No dia seguinte eu saí aqui pela rua e pelas ruas próximas procurando casa com placa. Eu não perguntava a ninguém porque eu não falava com os vizinhos, era no máximo "bom dia" ou "boa tarde" quando eu passava. Eu tinha medo de criar laços de amizade.
Eu encontrei uma casa legal duas ruas após, peguei o número e passei pra ele, mas eramais caro que a que ele pagava, e não estava cabível no seu orçamento. Encontrei outra com placa, mas não tinha grades na porta nem na janela - fáceis de arrombar. Havia outra com placa, mas quando o vizinho ligou, já haviam alugado e a mulher que alugou ainda não havia si mudado. Encontrei outra que ninguém atendia, e não era whatsapp.
Passaram-se mais de 20 dias, o vizinho disse que mal tinha tempo pra procurar, e umas duas que ele viu quando passou de moto, os valores estavam caras pra ele.
O problema do vizinho era maior do que eu pensava. Um dia eu acordei com o celular tocando e ao mesmo tempo ele me chamando nos fundos. Ainda ia dar 7 horas da manhã, eu havia dormido de madrugada assitindo filmes. Saí rápido e me deparei com o vizinho na cerca, a cara vermelha, aspecto extremamente nervoso, do jeito que nunca o vi - eu só tinha visto ele com semblante brando. Lá dentro uma senhora provocando alto, e vi um rapaz nos fundos, olhando pra cá. Me aproximei e o vizinho perguntou:
- Allan, eu posso colocar minhas coisas aí porque não tenho onde colocar? É só até arrumar uma casa.
Ele nunca tinha me chamado de Allan, somente "Vizinho", sinal que estava realmente mal.
- Com certeza. - Respondi. - Você vai me dando por aqui.
Eu fiquei abismado com a situação seguinte. Eu pensei que ele me daria móveis, mas me deu só uma caixa de fogão cheia de roupa, uma caixa menor cheia de roupa suja (ele parecia gostar muito de roupa), um puff, 2 tênis, um colchão de solteiro com lençol e tudo, e trouxe na mão dois travesseiros e outro lençol. E disse:
- Pronto, vizinho, vou arrodear e vou aí.
Eu pensei: "será que foi só isso? E o guarda-roupas, TV, cama?" Fogão ele disse que não tinha; geladeira ele nunca me disse se tinha ou não mas eu deduzi. Eu fiquei com uma pena do homem! Não pena no sentido negativo, pena no sentido de dó, compaixão, de como ele vivia ali sem nada. Eu pensei que ele tinha pelo menos o básico de sobrevivência, até mesmo porque o homem era trabalhador, e os dias que não trabalhava que ele passava aqui em casa todo bonito, de tênis, todo cheiroso, roupas não pareciam de marca (eu também não conhecia se era ou não), mas sempre bem arrumado.
Eu ainda cheguei pensar que ele estava devendo e tomaram as coisas dele, mas não, era só aquilo mesmo. Depois ele me disse que quando separou a mulher carregou tudo. Mesmo assim, ter só aquilo dentro de casa era desleixo ou falta de dinheiro - e eu não perguntei.
Naquele dia ele entrou aqui, mas eu já fui colocando as coisas dele no outro quarto, já que aqui tem dois. Ele disse:
- Pô vizinho, você me salvou. Mas me desculpa aí. Hoje mesmo eu procuro uma casa.
Eu respondi:
- Se você me pedir desculpas por isso dinovo eu vou me chatear. Poderia ser eu no seu lugar.
Eu lhe ofereci café da manhã, mas ele recusou dizendo que preferia ir trabalhar pra não perder o dia, só pegou um pão, saiu mordendo, pegou a moto e partiu. Voltou meio-dia pra almoçar.
