São PauloO verão de 1990 foi inesquecível em muitos aspectos. Eu tinha acabado de completar 16 anos e era um dos garotos mais populares da escola. Eu fazia parte da equipe de futebol e natação. O meu pai sempre se sentiu orgulhoso em participar dos meus eventos esportivos e, inclusive, fazia festa quando o meu time ganhava. Afinal, eu era o filho que todo pai sonhava ter, né?
Infelizmente, a história não era tão simples assim. No fundo, eu escondia um segredo. Eu gostava de garotos. Eu sempre gostei e negava esse fato com todas as minhas forças. Você não tem ideia de como era difícil entrar no vestiário? Na época, criei uma máscara para esconder os meus anseios e medos.
Só que tudo mudou com a chegada do Eduardo. Na volta das férias, a escola passou por algumas mudanças em sua estrutura. Acabamos sendo enviados para colégios diferentes do bairro. Onde eu fui parar? No Colégio Espírito Santo. Isso mesmo. Estudei na escola que leciono. Mas o fato é uma mera coincidência do destino.
Me adaptar à nova escola não teve muitas dificuldades. Eu era um cara simpático e adorava conversar, além de ser bom em esportes. Eu precisava lidar com as mais diferentes situações, como por exemplo, o assédio das garotas e o ciúme dos garotos, mal sabiam que eu queria transar com eles.
A minha consagração na escola nova aconteceu durante um jogo interescolar. Literalmente, eu salvei o time nos 45 minutos do último tempo. Na hora da celebração, os meus colegas me levantaram e jogaram para cima. Tanta alegria e felicidade, uma pena que não estava aproveitando nada daquilo.
No fim do evento esportivo, segui para o vestuário e trombei com um dos alunos da fanfarra. O coitado estava com dificuldades de levar a bateria para a sala de música. Como um bom samaritano, eu o ajudei com algumas peças do instrumento.
Ele usava uma roupa engraçada e toda chamativa. No trajeto para a sala de música, nós conversamos sobre casualidades. Sua voz era bonita e me deixou interessado. Com todo o cuidado, guardamos a bateria na sala de música.
— Obrigado. — o rapaz agradeceu, arrumando o quepe da farda. — Eu me chamo Eduardo.
— Sou o Jaime. — estendi a mão e o cumprimentei. — Eu sou o Jaime. — repeti de maneira embasbacada.
— Eu sei quem você é. — ele respondeu rindo. — Não tem como você passar despercebido. Mal chegou e se tornou o assunto da escola.
— Eu sou assunto? — questionei, soltando uma risada. — E o que comentam?
— Mais do mesmo, o cara popular que chegou e está arrasando. Estão até escrevendo um artigo sobre você no jornal da escola. As meninas vão adorar. — Eduardo comentou sorrindo.
— Só as meninas? — perguntei o deixando vermelho.
— Vamos? — ele desconversou. — Não vai ser legal se trancarem a gente aqui.
Eduardo. O que eu posso dizer sobre o Eduardo? Ele é um cara magro e moreno. Seus cabelos são cortados no estilo militar e seu estilo é grunge. Na fanfarra da escola, o Eduardo toca bateria e, de acordo com os rumores, é gay.
Nem preciso dizer que ser gay nos anos 90 era complicado. O mundo vivia os impactos da AIDS e muitas vidas foram perdidas. Ah, sem mencionar que todos chamavam o vírus de "doença gay".
Apesar das brincadeiras e comentários maldosos, o Eduardo vivia normalmente, inclusive, tinha uma certa fama positiva nos alunos da escola. Com o passar do tempo, nós passamos a andar juntos, principalmente, quanto tínhamos trabalhos escolares.
Em casa, as coisas corriam sem problemas. Quer dizer, tirando o fato do meu pai ser um babaca completo. Ele fazia questão de ser desagradável com todos a sua volta. Quem mais sofria com esse comportamento era a mamãe. Eles casaram muito cedo, mas evitaram ter filhos durante muitos anos, até que "eu" aconteci. Não sou nada menos que um acidente.
— Você vai encontrar o Eduardo hoje? — perguntou Lúcia, a única que sabia do meu interesse amoroso.
— Não sei, o papai tá naqueles dias. Eu prefiro evitar bafafá. — respondi, enquanto jogava água nas flores do jardim.
— E tú vai marcar touca? — ela questiona fazendo uma careta engraçada.
— Ele é boa pinta, né? Acho que nunca gostei de ninguém assim. — assegurei.
— Espera, o teu pai não tem uma viagem de negócios? Acho que a tua mãe vai. — contou Lúcia, mais animada do que o normal.
— Acha que eu devo convidá-lo?
— Claro. Sebo nas canelas e vai ligar para o Eduardo. Posso fazer uns belisquetes. — sugeriu a minha amiga.
— Você faria isso por mim? — perguntei, quase abraçando a Lúcia.
— Oxê! Larga de frescura. Sabe que eu só quero a tua felicidade macho. — ela afirmou, continuando seu trabalho no jardim.
Mamãe e papai passariam o final de semana fora. No auge do seu negócio, o meu pai participa de muitos eventos da alta sociedade paulista. Eu cheguei a ir para alguns poucos eventos, mas o velho, simplesmente, parou de me levar. Eu nunca reclamei, pois preferia ficar com a Lúcia em casa.
