Crônicas dos Anos 60: Quando a Noite Chama

Um conto erótico de Lemonhead
Categoria: Heterossexual
Contém 4915 palavras
Data: 31/08/2022 23:47:54
Última revisão: 29/11/2022 21:33:39

“Fala a verdade, vai.”, disse Miguel.

O ano era 1969.

“É… É a coisa mais bonita que eu já vi na vida. Sério.”, falei.

E era verdade.

A referida coisa era um opala 3800 de luxo. Lançamento, novo em folha, impecável.

“Meu pai me emprestou ele.”

“Hm?”

“Pra viagem.”

Arregalei os olhos. “Está brincando?”

“Não, não.”

“Que demais!”

Ele torceu o nariz.

“Que foi?”, perguntei.

“A Cecília vai ter que ir com a gente.”, ele disse, suspirando.

“Poxa, é sério isso?”

Cecília era a irmã caçula de Miguel, dois anos mais jovem que ele. Não era má pessoa, mas era meio pentelha. Especialmente comigo. Segundo Miguel, ela vivia querendo sair conosco, mas o pai deles não deixava. Só agora, que ela já tinha alcançado a maioridade, ele cedeu aos apelos da filha.

“Sim, infelizmente. Foi a condição que meu pai estipulou. Sem irmãzinha sarna, sem opala.”

O drama não era assim tão grande, já que Miguel tinha seu próprio carro, no qual poderíamos viajar caso o opala fosse vetado. Era um Simca Alvorada, que, se por um lado não era um carro ruim, pelo outro, parecia uma caixa de sapatos com rodas perto do opala. ‘Carro de idoso’, costumava dizer dele Miguel.

“Bom, por mim, tudo bem.”, eu disse. “Sobre Cecília ir, digo.”

Miguel balançou a cabeça. “Tudo certo, então. Partimos amanhã, às sete da noite.

Depois que Miguel foi embora, eu voltei pro meu trabalho - estava num emprego temporário como vendedor na Casa Garson da Conde de Bonfim. Fiquei nesse emprego por três meses e juntei o dinheiro que ganhei para essa viagem.

A viagem em questão era pra região dos lagos, onde um tio de Miguel tinha casa.

Na quinta, quando era por volta de sete e meia da noite, me despedi dos meus pais e desci pra frente do nosso prédio. Miguel chegou logo depois, o opala rugindo alto.

“Pula pra trás, Cecília.”, mandou Miguel.

“Por que ele vai na frente?”, perguntou Cecília.

“Porque eu quero.”, respondeu Miguel, ríspido.

“Eu quero ir na frente!”

“Então compre um carro pra você!”, esbravejou Miguel.

“Compre você um! Esse carro é do pai!”, retrucou.

“Mas ele emprestou pra MIM.”, esbravejou Miguel, batendo com o indicador no próprio peito. “EU estou dirigindo. Se não parar de reclamar, nem atrás você vai, vai a pé! Agora cale-se e pare de encher a paciência!”, bradou. “Sua sarna.”

Cecília pulou por cima do banco da frente, que era inteiriço, sentou-se no de trás, fechou a cara e cruzou os braços, emburrada. Eu virei de lado, dei de ombros e lancei a ela um sorrisinho de deboche. Ela me mostrou a língua.

“Vamos passar em algum mercado?”, perguntei.

“Não, já estamos atrasados.”, respondeu Miguel.

Reparei que estávamos longe do caminho onde deveríamos estar. Quando questionei, Miguel disse apenas que precisava fazer uma parada antes de seguirmos com a viagem. Ele parecia em conflito consigo mesmo.

Paramos na frente de um bonito prédio na Tijuca e Miguel buzinou três vezes. Logo as portas de vidro da portaria se abriam e uma garota saía. E que broto era. Loira, alta, olhos azuis… Vestia um vestido de bolinhas e um chapéu clochê. Nos pulsos, pulseiras coloridas de plástico. Miguel abriu a porta e foi ao encontro dela. Eles se abraçaram e deram um longo beijo. Apanhou cavalheirescamente a mala dela e pôs no porta-malas. Eu e Cecília nos olhamos, um tentando ver se o outro tinha conhecimento prévio daquilo. Não tínhamos.

Assim que bateu o porta-malas, Miguel parou do meu lado na janela.

“Beto, pula lá pra trás.”

“Hm, o quê?”

“A Regina vai na frente comigo.”

“Ha!”, riu Cecília, batendo uma única e sardônica palma.

