Jéssica, minha esposa, soube que havia algo errado tão logo seus olhos caíram sobre mim. Não se vive com uma pessoa por mais de uma década sem pegar as nuances da linguagem corporal do parceiro - e seus significados.
"O que houve? Aconteceu algo?", ela perguntou, colocando a sacola de compras sobre a mesa.
Ali eu estivera na última hora e meia. Nesse tempo todo, debati bastante comigo mesmo se devia dizer a verdade a ela ou inventar alguma desculpa. 'Falar a verdade' acabou vencendo em uma votação apertada.
"Eu recebi uma mensagem. De Laila."
Ao ouvir aquele nome, Jéssica teve um sobressalto, o qual ela tentou esconder. "Oh. O que dizia?", perguntou, um destempero controlado em sua voz.
"Quer me ver.", respondi, ainda encarando a televisão desligada. Pude ouvir sua respiração ficando pesada.
"E...?", ela perguntou, após longa pausa.
Pela primeira vez naquela conversa, eu olhei pra ela.
"Eu vou.", falei.
"O QUÊ?", ela esbravejou, jogando pro alto qualquer pretensão de parecer calma.
"Eu vou.", repeti baixinho, olhos fechados.
"Você VAI? Você... Ela... Não...", Jéssica tentava articular seus pensamentos por entre a torrente de sensações que vivenciava. Logo, desistiu, e levou ambas as mãos ao rosto.
Eu me levantei e fui até ela. Dei-lhe um abraço, e fiquei feliz quando ela não tentou se afastar.
"Amor..."
"Como você pode fazer isso? Depois de tudo pelo que passamos? Tudo o que ela—"
"Não é nada de mais. Apenas farei uma visita. Não...", me interrompi. Quase perguntara a ela 'Não confia em mim?'. Ainda bem que me detive. Não tinha o direito de fazer essa pergunta.
Expliquei a ela os 'comos', 'quandos', 'ondes' e 'porquês'. Iria me encontrar com Laila, conversar, e voltar. Nada de mais.
Ela ficou calada, apenas me olhado, quase como se estivesse catatônica.
"Te amo.", falei. Saí sem esperar por uma resposta que não sabia se viria.
Não quero passar aqui a ideia de que Jéssica é afeita a chiliques ou uma pessoa desequilibrada. Pelo contrário, ela é bem calma e equilibrada. O único assunto que a fazia perder as estribeiras era justamente Laila.
Eu conheci Laila em 2010. Meu casamento com Jéssica estava em seu primeiro ano. E que ano aquele havia sido. Perdera minha mãe em janeiro, leucemia. E, em agosto, meu pai entrou com o carro - um opala 1974, verde, super bem conservado - debaixo de um caminhão. Havíamos nos mudado, eu agora estava bem longe dos meus amigos. E, no meio disso tudo, eu havia trocado um emprego que amava por um que odiava, mas que pagava mais.
O peso de todas essas tragédias e mudanças foi se acumulado, até que causou uma erupção. Na primeira semana de setembro, tive um colapso nervoso.
Eu nem me lembro do que aconteceu, só fiquei sabendo quando Jéssica me contou, mais tarde. Segundo ela, estávamos no meio de uma discussão boba. 'Tinha a ver com o local onde guardei as toalhas, algo assim', ela disse. Não era uma discussão acalorada nem nada. 'Aí você parou de falar no meio de uma frase. No meio de uma palavra, até. Simplesmente se levantou, vestiu uma calça e saiu porta afora.'
Fato foi que, quando eu dei por mim, estava na BR-101, já ao norte de Macaé. Levei um susto. Parei no primeiro lugar que apareceu, um posto de gasolina/parada de caminhões. Comprei uma garrafa de vodca barata na loja de conveniência e passei a noite bebendo. No dia seguinte, quando a ressaca foi embora, voltei pra estrada. Não de volta pra casa, mas seguindo pro norte. Não tinha a menor ideia do que estava fazendo.
Por sorte, havia uma mochila minha com algumas roupas, vestígios de uma viagem que fizera com amigos alguns meses antes. Além disso, só contava com a roupa do corpo, carteira, e um livro do Raymond Carver.
A partir daí, fui seguindo o mesmo modus operandi. Ir dirigindo até ficar cansado, achar um posto/parada onde pudesse passar a noite e beber, esperar a ressaca passar e cair na estrada novamente.
Cheguei até Itaipava, no Espírito Santo. Como de praxe, procurei um barzinho.
Era um bar aconchegante, direitinho, temática de rock (como fiquei sabendo mais tarde, o dono havia tido uma banda nos anos 80). Sentei e pedi uma bebida, no que fui prontamente atendido. Enquanto bebia, pensava no que fazer. Aquela pequena "viagem" fora boa para espairecer, mas agora era hora de voltar, não era?
Não era?
"Oi.", ouvi alguém dizer.
Eu me virei e vi uma mulher sentada a uns dois bancos de distância. Era loira e tinha lindos olhos verdes.
"Oi.", respondi.
