A viagem para Campos do Jordão foi perfeita. Eu nunca transei tanto na minha vida. Acho que "batizamos" todas as áreas da mansão do Henrique. Infelizmente, tivemos que voltar para a realidade. A minha primeira missão em São Paulo foi visitar a Pamela, viúva do Fábio. Ela parecia muito abatida, mas estava disposta a saber se estava ou não com o vírus do HIV.
Marcamos em uma clínica cedo pela manhã. O Henrique foi nos deixar, mas tinha um trabalho da faculdade para fazer com os colegas, ou seja, éramos apenas, Pamela e eu. Ao entrarmos na clínica fomos até o guichê e pegamos uma ficha.
— E se der positivo? — questionou Pamela, provavelmente nervosa e desesperada.
— Vamos conversar com o médico e saber a melhor maneira de tratar isso. — garanti, pegando em seu ombro e sorrindo. — Como diria o Fábio, o jogo só termina quando acaba.
— Esse filho da puta. — soltou Pamela, chorando e rindo. — Apesar de tudo, eu não consigo ficar com raiva dele.
— Imagino, Pamela. Foram anos de relacionamento. Você só precisa focar na sua saúde e mostrar para aquele desgraçado o que é viver de verdade. — aconselhei e me toquei que poderia usar o meu próprio conselho. — Sabe, o meu pai me deu uma surra quando eu era adolescente. O velhote descobriu que eu gostava de homens. Foram duas horas de agressões, inclusive, papai quebrou meu braço e não parou de me agredir. Eu apaguei e fui parar no hospital.
— Meu Deus, Jaime. — Pamela fez uma expressão de surpresa e limpo as lágrimas. — Eu sinto muito. Ninguém deveria passar por isso.
— Sim. A partir de então, o meu pai passou a me tratar pior do que o lixo e...
— A sua mãe? — perguntou Pamela, que prestava atenção em cada palavra.
— Tadinha da dona Amélia. Ela era submissa. Não me defendeu nenhuma vez. Eles passaram a fingir que eu não existia. A única que ficou ao meu lado foi a Lúcia, uma moça que a mamãe trouxe do nordeste para ajudar nos serviços da casa. — expliquei, dando uma pausa e respirando fundo. — A partir daquele momento, eu não tinha mais vida. O papai vigiava cada passo meu. Eu tive que me trancar em um casulo por medo. Por isso, eu entendo parte dos atos do Fábio. Eu não estou dizendo que achei certo, Pamela, muito pelo contrário. Tanto que eu nunca casei ou tive filhos. Eu sei o que sou. Eu sei as coisas que eu sinto. Eu só tive medo de seguir e...
— Com licença. — Henrique atrapalhou a nossa conversa, algo que me desesperou.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei levantando. Será que ele ouviu todo o desabafo?
— A Pamela esqueceu a carteira no carro.
— Oh. — Pamela soltou, enquanto olhava dentro da bolsa. — Meu Deus. Estou tão avoada. Obrigada, Henrique.
E agora, será que o Henrique ouviu o meu desabafo? Eu não sou muito de contar essa história, porque me faz reviver toda a dor que eu senti. Aparentemente, ele está normal. Conversamos sobre aleatoriedades até o número da Pamela ser chamado. Ela pegou suas coisas e seguiu para a ala de exames.
Eu vou para a cantina do lugar tomar um café, ainda preocupado pelo fato do Henrique saber a minha triste história de vida. Eu não quero parecer uma vítima sofredora. Eu não quero que o Henrique me olhe de maneira diferente. Uma vez que ele é o bem sucedido da relação, enquanto eu, aos 48 anos, tenho apenas uma casa, que ganhei de um homem horrível e prepotente.
A minha atenção volta para a Pamela que entra nervosa na cantina. Ela fez uma bateria de exames e os resultados sairiam nos próximos 30 minutos. Eu posso dizer que fiquei nervoso por ela, afinal, em um breve espaço de tempo a Pamela saberia se estava ou não com o vírus. Tomamos um café para distrair a cabeça e continuei contando as histórias da minha juventude.
Nada melhor do que contar uma história trágica para quem já está na merda. A Pamela ficou horrorizada, quando contei da vez que os meus pais saíram de férias para a Europa e me deixaram trancado no quarto. O meu pai colocou uma grade na porta só com espaço para a Lúcia colocar comida e água.
— Jaime, que horrível. — Pamela disse.
— Sim, o velho era sádico. Quase um estagiário de Hitler. — comentei soltando um riso abafado.
— E esse tratamento durou quanto tempo? — ela quis saber, descansando a xícara sobre a mesa e cruzando os braços.
— Anos. Só melhorou quando entrei na faculdade. Em seguida, a minha mãe morreu e tive que cuidar do meu pai. Com o dinheiro da aposentadoria dele, eu o coloquei em um asilo. Eu não fiz velório e nem nada. Foi como se um peso tivesse saído das minhas costas. — revelei.
— Você sofreu tanto. — Pamela começou a chorar. — Nem imagino as coisas que passavam na cabeça do Fábio.
— Ele vivia em conflito, Pamela. Mas tenho certeza que era feliz. — disse para tranquilizá-la.
— O Fábio nunca me deixou faltar nada, nem na morte. Vou ganhar uma pensão boa. — Pamela me contou, mas a nossa conversa foi atrapalhada pela enfermeira.
Parece que o corredor ganhou uma área maior. Conforme caminhávamos para o consultório, o meu coração batia mais forte. O problema não era nem comigo, mas a Pamela conseguiu a minha simpatia e atenção. Entramos e sentamos na cadeira à frente da médica. Ela segurava o prontuário da Pamela e sorriu quando nos viu.