Resignado, abri a porta e saí. Cecília escorreu pro outro lado do banco. Ela deu umas tapinhas no banco, me convidando, jocosamente, a sentar. Sentei e mantive meu olhar fixo à frente. Ainda assim, podia ver Cecília olhando pra mim, um sorriso de sádica satisfação nos lábios.

“Nem. Uma. Palavra.”, falei. Ela fez como se estivesse passando um zíper nos lábios. O sorriso continuou lá. “Sarna.”, disse, baixinho.

“Então, por onde vamos?”, perguntei.

Naqueles tempos, antes da ponte (cuja construção já começara), para ir a Niterói era necessário pegar a barca, (nesse caso, a balsa Valda para veículos), ou contornar a baía, adicionando assim cerca de 100km ao trajeto.

“Pela estrada.”, Miguel respondeu, sem sequer virar a cabeça. Isso queria dizer que faríamos o contorno.

“Por quê? Por que não pegar a balsa?”

“Prefiro ir pela estrada.” Limitou-se a dizer Miguel.

“Ele tem medo!”, disse Cecília.

“Não tenho!”, defendeu-se ele, dando uma bufada. “Não tenho.”, repetiu.

“Tem sim! Desde que a gente era pequeno, ele morria de medo de andar de barca! Tremia como vara de bambu verde!”

“Cala a boca!”, vociferou ele.

“Ah, vamos pela barca, Miguel. Eu seguro na sua mão.”, eu disse, entrando na zoação.

Ele olhou pra gente pelo retrovisor, rosto retorcido numa raivosa carranca que fez eu e Cecília encolhermo-nos no assento. Certamente estava odiando que estivessem tirando uma com a cara dele na frente de seu broto.

O resto da viagem foi bem tranquilo, maçante até.

Quando finalmente chegamos, o relógio já se aproximava das onze da noite.

A casa era modesta, porém aconchegante. Havia uma pequena varanda, em forma de L. A entrada era pela cozinha, onde havia a entrada pro quarto principal. De lá, um curto corredor levava até a sala, onde havia a entrada pro quarto de hóspedes. Nesse curto corredor, a entrada pro banheiro.

Colocamos as bagagens sobre o sofá e uma cadeira de palha que havia na sala. Aproveitei para esticar as pernas.

“Estou morrendo de fome.”, proclamou Miguel. Não tínhamos comido nada durante o trajeto. Havíamos feito apenas uma parada, para ir ao banheiro, ali pela metade do percurso.

Cecília agachou-se e abriu a porta da despensa.

“Então espero que você goste de gemada em pó, porque é tudo o que tem aqui!”

Fomos até lá e vimos que, de fato, era tudo o que havia: uma pilha de latinhas vermelhas de gemada em pó da Kibon.

“Não vou comer essa porcaria!”, lançou a dizer Miguel.

“Devia ter pensado nisso antes.”, provocou Cecília.

“Por que não passaram no supermercado antes de virmos?”, perguntou Regina.

“Por que não deu essa ideia?”, perguntou Miguel, virando-se pra mim.

“Mas eu… Eu falei…”

Ele balançou a mão. “Vou procurar algum lugar que esteja aberto. Um mercado, padaria, lanchonete… Qualquer coisa. Quem quer ir?”

Regina se ofereceu. Eu e Cecília resolvemos ficar e ir arrumando as coisas.

Antes de sair, Miguel me puxou de lado.

“Nada de gracinhas, hein.”

“Hã? Como assim?”

“Com Cecília. Nada de se engraçar com ela.”

“Deus me livre.”, disse. “Por quê?”, quis saber, curioso.

Ele desviou o olhar. “Só… Só não faça nada, certo?”, reiterou. Era como ele houvesse ouvido dizer que aquela era a forma correta a se agir, e estivesse apenas seguindo o roteiro.

Dei de ombros.

Cecília já estava devidamente instalada no sofá da sala, assistindo TV. O aparelho, uma Telefunken que certamente já tinha visto dias melhores, começava a emanar um cheiro desagradável se ficasse ligada por muito tempo.

Apanhei um livro que havia levado e comecei a ler.

“O que está lendo?”, Cecília perguntou. Eu mostrei-lhe a capa. “Vampiro de Curitiba? Posso ler depois? Adoro terror!”

“Não é terror.”, disse.

“Oh.”

Cerca de meia-hora se passou até que ouvimos o opala se aproximando e, então o motor desligando. Quando nem Miguel nem Regina surgiram, fui sorrateiramente até a janela. Após os meus olhos acostumarem-se à escuridão lá fora, consegui ver que Miguel ainda estava sentado ao volante. E algo se mexendo no colo dele. Uma cabeça. Subindo e descendo.