Depois voltou à tardezinha após o trabalho, perguntou se podia tomar um banho. Claro que deixei. Ele colocou a roupa do trabalho em uma sacola de mercado pra levar não sei pra onde. Ofereci um lanche e ele aceitou - ele raramente recusava algo, só quando tinha pressa pra fazer alguma coisa. Ficamos conversando até tarde, eu doido pra perguntar pra onde ele iria, mas eu era tão medroso pra fazer perguntas... eu achava que qualquer coisa eu poderia ofender. Mas outra pergunta eu fiz:
- Janjão, você quer dormir aqui? Bem... caso você não se importe em dormir na casa de um gay.
Ele respondeu:
- Porra! Me salvando dinovo. Eu não queria voltar pra casa dos meus pais. - E me agradeceu tanto que quase me deixou enjoado
E ele continuou:
- Olha, mas para de ficar falando 'caso eu aceite isso ou não' pelo fato de você ser gay porque fica parecendo que você é uma coisa ruim por ser gay. Não fica falando isso porque você mesmo se faz inferior, e o que vejo aqui é um cara especial.
Poxa! Eu sou muito sensível, eu não sei se aquilo foi uma jogada de mestre, mas o choro subiu pelo estômago e segurei ele na garganta.
Claro que tive uma crise nervosa por dentro, ninguém nunca dormiu na minha casa, eu pensava o que os vizinhos iam falar, eu pensava que ele poderia ter um surto machista e me bater, eu imaginava meus pais chegando na minha porta e vendo um homem dentro da minha casa. E eu tentei abafar a todo custo que eu estava a tempo de explodir. Mesmo eu convidando ele pra dormir, eu fiquei assim.
Na hora da janta ofereci café, por ser meu costume, mas ele perguntou se poderia ser comida (tipo que consumimos meio-dia). Ele pegou o prato, se sentou no chão, e disse:
- Porra! Tempão que não janto decente assim, só comendo bolacha pra dormir.
Eu disse:
- Pra mim isso ai não é decente porque pesa o estômago pra dormir.
Ele:
- Ah, eu gosto, porque durmo abastecido.
Depois da novela das 9, coloquei filme, ele ficou deitado no tapete, assistindo um pouco comigo, depois foi se deitar. Fiquei assitindo até de madrugada.
Também de manhã acho que ele se moveu em cima de flocos, porque eu acordei ia dar 10 da manhã. Havia café feito, eu achei fofo, mas o gosto horrível. Kkkkkk. O pão ele devorou quase tudo, deixou só dois pra mim. Acho que ele pensou que como eu sou meio magro não precisava de tanto pão. Umas 4 da tarde eu fui comprar, mas umas 5 e pouca ele chegou com outro saco de pão. E, para não-surpresa minha, aquele dia eu nem convidei e ele não se ofereceu pra ficar pra dormir, ele apenas ficou e dormiu. Talvez ele achou que o convite que fiz noite passada era até ele arrumar uma casa, e não só por aquela noite. Foi falta de detalhes quando fiz o convite.
No terceiro dia ele apareceu com umas sacolas trazendo umas coisas do mercado, e pediu pra eu fazer um cachorro-quente. Cachorro-quente não era meu forte, eu não curtia muito, então eu não sabia direito como fazer. Apelei pra internet e vi que era bem prático. Sei que ele estava ficando aqui em casa, e eu não sabia se estava feliz ou preocupado por talvez não ser uma boa ideia, ou se era uma mistura desses dois, mas ele estava tão tranquilo, agindo naturalmente como se morássemos juntos há um tempão.
Nisso foi se passando uns 10 dias, ele nem dizia se encontrou casa, nem dizia quando ia embora, mas uma coisa era inegável, ele estava me fazendo um bem danado, e me tratava super bem, e eu estava ficando cada vez mais tranquilo com ele.
E nesses mais ou menos 10 dias depois, ele se sentou no chão para jantar, e me sugeriu:
- Allan, eu estive pensando... caso você queira, eu fico aqui contigo e gente divide aluguel, as despesas, eu te ajudo limpar casa. Só não faço comida porque a sua eu amo, e eu só sei fazer 'gororoba'
Eu dei risada do jeito que ele falou, mas eu falei:
- Você acha uma boa ideia? Você não vai se importar com os vizinhos se eles comentarem? Como você sabe, eu sou gay e...