Aquela situação já tinha acontecido algumas vezes durante essa minha viagem. Das outras vezes, a coisa se desenrolara de forma quase idêntica: uma mulher puxava papo, e eu me derramava em lágrimas e lamentos contando a sucessão de acontecimentos trágicos que havia se desenrolado naquele ano. Isso, claro, costumava afugentar as interlocutoras, em variados graus de rapidez.
Mas, daquele vez foi diferente. Chega de lamúrias e choradeira. Resolvi levar a conversa de forma diferente. Conversamos bastante, e fui cada vez mais arrebatado por ela, sua voz, seu sorriso.
"Desculpa, o quê?", perguntei. Inebriado por ela como estava, acabei não prestando muita atenção no que dizia.
"Perguntei seu nome."
"Ah. Sou Marcos.", respondi, estendendo-lhe a mão.
"Laila.", ela respondeu, pegando-a. "Você é de onde?"
"Rio. E você?"
"Sou mineira, caso meu sotaque não tenha entregado ainda" Tinha. "Mas moro aqui."
"Ah... Parece ser uma cidade bacana.
"E é. No começo, eu odiava. Mas devia ser pela forma como vim parar aqui."
Ergui a sobrancelha. "E como foi?"
Ela deu uma bebericada no drinque, e depois passou a mexer nela com o canudo. "Vim com meu marido. Não estamos mais juntos."
"Ahhh."
"Estávamos fazendo uma viagem. O casamento não ia bem, resolvemos fazer uma viagem pra ver se a coisa melhorava. Não adiantou muito, só passamos a brigar em novos locais.", ela disse, um sorriso triste cruzou seu rosto. "Então, ele foi embora. Simplesmente, foi embora. E me deixou aqui." Minhas sobrancelhas se ergueram. "Achei que ele tivesse ido beber, ou ido fazer compras, sei lá. Mas o tempo ia passando, e nada dele voltar. Até que o atendente do hotel veio me dizer que ele havia ido embora. Me deixou aqui, só com a roupa do corpo." Lágrimas começaram a aparecer. "Por sorte, consegui um emprego na pousada. Desde então, vivo aqui. Quase um ano."
"Sinto muito." Foi tudo o que consegui dizer.
"Ah, não precisa. Já estou quase superando." ela disse, limpando com as costas das mãos as lágrimas que contradiziam suas palavras. "Enfim, chega de bad vibes. Dança comigo?".
"Não sei... Nunca dancei."
E era verdade. Até porque eu não era muito de sair. Cresci ouvindo histórias do meu irmão mais velho, que cresceu durante os anos 90, e ia às famosas matinês da noite carioca. Lembro até hoje dele contando sobre a matinê que tinha um banho de espuma. Eu ficava fascinado. Quando cheguei à adolescência, e finalmente comecei a sair, achei tudo bem aquém do esperado - não havia toda aquela mágica que imaginava nas histórias do meu irmão.
"Oxi... Então, é uma boa hora pra aprender.", retrucou ela.
Antes mesmo que eu pudesse responder algo, ela me agarrou pela mão e me puxou.
Naquela noite, o som tocado era new wave/synthpop. Apesar de não ser minha praia, eu conhecia alguma coisa. Tocaram I Ran, do A Flock of Seagulls; Cars, do Gary Numan; White Wedding, do Billy Idol (que era a que tocava quando ela me arrastou pra dançar); dentre outras que não lembro ou não conhecia.
Eu já estava exausto, então aproveitamos que começou uma música mais lenta para diminuirmos o ritmo.
"Essa música..."
"O que tem?"
"Gostei dela. Sabe o nome?"
"Don't You Forget About Me." Música que eu conhecera assistindo ao clássico O Clube dos Cinco.
"Hm. E o que isso quer dizer? Você sabe?"
"Quer dizer: 'Não se esqueça de mim.'"
"Hm...", ela disse. Encostou a cabeça no meu peito, e dançamos o resto da música assim, coladinhos.
Depois dela, voltamos pro bar. Pedi algo pra comer.
"Não quer ir pra um lugar mais... Reservado?", Laila perguntou.
"Hm? Para quê?", retruquei, dando uma de desentendido.
"Pra eu chupar seu pau.", ela disse, abrindo um sorriso ferino. "E algo mais, quem sabe."
Eu já imaginava quais eram suas intenções, mas a franqueza me pegou de surpresa. "Hã... Eu gostaria disso."
"Então, onde você está ficando?"
"Ali.", eu falei, apontando pro meu carro pela janela.
"Tá dormindo no seu carro?"
"Sim. Quase uma semana que não sei o que é deitar numa cama."
"Que horror!" Ela me agarrou pelo pulso. "Vem, moro aqui perto."
E era, literalmente, perto. Menos de 20 metros do bar. Já passamos pela porta nos amassos. Ela arrancou minha camisa, e, depois, sua própria. Sutiã, cueca, calças... Voavam pelos ares. Ela me conduziu até a cama, e me empurrou.
Uma imagem de Jéssica cruzou minha mente, e me senti mal. Abri a boca para dizer algo, mas Laila colocou seu dedo indicador sobre meus lábios.