“O que eles estão fazendo?”, Cecília perguntou. Tinha chegado de mansinho e me dera um susto ao falar.

“Estão… Bom… Olhe você mesma.”

Ela se aproximou do vidro e olhou lá pra fora.

“Eca!”, disse, fazendo cara de nojo. “E você aí olhando isso. Seu pervertido!”, disse, me provocando.

“Eu só estava… Só fui ver porque estavam demorando.”, me defendi.

“Relaxa, só estou brincando.

Miguel e Regina tinham encontrado uma pizzaria aberta. Trouxeram duas pizzas. Uma de muçarela e uma de calabresa, bem como uma garrafa de coca-cola.

Devidamente alimentados, era hora de escolher onde dormir.

O quarto principal, apelidado jocosamente de “suíte presidencial” foi rapidamente reivindicado por Miguel. O outro, cuja entrada ficava na sala, era menor. Tinha uma beliche, um pequeno armário e uma escrivaninha com tampo de esteira.

“Eu durmo em cima!”, disse Cecília. Pela sua disposição, na certa esperava por uma briga pelo andar de cima do beliche. Pareceu decepcionada quando eu aceitei sem contestar.

Apesar de a entrada de ambos os quartos estarem bem afastada uma das outras, eles dividiam uma parede. Não demorou e começamos a ouvir Regina gemendo e os sons característicos do sexo.

Ficamos os dois com cara de bunda.

“Hã… Então… Você está saindo com alguém?”, perguntou Cecília, numa tentativa de abafar os sons vindos do quarto ao lado.

“Não.”, respondi. E era verdade. Até havia acontecido alguns flertes com uma colega do emprego, mas a coisa não chegou a passar disso. “E você?”, perguntei. Era melhor manter a conversando andando do que ficar apenas ouvindo os incômodos gemidos vindos do quarto ao lado.

“Também não.”, ela disse. “Você quer se masturbar?”

Esse foi um daqueles momentos em que, se estivesse bebendo alguma coisa, teria cuspido tudo.

“O quê?!”

“Se masturbar, ué.”

“Por que essa pergunta?”

“Homens se masturbam, não?”

“Sim, mas…”

“Quer que eu vá lá pra sala enquanto você se masturba?”

“Não! Quero dizer, eu não—”

“Ah, se eu for ficar aqui, vou querer ver.”

Eu passei as mãos sobre o rosto. “Você está tirando uma com a minha cara, né?”

Ela abriu um sorrisinho. “Claro! Seu pervertido!”, disse, rindo. “Seu pau é grande como o do Miguel?”

“Não.”, respondi secamente. Não havia por que mentir, afinal. E não é que fosse pequeno, só não era como o de Miguel, uma verdadeira jiboia.

“Oh. Posso ver?”

“Não.”, respondi, de pronto “Não!”, reiterei.

“Por quê?”

“Por que quer ver meu pênis?”

“Ah, não tem nada melhor pra fazer.”, ela disse, rindo.

Acabamos adormecendo, assim que o barulho no quarto ao lado acabou.

No dia seguinte, tomamos café da manhã na mesa que havia na varanda.

“Que diabos é isso?”, Miguel me perguntou.

“Hein? O quê?”

Ele passou a mão no meu rosto. Estava com a barba por fazer. Não havia me barbeado na véspera.

“Você virou um hippie sujo, por acaso?”

“Não! Só não tive tempo de—”

“Agora tem.”

“Não posso ao menos comer primeiro?”

Ele fez que sim, como se estivesse me fazendo um enorme favor.

“Então… Você e meu irmão são namorados?”, Cecília perguntou a Regina.

Regina abriu a boca, mas Miguel foi mais rápido.

“Não!”, ele disse, sem muito tato.

A resposta em si não pareceu surpreender Regina, mas sim a sua assertividade feroz.

Mais tarde, enquanto Miguel havia saído para ir ao posto de gasolina, Regina e eu conversamos um pouco. A certa altura, ela perguntou como eu e Miguel havíamos nos conhecido.

“Ele não te contou nada?”

“Não, apenas que você é o melhor amigo dele.”, respondeu ela.

