito! Que decepção!
Leandro ficou indignado com a amiga. Ele não esperava que ela o trairia daquele jeito. Ninguém deveria saber disso. Muito menos o Abner! Planejava ralhar com Patrícia assim que ela pusesse os pés na livraria.
_ Ela não te traiu. Não fez por mal. Patrícia está muito preocupada contigo.
_ Ela tinha esse direito! Porra, eu confiei nela!
_ Por que você está escondendo isso das pessoas? Por que está protegendo o Júlio?
_ Isso não é da sua conta! E eu não estou protegendo ninguém!
_ Está sim! Vanessa soube disso? Ou você vai deixar que Júlio saia como vítima a vida inteira? Eu tenho certeza que ele deve estar enchendo a cabeça dela contra a ti. Quer sair como o vilão dessa história e ele como vítima? Quer que ela volte a te odiar?
Leandro permaneceu em silêncio, temendo que isso acontecesse.
_ Leandro, eu sei que você quer proteger a Vanessa, mas ela precisa saber quem realmente o Júlio é e tudo de ruim que ele te faz! Assim dificulta para que ele a manipule.
E além disso, você não pode tomar tudo o que ele disse como verdade.
_ Você não me conhece... não sabe de nada.
_ Eu te conheço sim. Sei o quão maravilhoso você é.
_ E quem diz isso? O homem que quer me comer. Você acha o quê? Que é só vir aqui, me dizer meia dúzia de frases motivacionais que eu vou correndo pra sua cama? Abner, me dê licença que eu tenho mais o que fazer.
_ Eu não estou me importando com os meus desejos sexuais. É claro que quero te comer sim. Mas esse não é o foco. Leandro, eu quero te mostrar a verdade.
"Você não é um fardo. Os seus pais investiram muito dinheiro na sua educação, mas não foi dinheiro jogado fora. Olha pra você! Você é um homem inteligente, é culto, é muito talentoso. Eu vi todas as coisas maravilhosas que é capaz de fazer quando estive na sua ex casa. Os seus desenhos são incríveis, as duas esculturas são perfeitas, você manda muito bem no piano, tem uma ótima dicção em todas as cinco línguas que fala! Sem contar que manja muito bem de alta literatura!
"Amor, você quase concluiu um mestrado! Se não fosse o Júlio teria conquistado muito mais coisas. Você tem um potencial enorme! E aquele desgraçado sabe disso e é por esse motivo que ele sempre quis cortar os seus braços. Mas você é uma rocha no meio da tempestade. Apesar de o Júlio sempre te pôr pra baixo, você deu a volta por cima e conquistou a sua independência financeira."
_ Mas...
_ E não me venha me dizer que foi o seu pai quem te deu...pro caralho! O seu pai só te deu a grana, tudo isso aqui é fruto do seu trabalho! Foi você com sua criatividade e competência que fez esta livraria.
"Você não pode se culpar sozinho por causa do comportamento da sua filha. Você é um ótimo pai, deu o seu melhor para ela. Mas o Júlio sempre estragou tudo! Ele é como uma aranha pessonheta, que aprisiona todo mundo na sua teia através da manipulação. Nós que somos adultos fomos manipulados por ele, imagina ela que é uma pirralha? E pelo que fiquei sabendo nem conta dela ele dá. Qualquer coisa que acontece, ele te liga para resolver.
"Você sempre foi podado quanto a educação da sua filha. Nunca pode fazer do seu jeito, porque o Júlio intervia a mimando. Mas você não é de se deixar abater. Você é tão foda que tomou as rédeas da situação...chegando até impor limites a ela.
"Meu bem, o Júlio pintou o próprio retrato da sua alma medonha, fedida e pobre e quer te fazer pensar que esse retrato é o seu. É ele que é tudo aquilo que ele te acusa ser!
"Pense comigo. Reflita só um pouco. Júlio pode ter conseguido adquirir muito dinheiro ao longo da vida...e do jeito que é mau caráter, garanto que fez muita merda pra conseguir isso. Mas ele não tem o seu brilho. Enquanto Júlio manipula e compra pessoas, você as conquista.
"Você não é um peso para ninguém! As pessoas te ajudam, porque você conquistou o amor, a admiração e o respeito delas. Eu não conheço os seus pais, mas eu sei que você é um ótimo filho. Você é tão bom, que foi capaz de perdoa-los mesmo depois de todo mal que eles te causaram, ajudando o Júlio a te manipular. Isso mexeu com eles. É por isso que o seu pai resolveu te ajudar...foi por gratidão e não porque você é um peso. Amor, se ele te deu o dinheiro para abrir a livraria é porque ele confia em você. Confia no seu potencial! Ele sabia que você não jogaria o dinheiro dele na lata do lixo.
"Agora olhe em volta e veja que ele estava certo em confiar em você. Olha o ótimo trabalho que você está fazendo!
"Carinho, a Valéria e a Patrícia te adoram tanto ao ponto de fazerem tudo pela sua felicidade! Elas não têm pena de você! Elas te amam e por isso te querem bem! Leandro, você é tão maravilhoso que conseguiu conquistar boas amizades. E isso o Júlio nunca vai ter, porque ele não tem amigos, tem bajuladores. Quando você teve dificuldades as suas amigas te ajudaram. Já ele, se tiver dificuldades, todos os bajuladores vão se afastar, porque não verão mais utilidades em suportar a presença abjeta dele.
"E mais, apesar de Valéria ter te dado um emprego, você mostrou competência para se manter nele. Você conquistou o amor da Patrícia de uma forma, que ela teve a coragem de abrir mão do próprio emprego na casa do Júlio para testemunhar a seu favor! Tem que ser muito foda para despertar tanto amor nas pessoas como você desperta.