— Doutora, por falar a verdade. — implorou Pamela chorando, então, peguei em seu ombro.
— Os resultados deram negativos para qualquer tipo de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). — contou a médica, que deixou os documentos sobre a mesa.
— Mas, doutora, o meu marido era soropositivo e...
— Na entrevista, você afirmou que não transavam com frequência. E o seu próprio marido usava as caminhas para evitar gravidez. Talvez, ele tenha salvado a sua saúde.
— Não acha melhor refazer o exame? — perguntou Pamela, ainda assustada com a notícia.
— Não acho necessário. Mas podemos refazer em seis meses. — orientou a médica, tirando os óculos e sorrindo. — Pamela, você está ótima de saúde. Isso é coisa para comemorar.
Comemorar? A médica não tem o contexto da história. Talvez seja por isso que não entendeu a crise de choro que Pamela teve no consultório. Na saída, ela nos entregou vários panfletos sobre saúde sexual. Do lado de fora da clínica, a Pamela e eu continuávamos sem reação. No fim das contas, o Fábio não infectou a esposa e sua vida foi perdida por um medo.
Quantas pessoas necessitadas passam por nós todos os dias e, infelizmente, não damos a sensibilidade certa para ajudá-las. Às vezes, até uma palavra de incentivo pode fazer a diferença entre a vida e a morte. A pior parte? Eu não estou sendo um bom amigo ou colega de trabalho. Eu fico tão preso aos meus traumas e preocupação, que não olho para quem realmente importa.
Eu me despedi de Pamela e prometi chamá-la para um café na minha casa. Ainda queria fazer algumas coisas antes do anoitecer. O Henry mandou várias mensagens para saber o resultado da minha nova amiga.
***
Henry: BB, estou preocupado.
Jaime: Negativo. Foi uma surpresa para todos, mas a clínica vai fazer outro exame daqui seis meses.
Henry: Que bom. Eu fico aliviado. Você já está em casa?
Jaime: Ainda não. Resolvendo alguns problemas na rua. Te vejo à noite?
Henry: Com certeza. Estou todo atarefado aqui. Esse trabalho está acabando conosco. Te adoro.
Jaime: Te adoro. Por favor, dê um tempo para comer algo e toma água, guri.
***
Passei em uma loja de material de construção. Estava cansado de me sentir triste e deprimido. Gastei parte da minha vida neste buraco que o meu pai criou. Eu não sou depravado. Eu não estou perdido. Eu não sou ruim. Muito menos uma decepção para todos ao meu redor. O caso do Fábio me deixou reflexivo por muitos dias. Eu quero uma mudança real para mim, tanto externo, quanto interno.
Comprei tintas e materiais para pintura. Eu decidi reformar a minha casa. Aproveitaria os últimos dias de férias para fazer algumas mudanças e transformações. Quem ficou animada com a reforma foi Lúcia, que não aguentava mais a casa toda escura e sem personalidade.
— Se eu te contar uma coisa, você promete que não vai ficar com raiva? — a Lúcia perguntou, enquanto guardávamos tudo o que eu comprei.
— Não, claro que não ficaria. — digo, pegando uma caixa de ferramentas e deixando na pilha de materiais.
— Hoje mais cedo, o Henrique me ligou e pediu para eu contar sobre a tua relação com o seu Dionísio. — revelou Lúcia com uma expressão séria no rosto.
— Eu imaginava. Ele deve ter me escutado desabafar com a Pamela. Contei do pai amável e carinhoso que tive. — sentei no chão e escorei a cabeça na parede. — Estou cansado, Lúcia. Estou cansado dele estar sempre dentro da minha cabeça. Todos os dias eu repasso o dia em que eu me assumi. Se eu faria algo diferente, se eu reagisse às agressões. Porra, eu era o filho dele.
— Oh, meu bichinho. — se ajoelhando e me abraçando. — Aquele velho babaca não tem poder nenhum sobre você. — limpando as minhas lágrimas. — Você nunca foi uma aberração ou doente. Muito pelo contrário, Jaime. No momento em que eu mais precisei, você esteve ao meu lado e estendeu a mão. O seu pai estava errado sobre você. Por isso, a gente vai reformar essa casa e deixá-la com a sua cara e não daquele velho infeliz.
— Obrigado. Eu te amo. — a abracei. — Você, você contou para o Henrique?
— Não. Isso é algo que você deve fazer, Jaime. É a sua história. A sua vida. O seu relacionamento. — ela garantiu sorrindo. — Continua sendo aquele moleque bobo.
— Tá tudo bem? — perguntou Henrique, que carregava consigo algumas sacolas.
A Lúcia nos deu licença e foi terminar os seus afazeres. Eu estou com o rosto todo inchado de tanto chorar e o Henrique parece confuso sobre toda a situação. Nós seguimos para a sala de casa e sentamos, um de frente para o outro.
— O que está acontecendo, bebê? Estou preocupado.
— Você ouviu, né? O que eu contei para a Pamela? — questionei, sem ter coragem de olhá-lo.
— Sim. — ele respondeu, pegando na minha mão e acariciando. — Sobre o teu pai, né? Olha, se você não quiser contar, eu vou...
— Não. Você precisa me conhecer de verdade, Henrique. Talvez assim você pense melhor e veja que eu não sou a pessoa ideal para você. — fechando os olhos e preparando para contar um dos meus maiores traumas para o Henrique. — Tudo começou nas férias de 1990. — respirei fundo.