Não me surpreendia que ele não tivesse contado. Nós nos conhecemos durante o primário. Ele, por ser mais velho, era de uma série acima. E era para comigo o que antes se chamava de “valentão” e hoje convencionou-se a chamar de “bully”. Estava sempre a me perturbar, embora fossem raras as que houvessem envolvido agressões físicas além de uns cascudos. Isso mudou quando, durante a 5ª série, ele foi acometido por uma grave pneumonia, ficando assim bastante tempo longe da escola e sendo reprovado por faltas por esse motivo. Como essa escola oferecia apenas o primário, os amigos dele se mudaram de escola para fazer o ginásio. Eu, que era de uma série a menos, cheguei à 5ª série e acabei ficando na mesma sala que ele, então repetente. Como eu era a única pessoa que ele conhecia, acabamos ficando amigos. Ele passou até a me defender de outros valentões. E essa amizade seguiu-nos ao ginásio e ao científico. Ele nunca pediu, formalmente, desculpas pelo período onde me fazia ‘bullying’. Não era do tipo que pedisse desculpas.

Quando ele retornou, mais tarde, fizemos planos para o baile de sábado.

Era noite e Cecilia já tinha ido deitar, após assistir ao episódio de Beto Rockfeller. Fiquei na sala terminando de ler. Comecei a ouvir os sons de sexo da suíte presidencial.

Fui pro banheiro escovar os dentes. Assim que acabei de bochechar e cuspir, a porta se abriu. Era Regina.

“Poxa, desculpa, achei que estivesse vazio.”

Era esperado que ela fechasse a porta e esperasse eu sair, mas, em vez disso, ela terminou de entrar e sentou-se na privada. Vestia apenas uma camisola.

“Ouviu a nossa brincadeira?”, ela perguntou.

Balancei a cabeça.

“Ahhh… E por que não foi participar?”, ela disse. Terminou de urinar e foi até a pia lavar as mãos, roçando em mim quando passou, com um risinho. Se aproximou de mim. Estávamos agora quase colados, podia sentir seu calor, seu cheiro… Via aqueles lindos olhos azuis cheios de tesão.

Eu não conseguia pensar, muito menos falar.

Ela passou o indicados por sobre meus lábios, e depois me beijou.

“Não…”, eu disse, num sussurro débil tanto em volume quanto em firmeza.

“Por quê?”

“Você e o Miguel—”

“Não estamos namorando.”, ela disse, uma ponta de rancor na voz. “Você ouviu da boca dele.”

Antes que eu pudesse manifestar nova objeção pouco convincente, ela me beijou.

Senti um gosto salgado e, imaginando o que seria, fiquei um pouco enojado e pensei em me desvencilhar, mas sua habilidade com a língua era tamanha que acabei desistindo da ideia e me rendendo a ela. Após um curto período para ambos recobrarmos o fôlego, nossos olhos se encontraram e ambos sorrimos. Voltamos ao engate do beijo, dessa vez ela começou a passar a mão pelo meu pênis por sobre o short. Vendo que não objetei, ela foi mais fundo e puxou-o pra fora. Começou a masturbá-lo até que atingisse plena rigidez, o que não demorou muito.

Ela afastou-se dos meus lábios. “Olha só como ele está espevitado… Seria um pecado deixá-lo assim, não acha?”, disse, cheia de lascívia.

Sem sequer esperar uma resposta, ficou de joelhos e começou a me chupar. Entregue, eu me recostei na pia e deixei-a à tarefa. E que habilidade aquela boca tinha. Não demorou muito para fazer com que eu atingisse o orgasmo, o qual ela tomou todo em sua boca e engoliu.

Após mais um beijo, ela me deu um abraço e se foi de volta para o quarto, enquanto eu me recobrava.

Entrei no quarto tentando fazer o mínimo possível de barulho.

“Estava bom?”, ouvi alguém dizer, do escuro.

Passado o susto, respondi: “O quê?”.

“Ahh… Não se faça de bobo. Eu vi vocês dois.”, disse Cecília.

“E depois eu que sou pervertido…”

“Estava indo pra cozinha beber água!”, defendeu-se.

“Enfim… Eu só estava escovando os dentes… Foi Regina que me 'atacou'.”

“Ah, é, você parecia estar odiando.”, ela disse, irônica.

Sentei na minha cama, a parte de baixo da beliche. Cecília pulou pra sua.

“Acha que ele vai ficar zangado se ficar sabendo?”

Ela deu de ombros. “Não sei. Acho que não. Ele gosta de você.”

Na noite seguinte, nós nos preparamos pra ir ao baile. Esse baile, inicialmente era apenas uma confraternização antiquada para comemorar a data de fundação da cidade. Mas, em algum lugar no percurso, transformou-se em um grande evento. Pessoas dos municípios vizinhos vinham. As histórias de bebedeiras e libertinagem se tornaram infames.