"Leandro, você conseguiu conquistar o meu amor! O meu! Eu era o seu rival, porra! Eu fui amante do seu marido! E você me conquistou!
"Não é justo que você permita que o Júlio continue a te cegar. Você é um homem maravilhoso! Você é luz, você é foda, você é incrível! E não estou dizendo tudo isso só porque quero te comer! Eu só quero te mostrar a verdade! Talvez você nunca mais queira voltar pra mim, mas apesar disso, eu só quero o seu bem, quero que seja feliz, quero que enxergue o seu potencial e que nunca mais permita que nem o Júlio e nem ninguém minta pra você, te fazendo pensar que é um fracassado, porque você não é."
Leandro abaixou a cabeça, deixando as lágrimas caírem.
_ Eu sei que não é fácil. Não basta eu chegar aqui e te dizer tudo isso e esperar que você fique feliz de uma hora pra outra. Oh meu bem, você foi submetido a anos de abuso psicológico e está muito machucado. Mas a cura não é impossível! A sua recuperação será gradativa. Todos nós que te amamos acreditamos em você. Você ainda vai conseguir mandar pro caralho todo o mal que o Júlio te causou e vai enxergar o cara foda que é. Eu quero que saiba que você não está sozinho. Pode contar comigo sempre que precisar. Eu vou fazer o que for preciso para te apoiar, mesmo que você nunca mais queira nada comigo. Muito mais importante do que os meus desejos é a sua felicidade.
Abner abriu os braços oferecendo um abraço. Leandro o olhou por alguns segundos sem conseguir dizer nada, permanecendo no mesmo lugar.
_ Eu sempre estarei aqui pra você. Mas quando você conseguir conquistar a vitória, o mérito será todo seu. Cabe a mim estar na platéia te aplaudindo.
Leandro não sabia definir o que estava sentindo naquele momento. Era tudo muito confuso e intenso. A única coisa que sentia era uma necessidade de alívio.
Por impulso, se atirou nos braços de Abner, onde chorou tanto, tanto até se sentir mais leve. A cada lágrima derramada era como se algo ruim espelia do seu coração, o deixando mais leve.
Abner o envolvia num abraço protetor e aconchegante. Acariciava os cabelos de Leandro, dando beijos no seu rosto e ombros. Apertava-o com carinho, transmitindo todo o amor que sentia, o que fez com que Leandro, sem saber, como recebesse uma energia boa.
_ Obrigado._ Leandro agradeceu, se afastando um pouco e enxugando as lágrimas. Queria se recompor antes que algum cliente chegasse.
....
Júlio despertou com os gritos de Vanessa. Ela entrou no seu quarto, e o sacudiu chamando por ele para que despertasse.
_Pai! Pai! Acorde! A polícia está lá na sala!
_ Como assim?! O que aconteceu?!
_Eu não sei! Mas eles disseram que tem uma mandato de prisão contra você!
_ Contra mim?!_ Júlio perguntou assustado. O coração batia em disparado. Imaginou que Irene ou Luciano haviam o entregado.
_ Merda!
_ O que está acontecendo, pai?_ Vanessa perguntou trêmula.
Às pressas, levantou da cama e ligou para Rubens.
_ Bom dia, chefe soberano.
_ Fodeu! A casa caiu! A polícia está aqui.
_ Como assim?!
_ Eu não sei. Mas venha até aqui agora. Vou precisar dos seus serviços.
_ Ok. Estou indo.
Júlio encerrou a ligação e desceu normalmente até o primeiro andar da cobertura. Dois policiais o aguardavam na sala.
_ Senhor Júlio Medeiros?
_ Sim.
Mesmo aflito, Júlio procurou manter a calma, o que ele sabia como advogado que era o melhor a se fazer nesse tipo de situação. Os policiais disseram que ele seria encaminhado até a delegacia para ficar detido por descumprir uma ordem judicial, violando a ordem de restrição de se manter 500 metros de distância de Abner.
_ Como assim?_ perguntou Vanessa indignada e ao mesmo tempo revoltada por Abner ter denunciado o seu pai.
Por alguns segundos, Júlio sentiu alívio que o motivo da sua prisão não ter sido denunciado por Irene. Mas, ao cair em si, sentiu um ódio feroz pela atitude de Abner.
_ Isso só pode um equívoco.
_Não há equívoco nenhum. Há gravações da câmera de segurança da livraria e testemunhas. O senhor também está sendo processado pela vítima por lesão corporal.
_ Como assim pela vítima? Desde quando o Abner é uma vítima? Ele machucou o meu pai! Vocês não estão vendo como o rosto dele está cheio de hematomas?
_ O senhor precisa nos acompanhar agora. _ disse o segundo policial.
Vanessa tentou argumentar perdendo o controle, mas Júlio pediu para que ela se acalmasse e disse a Rubens, assim que ele chegasse, para qual delegacia estava sendo encaminhado.
_ Ligue para a minha tia e peça para que venha para cá ficar contigo, filha.
_ Mas e você, pai?
_ Eu vou resolver essa situação.
Quando Rúbens chegou na delegacia, se assustou com o grande número de repórteres que cercaram o seu carro, fazendo perguntas sobre o caso, o que o deixou assustado.
Entrou com dificuldade na delegacia e foi direto solicitar para conversar com o delegado. Enquanto aguardava, olhou pelo vidro das janelas o número descontrolado de repórteres sedentos por informação.
_ Dessa vez o Abner pegou pesado. Eu tenho certeza que além da denuncia, foi ele quem convocou a impresa. Toda essa má exposição não é nada bom para os negócios do Júlio._ Rúbens disse a si mesmo, temeroso.