Durante a semana, eu fiz o convite para o Eduardo que prontamente aceitou. Seria a oportunidade perfeita para revelar meus sentimentos e descolar o meu primeiro namoradinho. A Lúcia preparou várias comidas do nordeste e descolou algumas cervejas. Ela já era maior de idade, então, conseguir as bebidas não foi tão difícil.
O Eduardo chegou no horário certo. A gente bebeu e dançou bastante. A Lúcia acabou passando mal depois de diversas cervejas e a levei para o seu quarto. Quando voltei, o Eduardo estava trocando a faixa do disco. Era uma seleção de músicas da novela "O Salvador da Pátria". A canção que começou a tocar foi "O Tempo Não Para", do Cazuza.
***
Disparo contra o Sol
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas
Eu sou um cara
Cansado de correr
Na direção contrária
Sem pódio de chegada ou beijo de namorada
Eu sou mais um cara
***
O Eduardo começou a dançar na sala, quase tropeçou na mesa de centro, mas eu o segurei. Nossos rostos estavam próximos. Tomei coragem e o beijei. Foi o meu primeiro beijo. Eu não tinha experiência nenhuma, mas ele soube me conduzir da melhor maneira possível.
O deitei no sofá e continuamos as carícias. Tirei minha camiseta e abri os botões da camisa dele. O primeiro lugar que ataquei foi o pescoço do Eduardo, que não resistiu e soltou um grito de tesão. Nem preciso dizer que fiquei com mais vontade de beijá-lo. Nós éramos uma bagunça de beijos e carícias.
De repente, as luzes da sala se acendem. E alguém me puxa. Era o meu pai. Não deu nem tempo de explicar. Ele me empurrou contra a mesa e eu a quebrei. Em seguida, o desgraçado avançou em Eduardo. O coitado não estava entendendo nada.
— Desculpa, senhor. — pediu Eduardo se defendendo das agressões do meu pai.
— Seus pervertidos. Querem pegar AIDS? — ele questionou, agarrando pela camisa de Eduardo e o arrastando para fora de casa. — Nunca mais volte aqui! — jogando o garoto no meio da rua.
— Senhor, eu não queria...
— Nunca mais procure o meu filho ou dirija a palavra em mim. Seu maricas! — dando um tapa em Eduardo. — Maricas. — cuspindo.
Eu ainda estava deitado no chão. A mesa quebrou e havia vidro em todo o meu corpo. Isso não impediu meu pai de me pegar pelos cabelos e levar para outro lugar da sala. Ele foi implacável.
— É isso, Jaime? É isso que você quer? Gosta de um macho te dominando? — ele questionou, eu não disse nada, apenas cobria o rosto e chorava. — Eu não aceito filho viado. Ou você se converte ou eu te mato! — me chutando.
— Homem, ele já entendeu. — pediu a minha mãe, que chorava copiosamente, mas não fez nada para me defender.
— Não. Ele ainda não aprendeu a ser homem. — indo na direção da mesa quebrada e pegando um dos pés de madeira que se soltou da estrutura. — Eu sabia. Mesmo ele praticando esporte, eu sabia que tinha algo de errado. Eu na idade do Jaime já fodia todas as meninas do meu bairro. — ele se aproximou e me deu uma paulada nas costas. Eu só ouvia o choro da mamãe.
O segundo golpe acertou a minha perna. Ele ia acertar a minha cabeça, mas consegui usar o braço direito para me defender. Eu só ouvi o osso partindo e soltei um grito agudo de dor. Abri os olhos e o osso havia atravessado a pele. O meu braço estava torto para caralho.
— Eu prefiro meu filho morto! — ele gritou, levantando o bastão de madeira na minha direção.
— Não! — gritou Lúcia ficando na minha frente e abrindo os braços. — Não faça isso. Não acabe com a vida de sua família.
— Você. — soltou meu pai respirando com dificuldade. — Você tem sorte, Jaime. — jogando o taco no chão e saindo da sala.
— Jaime. — Lúcia começou a chorar quando viu a minha situação. — Eu preciso te levar para o hospital.
***
SÃO PAULO— E foi assim que eu saí do armário. — dei uma risada sem graça e olhei para o meu braço que foi quebrado. — Depois, a Lúcia me levou para o hospital. Fiquei com o gesso por quase seis meses. Então, começou outra fase maravilhosa na minha vida, também conhecida como o desprezo dos meus pais. — contei para Henrique que começou a chorar.
— Filho da puta. Desculpa, ele é o teu pai, porém, é um filho da puta. — limpando as lágrimas.
— Tá tudo bem, eu já fiz as pazes com o meu passado. — afirmei. — Inclusive, eu comprei alguns materiais para reformar essa casa. Eu não quero mais lembrar do meu pai. Ele fez a escolha dele.
— Agora eu entendo. — disse Henrique se aproximando e me abraçando. — Eu entendo porque você foi tão resistente no início. Jaime, você merece tudo de bom na sua vida. Não faço ideia das merdas que você passou, mas eu juro que vou gastar cada minuto da minha vida para te fazer feliz. — se ajoelhando no chão.
— Henrique, eu...
— Aceita namorar comigo?
Eu não posso deixar o medo me dominar. O meu pai morreu. Ele não pode me ferir. Eu preciso encontrar a minha felicidade, enquanto tenho tempo. Eu mereço isso. O universo me deve isso.
— Eu aceito. — falei me ajoelhando e o beijando. — Mas só se você me ajudar com a reforma. Quero ver um menino rico pegando no pesado.