Vestimo-nos com nossas roupas melhores. Regina iria conosco, já Cecília, alegando estar indisposta, ficaria.

O opala nos levou até o baile, e não foi necessário muito tempo para ver que, de fato, o tal baile tinha mais cara de festa de arromba.

Centenas de jovens dançando ao ritmo furioso do rock and roll da época, tanto nacional quando “importado”. De Celly Campello a Led Zeppelin.

Claro, havia muitas gatinhas, brotos, cocotas. Para todos os gostos: desde as que usavam vestidos mais tradicionais e conservadores, como era a norma até meados da década, até as mais adeptas às tendências da época, como Regina. E tudo o que pudesse haver entre esses extremos.

Mas minha atenção, invariavelmente, voltava pra Regina. Ali, ela parecia estar em seu ambiente natural. A fluidez de seus movimentos, a forma fácil como dançava… Ela e Miguel haviam ido 'separados'. Estavam livres a ficar com quem quisessem. ‘Mas nem pense em levar algum traste lá pra casa’, advertira Miguel.

Certa hora, ela me viu olhando e veio conversar. Regada a bebida, a conversa foi boa. Um rapaz chegou e puxou Regina de lado, de forma rude, fazendo um convite à dança que mais parecia intimação. Ela até tentou ser educada, dizendo não estar interessada, mas o tipo não parecia inclinado a aceitar um ‘não’ como resposta. Intervi, primeiramente tentando apaziguar, mas para minha surpresa, fui recebido com um direto no rosto. Passado o choque, retribuí e logo eu e o cara estávamos trocando socos. Dado momento, pisei em algo molhado e acabei escorregando e caindo de bunda no chão, ficando completamente à mercê do meu oponente. Coloquei a cabeça entre as mãos, esperando pelo pior, mas nenhum golpe veio. Em mim, pelo menos, pois ouvi um alto som, e em seguida o rapaz caiu ao chão como um saco de batatas, desacordado. Uma mão me segurou e me ajudou a levantar.

“Não posso tirar os olhos de vocês um segundo que já arranjam confusão, é?”, disse Miguel, rindo. Bater em alguém sempre o deixava de bom humor.

Depois de se certificarem de que eu estava bem, Miguel e Regina foram dançar. Eu acabei aventurando-me pela parte de fora do baile. Em busca de paz (minha cabeça doía um pouco - efeito da altercação), subi um pequeno morrinho próximo, no topo do qual havia um coreto, do tipo daqueles que se encontra em praças.

Pulei e sentei sobre a cerquinha do coreto. E ali fiquei, admirando a paisagem noturna, por só Deus sabe quando tempo.

Pelo canto do olho, vi alguém se aproximando. A pessoa passou na minha frente e recostou-se num dos pilares do coreto.

“Apreciando a paisagem?”, perguntou.

“Sim. É muito bonita.”, respondi, aproveitando para dar uma boa medida nele: pouco mais alto do que eu, esguio, cabelos penteados pra trás (e mantidos assim por bastante gel) e uma jaqueta preta.

“É, é bem bonita. Por isso que escolhemos esse.” Olhei pra ele com cara de interrogação. “Esse coreto. É nosso.”, explicou.

Notei que uma segunda pessoa havia aparecido, esse pelo meu lado direito. Era mais baixo do que o outro e vestia uma jaqueta idêntica. Uma cicatriz adornava o lado esquerdo de seu rosto, indo da maçã da face até perto da orelha.

“De vocês?”

“Isso.”

Senti os pelos da nuca se eriçando e arrisquei uma espiadela pra trás: um terceiro homem, esse do lado de dentro do coreto recostado numa das pilastras, um cigarro pendendo preguiçosamente de seus lábios e esfumaçando o ar noturno.

“Desculpem, eu não sabia.”

“Agora sabe.”

“Sim. Bom, acho que é melhor eu ir andando.”, eu disse, e pulei da cerca do coreto para o chão. Antes que pudesse dar um passo, o primeiro sujeito pôs a mão eu meu peito.

“Ei, ei, ei. Aonde pensa que vai?”

“Você disse que o coreto é seu, não? Vou deixá-los à ele.”, falei.

“Não me parece certo. Você usufrui dele e agora apenas se vai? Por acaso você vai embora do restaurante após uma bela refeição sem pagar a conta?”

Eu, que não sou bobo nem nada, já podia imaginar aonde aquilo tudo se encaminhava.

Ergui as mãos espalmadas.