"Shhhh. O mundo lá fora não importa. Aqui dentro, só nós existimos.", ela disse, me beijando em seguida. Logo, ela montou em mim e começou a cavalgar. Ela gozou, mas continuou quicando ferozmente. Logo, era minha vez, derramando bastante porra dentro dela.
Transamos mais quatro vezes naquela noite.
No dia seguinte, ela me apresentou ao seu "chefe", na pousada. Ele me arrumou um emprego, sendo um "faz-tudo". O dinheiro não era lá essas coisas, mas dava pra ir vivendo. E, vivendo eu fui. Morava com Laila, éramos praticamente namorados. O sexo era excelente.
Os dias viraram semanas, que se transformaram em semanas. Era como um sonho. Viver naquela local paradisíaco, com aquela mulher linda. Mas, no fundo da cabeça, bem no fundo, havia aquela vozinha. Chame de consciência, anjo da guarda ou o que quer que seja. Lá estava ela. E, a cada dia que passava, ficava mais alta. E, o que ela dizia, era: "Jéssica."
No dia seguinte, eu liguei pra casa. Ela atendeu, um desespero evidente em sua voz, o que me fez ficar ainda mais envergonhado. Disse que era eu, que estava vivo, e que ainda ia passar mais alguns dias fora.
Com o passar dos dias, Jéssica ia ocupando minha mente mais e mais. Ficava me lembrando de como nos conhecemos. Nosso primeiro encontro. Nossa primeira transa. E, claro, nosso casamento. 'Sim, seu casamento.', a voz em minha cabeça disse. 'Você ainda é casado, esqueceu?'
Naquele dia, esperei Laila chegar.
"Nossa, que cara é essa?"
"Precisamos conversar."
Ela viu que a coisa era séria. Sentou-se na cama.
"Eu... Sou casado.", disse. Sentia a vergonha em minha voz.
"Oh. Bem, eu já imaginava. Não disse nada porque... Bom, assunto delicado."
"Eu... Eu preciso voltar pra casa."
"Precisa mesmo?"
Baixei a cabeça. "Sim."
Ela colocou sua mão sobre a minha. "Fica. Fica comigo.", ela disse.
"Se eu não voltar, como serei melhor do que o seu marido?", retruquei.
Laila começou a chorar.
Queria ir até ela e lhe dar um abraço. Mas, sabia que, se fizesse isso, não conseguiria ir embora.
"Eu te amo. Nunca vou te esquecer.", falei.
Saí.
O caminho de volta foi longo. A cada momento, batia a vontade de dar meia-volta. Por que fazer a coisa certa era tão difícil?
Eventualmente, acabei chegando em casa. Jéssica estava aliviada em me ver.
Foi necessário um pouco de terapia, mas acabamos nos acertando. Ela me perdoou.
Mas nunca perdoou Laila.
Pilha de nervos como estava, acabei indo de Uber. Durante todo o caminho, imaginava os possíveis cenários em minha cabeça. Será que eu ficaria sem palavras? Ou diria algo estúpido?
Finalmente, cheguei ao meu destino: o hospital.
Naveguei pelos corredores até chegar ao quarto dela.
Vê-la daquela forma foi difícil.
"Marcos, você veio."
"Claro.", respondi, abrindo um sorriso.
"Não queria que me visse assim."
"Do que está falando? Você está linda."
Ela riu. Seus parentes nos deixaram a sós. Conversamos um bocado. Foi como se aquela década de separação não tivesse existido. Nossa química continuava alta.
Ela contou que estava com câncer. "Terminal, infelizmente. Mas fico feliz de ter encontrado com você uma última vez.", ela disse.
"Eu também." Comecei a lacrimejar.
A enfermeira avisou que o horário de visita tinha acabado.
Eu me curvei sobre Laila e lhe dei um beijo na testa.
Uma semana depois, recebi a notícia de que ela tinha morrido. Era uma sexta-feira.
Após o trabalho, parei num barzinho. Nele, havia um grande jukebox, onde era possível escolher músicas. Mas, para escolher, era necessário comprar uma ficha. Havia fichas de várias cores, de acordo com a prioridade de cada uma. Eu comprei uma de maior prioridade. Coloquei no jukebox, e naveguei pelo menu até achar a que eu queria. Ela seria tocada após a atual música, o que me deu tempo de pegar uma bebida. Tão logo os primeiros acordes de Don't You (Forget About Me) começaram, eu fui pra pista de dança. O público, muito jovem em sua maioria, não deu muita bola. Mas não me importava. Não precisava de, e nem queria, um parceiro. Fiquei ali, dançando devagar e sozinho, enquanto me perdia em pensamentos. Pensava em como havia conhecido a pessoa certa na hora errada. Em como aqueles dois meses em Itaipava com Laila eram pra mim um pedacinho de paraíso, um lugar onde minha mente podia buscar abrigo em períodos complicados da vida. Em como eu era feliz por ter aquilo.
E em como eu nunca a esqueceria.