Ele me cortou:
- Vamos parar com esse negócio de você ser gay, já falei contigo sobre isso. Se você não quiser porque você não se sente preparado pra dividir casa ou porque você quer privacidade, eu vou respeitar, mas se o motivo for só preocupação com vizinhos, isso aí não, você sabe que eu não me importo. É só mandar cada um se fuder. A não ser que você esteja com vergonha deles.
Eu estava com vergonha sim, mas eu não disse isso a ele. Só falei:
- Eu fico preocupado com você, mas se você não se importa com eles, pode ficar sim.
E assim, ele ficou na minha casa.
Cerca de duas semanas depois eu estava retornando ao trabalho. Eu me sentia alegre, mais vivo, com mais apetite. Claro que vez ou outra eu caía, porque depressão faz isso com a gente, lembranças fazem isso com a gente, mas deixou de ser tão frequente. E fui pego de surpresa, fui escalado pro turno da noite. Eu fiquei apreensivo, eu não era um ser da noite, apesar de não ser um horário tão tarde... o ônibus me pegaria às 6 da noite, meu turno começa às 7, encerrando às 2 da manhã, e duas e pouca eu estaria em casa, porque o ônibus entrega os funcionários em casa fazendo o percurso inverso.
Mas veio a parte boa dessa mudança. Como eu disse, foi meu primeiro emprego, eu desconhecia muita coisa. Quando o salário veio, havia também adicional noturno, não sobre as 7 horas de trabalho, era somente sobre 4 horas, mas foi excelente, e desde então isso me motivou a não querer mais sair do turno da noite. Aí vocês perguntam: "oxi, e por que você está postando esses contos à noite?" E eu respondo: "simples! Estou de férias".
Sem contar que eu dormia até tarde, o dia é mais propício a fazer as coisas, cozinhar, resolver situações; o único problema é que passei ver Janjão pouco, era mais meio-dia, antes das 6 da noite, e quando minhas folgas caíam em fins de semana, ou também quando ele não arrumava trabalho e ficava em casa dia de semana. Ah, e depois que ele veio morar comigo eu soube que ele trabalhava na roça e em algumas construções de casa, mas como servente. Trabalho cansativo e ganha pouco, mas é o que ele sabe fazer, e melhor que ficar parado, sem fazer nada. As vezes ele pára porque não acha trabalho nessas duas áreas, mas não fica parado com tanta frequência.
Um dia eu acordei muito, muito inspirado, muito feliz, com vontade de fazer tanta coisa...! E ele, uma coisa que eu não disse, não é tão organizado e não se importa tanto com as roupas. Ele tinha muita roupa, mas um problema: ele ia usando todas e jogando lá. Vi sua caixa de roupas sujas encher, virar uma montanha, cair algumas no chão, e lá ficava. Eu limpava o quarto dele quando fazia faxina mas eu tinha medo de tocar nas suas roupas pra ele não pensar besteira, e eu também não arrumava sua cama (só o colchão no chão) pra ele não se chatear.
Mas aquele dia eu acordei com uma coragem pra tudo, um ânimo excelente. Ainda ia dar 9 horas. Peguei toda roupa suja dele, separei as cuecas - que não eram muitas (acho que ele reusava) e deixei na caixa porque ele poderia achar ruim eu lavar elas - coloquei de molho porque haviam algumas bem sujas, e lavei na mão (tenho apenas um tanquinho mas só pra lençóis, cobertores; roupas e toalhas lavo na mão). Ainda tive a audácia de arrumar sua cama.
Ele chegou meio-dia pra almoçar sempre com um semblante alegre, foi na cozinha, falou comigo, olhou para o quintal e ficou sério quando viu os varais cheios com suas roupas, inclusive, toalha e os de cama.
Continuo.