“Olha… Amigos…” Eu abaixei lentamente uma das mãos até meu bolso e peguei minha carteira. Desta, saquei meus parcos cruzeiros novos. “Isso é tudo o que eu tenho. Eu dou a vocês e ficamos quites. O que dizem?”

O tipo alto apanhou as notas, contou rapidamente, as dobrou e enfiou no bolso da jaqueta.

“Não queremos o seu dinheiro.”, ele disse.

“Então por que pegou?!”

“Porque foi presente. Foi presente, não foi?”

Dei de ombros. Àquela altura, não fazia diferença.

Eles se reuniram e conferenciaram por alguns momentos. Pensei se não era a hora do bom e velho sebo nas canelas, mas acabei preferindo ficar. Estava bem escuro e eu não tinha a menor ideia de onde estava - ou para onde deveria correr.

Ele pousou uma das mãos sobre meu ombro.

“Você parece ser um cara bacana. De verdade. Estivesse em minhas mãos, eu deixava você ir embora. Mas, sabe como é. Cidade pequena. Notícias correm rápido. E, quando dermos por si, toda sorte de indivíduo vai achar que pode vir aqui e usar nosso coreto.”

O outro disse: “Achamos que seu caso é melhor ser debatido com a chefia.”

“A…”

O que tinha se afastado voltou, dirigindo um fusca. Parou à nossa frente. O tipo alto abriu a porta e baixou o banco.

“Entra.”

“Amigos… Amigos… Isso é realmente necessário?”

“Pra dentro!”, disse, já me empurrando.

Rodamos por algum tempo até chegarmos ao nosso destino, uma loja de máquinas de pinball abandonada. Eles saíram do carro e me levaram até uma entrada na parte dos fundos.

“Chefe, pegamos esse cara no nosso coreto.”

A pessoa que saiu das trevas.

“Mas… É uma garota!”, falei. Era alta, embora não tão alta como Regina, e tinha cabelos ruivos.

“Bem, seus olhos funcionam.”, ela disse, jocosamente. “Então não há desculpa para não ter feito uso deles. Nossa marca estava naquele coreto.” Ela apontou para um símbolo que parecia ter sido cravado a faca numa das paredes do recinto. O mesmo que eles traziam em suas jaquetas. “Esse é o nosso símbolo. Todo mundo por aqui conhece.”

“Oh. Eu não sou daqui.”

“E de onde você vem?”

“Do Rio.”

“Hah! Eu sabia!”, um deles disse. “Esses cariocas não respeitam nada.”

“Não é falta de respeito. É desconhecimento.”, me defendi.

“Talvez se a gente cravar nosso símbolo na pele dele, ele passe a conhecer.”, um dos tipos, o mais baixo, disse.

“Amigos… Não parece uma punição severa demais para uma transgressão tão pequena?”

Sem tirar os olhos de mim, ela jogou o cigarro no chão e o amassou com a bota que usava. Veio até mim e me olhou de cima a baixo.

“Como você se chama, carioca?”, perguntou.

“Alberto… Beto, para os amigos. Pode me chamar de Beto, se quiser.”

“Eu não sou sua amiga.”

“Ainda não.”, gracejei. “Sou um cara bem legal.”

“Caras ‘legais’ não costumam levar socos por aí.”, ela disse, analisando meu olho roxo.

“Foi defendendo uma amiga.”

“Olha só, um cavalheiro.”, ela disse, rindo “Eu sou Rita.”

Eu apanhei sua mão e a beijei.

“Ora, ora… E não é que é um cavalheiro mesmo? Um homem que sabe como tratar uma dama!”, ela disse, rindo. Virou-se para seus capangas: “Vejam se aprendem algo com ele, seus cabeças de vento.” Voltou a atenção pra mim. “Você está com sorte. Hoje é meu aniversário. Então, me dê um presente. Se eu gostar, deixo você ir e esquecemos essa - como foi que você chamou mesmo? - transgressão.”

“Um presente? Tudo bem, tudo bem. Um presente?”

“Isso, carioca.”

“Eu não… Não tenho nada aqui comigo.”

Ela olhou para o relógio na parede, que era a única coisa ali que funcionava.

“Bom, ainda será meu aniversário por mais uma hora. Trate de ir arranjar um presente.”

Ela estalou o dedo e dois dos tipos me escoltaram de volta para o fusca.

“Nos encontramos aqui novamente dentro de uma hora, carioca.”, ela disse.

Sem ter a menor ideia do que fazer, pedi pra eles me levarem de volta pra casa onde estávamos ficando.

Assim que cruzei a porteira, a luz da sala se acendeu. Era Cecília. Estava de pijamas.

“Nossa mãe! O que aconteceu com seu rosto?”

“Eu… Tive uma briga.”

“Não foi Miguel, foi?”

“Não! Falando nele, Miguel já voltou?”, perguntei.

“Não.", ela respondeu. "Se não veio com ele, como você voltou?”

“Uns… Amigos… Deram carona.”

Ela olhou pela janela. “São seus ‘amigos’ lá fora?”

“Sim, sim.” Passei a mão sobre minha testa suada. “Escuta… Eu preciso de um presente…”

“E eu lá tenho cara de Papai Noel?”

“Não, não… Escute! É pra outra pessoa.”

“Pra quem?”

“Uma… Uma mulher que conheci.”

“Ah…” Ela cruzou os braços.

“Que foi?” Deu de ombros. “Pode me ajudar ou não?”

”O que você quer, exatamente?”

“Que você me dê uma sugestão… De um presente para uma mulher.”

“Ah, é difícil… Como ela é?”

“Ela é… “

“Bonita?”

“Sim, mas o que—”

“Já transaram?”

“O quê? Não! Cecília…”

“Eita, calma. Parece até questão de vida ou morte.”

‘Talvez seja’, pensei. “E então?”

“Bom, é difícil sugerir algo sem conhecer a pessoa.”

“O que você gostaria de ganhar?”

Ela pôs a mão sob o queixo, pensativa. “Algo único. Algo que eu soubesse que é só pra mim.”

Pensei com meus botões o que diabos poderia ser tal presente. Algo me ocorreu. Apanhei uma caneta e o caderno e comecei a escrever.

Quando eram dez pra meia-noite, os tipos bateram palmas.

“Hora de ir!”

Fui levado novamente até Rita.

“E então? Trouxe-me um presente? Não vejo nada em suas mãos.”

“Trouxe… Está em meu bolso.”

“Não é um isqueiro, é?”, um deles disse.

“Não, você roubou meu isqueiro! É um poema.”

Eles riram, mas pararam quando não se viram acompanhados por Rita.

“Um poema?”, ela perguntou, curiosa. Demonstrava um cauteloso interesse.

“Sim. Escrevi nessa mesma noite.”

Ela se recostou. “Vamos a ele, então.”

Pigarreei. “Ele se chama ‘Quando a Noite Chama’.”

“Quando a noite conspira

Nossa alma consome e devora

O monstro dentro de nós respira

Ele sabe que vai sair a qualquer hora

Quando a noite avança

E do dia finda a lembrança

Só então temos liberdade

E alguma esperança de felicidade

Quando a noite chama

Vira certeza a dúvida de outrora

De que, antes da aurora

Você vai encontrar a quem ama”

Ela ficou lá, parada, expressão neutra no rosto.

“Você… Você gostou? Fiz meio às pressas porque… Bom… O tempo era curto. E o tema não está claro. Imagino que o medo constante não ajude muito. As rimas estão bagunçadas. E a métrica—”

Ela gesticulou para que eu me calasse.

“Eu odeio muitas - muitas! - coisas. Eu não odeio isso.” disse, apontando para o pedaço de papel em minhas mãos. “É lindo.”

“Então… Não vão escrever em mim com suas lâminas?”

Ela riu. “Não, carioca.” Ela veio até mim. “Posso ficar com ele?”

“Claro, claro. É seu presente, afinal.”

Ela apanhou uma caneta e estendeu a mim.

“Escreva seu endereço. Lá no Rio, digo. Quem sabe um dia eu não te faça uma visitinha?”

Fiz o que ela pediu.

E, sim, essa visita ocorreu. Mas isso é uma outra história.

Ficamos bebendo e conversando. Até que eles não eram más pessoas. Quando não estavam te ameaçando, digo.

Lá por tantas da madrugada, eu disse que tinha que voltar pra casa.

“Vem, vou te dar uma carona.”, ela disse.

Mas eu recusei. Preferi voltar andando.

Ela me levou até a estrada.

“Até a próxima… Beto.”, disse, e me deu um beijo.

Uns 3 quilômetros estrada acima, o opala emparelhou comigo.

“Aí está você, seu maluco!”, Miguel disse. “Estava te procurando por toda parte. Entra, vamos.”

“Hã… Prefiro andar, se não se importar.”

“Andar?” Ele e Regina se entreolharam. “Para de bobeira, entra logo.”

“Eu quero andar, droga!”

“Ei, ei… Calma aí, matador. Só estava querendo ajudar.” Miguel disse. “Você está bem?”

“Sim. Nos vemos em casa.”, respondi, irredutível.

Ainda que contrariado, ele acabou me deixando lá e arrancou com o opala.

Foi uma bela caminhada de quase duas horas.

Miguel já havia ido dormir. Regina e Cecília estavam na sala, me esperando.

“Você está bem?”, elas perguntaram.

“Eu… Sim, sim.”, respondi. E era verdade. Sentia-me muito bem. Leve.

Regina me deu um beijo na bochecha e foi pro quarto. Disse que Miguel havia pedido para ser avisado quando eu chegasse.

Eu me sentei.

Cecília pediu pra eu contar o que tinha acontecido, e assim eu fiz.

“Que noite!”, ela disse.

“Ah, podia ter sido melhor.”

“É? Como?”

“Se você estivesse lá.”

Ela sorriu um sorriso tímido a princípio, mas que logo ganhou desenvoltura. Eu olhei pra janela. Estava amanhecendo.

Levantei e a peguei pela mão. Eu a beijei e ela retribuiu.

Fomos pro quarto e passamos a noite toda transando. Nas primeiras duas eu estava com medo de que Miguel pudesse entrar no quarto a qualquer momento e me dar uma surra, mas isso não acontece.

No dia seguinte, de tarde, estávamos nos preparando pra voltar pro Rio.

“Miguel quer falar com você.”

“E cadê ele?”

“Foi pro carro.”

Olhei pela janela e no carro ele estava. Sentado, mãos no volante, cara de poucos amigos, mas com o veículo desligado.

Fui até lá e bati com o nó do dedo no vidro. Ele suspirou, se esticou sobre o banco e levantou o pino.

Entrei.

Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, eu abri o jogo.

“Eu e Cecília… Bem… Fizemos amor.”

“’Fizemos amor’? Quem é você, Rodolfo Valentino? Você comeu ela.”

“Só não quis ser chulo… Hã… Desrespeitar sua irmã.”

Ele suspirou.

“É, eu imaginava que isso pudesse acontecer. Sempre desconfiei disso, sabe?”

“Hm?”

“De que ela gostava de você. Era bem óbvio, até. Só sendo muito tapado - o que você é - pra não notar.”

Eu sorri amarelo.

“Não vai me bater?”, disse, meio brincando.

Miguel sorriu. “Chame as garotas. Vamos embora.”

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Foto de perfil de LemonheadLemonheadContos: 25Seguidores: 143Seguindo: 6Mensagem Leitor. Contador de histórias. Procrastinador. Veterano da Era Analógica.

Comentários

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Ótimo senso de humor e o inusitado marcam essa excelente história, sem falar que está muito bem ambientada na época em questão. Outra narrativa maravilhosa!

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Vai sim. Estou trabalhando em outra história, no momento, mas já comecei a escrever. Deve sair no fim do mês ou começo de novembro.

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Obrigado, amigo, essa era justamente minha intenção.

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Excelente !!!! Um enredo de tirar o chapéu !

O estilo me lembra outro autor daqui...vai que é o mesmo, com mais de um pseudônimo...

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Obrigado, amigo! Por curiosidade, qual outro autor que lembro? :P

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Eu vim dar uma olhada só por curiosidade, já sabia que você era um excelente escritor, mas esse conto está fantástico!

Concordo com os outros comentários e aguardo ansiosamente a continuação. E admito que o tom inicial dele não me chamou muito a atenção mas conforme fui lendo acabei me envolvendo pelos personagens.

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Cara... Esse é dos bons! Agora fiquei curioso pra saber da Rita kkkkkkkk

Nota 1000, claro!

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Muito obrigado, amigo! Sobre a Rita... Se a história atingir mais de 30 estrelas, eu escrevo essa "continuação" hehe.

Abração!

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Cara, o único "defeito" desse conto é o título que não é chamativo. Pra mim, é incompreensível que até agora ele só tenha 3 estrelas. Tou aqui na torcida para que você continue, porque já deu pra perceber que você é um escritor diferenciado. Aguardo ansiosamente pelos próximos.

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Obrigado, amigo! Chegou às 29 estrelas, tá quase haha.

Mas, falando sério, mesmo não tendo chegado (ainda, pelo menos), vi que há interesse e vou sim escrever uma(s) continuação(ões).

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Listas em que este conto está presente

Crônicas dos Anos 60
As aventuras e desventuras (algumas, cotidianas, outras, nem tanto) de um jovem no fim dos turbulentos anos 60. A ser atualizada regularmente. Ou assim espero 😆