Eu estava decidido estudar muito para talvez conseguir algum emprego e sair de casa, mas eu não contava com um obstáculo que já estava em mim: a depressão.
Havia dias que eu não queria fazer nada, não era preguiça, era desânimo total, falta de perspectiva, achava que destinado a penar nas mãos da minha família, então eu apenas chorava e queria sumir ou morrer; por mais que eu lesse ou tentasse estudar, quando me dava conta, minha mente estava divagando por outros assuntos e eu não conseguia me concentrar. E tinha dias que eu acordava decidido e conseguia estudar com apetite.
Mas eu lutei assim mesmo, e, arrastando, consegui concluir o Ensino Médio e me vi livre pra sair de casa, e o fato de eu já poder responder por mim mesmo, ajudou ainda mais.
Decidi procurar emprego de algum jeito. Eu não tinha amigos, não tinha celular, não tinha internet, mas havia uma saída: uma única lan house na cidade que ainda resistia à crise das lan houses que sumiram praticamente de quase todas as cidades.
Eu acho que eu era a única criatura da cidade que não sabia nada de internet. Eu alugava o computador mas quem fazia praticamente tudo era o filho do dono que trabalhava junto com ele, que aqui entre nós, era um nerd bem gatinho (risos). Ele quem pesquisou empregos para mim, ele quem me inscreveu em alguns, e ele quem me avisou quando caiu e-mail me convocando para uma entrevista em uma indústria na cidade de Feira de Santana. Aquele rapaz foi um anjo na minha vida. E justamente nesse que fui convocado para assumir a função de de auxiliar de produção.
Detalhe: pra eu conseguir dinheiro pra ir até lá fazer a entrevista foi um processo. Eu não falava com ninguém em casa desde que começaram me maltratar, mas precisei falar pra pedir dinheiro para as passagens. Eu imaginei que eles me dariam para eu poder arrumar o emprego, sair de casa e deixar de ser a vergonha deles, mas eles não me deram nada dizendo que eu queria ir morar sozinho pra arrumar homem. Meus irmãos que trabalham, um fechou a cara e saiu, o outro me mandou tomar no cu; até o pastor me negou ajuda. Quem foi solidário comigo foi alguém que eu achei, entre todos, o mais improvável a me ajudar: o padre da cidade. Ele me "deu" as passagens. Depois que consegui o emprego, ele me "emprestou" pra eu pagar quando recebesse meu primeiro salário. Fiquei chocado.
Meu primeiro mês de trabalho foi o mês mais longo de todos. Estava muito empenhado a aprender e me deu uma crise de medo e ansiedade, afinal eu nunca havia tido um emprego, e eu ansiava muito ganhar dinheiro pra sair de casa. E como eu nunca havia trabalhado não sabia que existia quinzena. Peguei essa quinzena e, na minha folga fui procurar casa em Feira. Foi fácil achar, havia muitas ofertas, mas eu sabia que só daria pra alugar alguma num lugar distante do centro e uma casa simples, pra não comprometer o salário. Não ia receber só um salário mínimo mas também não seria tanto. Mas arrumei uma bem legal. Encontrei uma casa numa rua de chão na verdade, mas havia grades nas portas de frente e fundo, e também nas janelas (um pouco de proteção). Há quintal amplo onde dá pra plantar horta se eu quisesse; a parte eu achei negativa - até um certo tempo - foi a divisão do quintal com o quintal do vizinho que era dividido só por uma cerca de arame farpado; a lateral direita também é dividido com cerca de arame; a lateral esquerda é um muro construído pelo dono da casa ao lado. E aluguei essa casa sem ninguém saber, pelo valor de mais da metade da minha quinzena. Quando recebi o restante do salário eu quase caio pra trás, para mim aquilo era muito dinheiro, pois eu era bem pobre e não via dinheiro. Aquele foi meu primeiro salário, somando com a quinzena deu mais de dois salários, mas ali junto havia horas extras e gratificação, tudo isso fora o vale refeição. Parece bobo eu dizer isso mas é porque eu vibrei de alegria, aquilo para mim foi surreal e foi minha libertação, sem contar que me incentivou muito a me dedicar ainda mais ao trabalho.
Não deu pra comprar tudo mas deu pra comprar o básico para eu poder me mudar. Comprei apenas um fogão comum, cama simples, coisas de cozinha e um celular simples pra ligações porque a empresa exigiu (por mim mesmo eu não teria comprado porque eu não tinha com quem conversar).
Na minha próxima folga fui começar arrumar a casa para me mudar, só não deu tempo me mudar naquele dia, mas isso me foi permitido na próxima folga.
No dia que folguei, fui numa loja e comprei uma sacola com zíper, dessas que pessoas usam para transportar grande quantidade de roupa. Comecei arrumar minhas coisas emocionado, Tudo o que eu tinha na verdade coube ali e sobrou espaço, inclusive o único tênis velho que eu tinha, pois pararam de me dar as coisas desde que me descobriram gay.
Como minha folga foi numa terça-feira, só estava em casa meu irmão mais novo.
Terminei de arrumar tudo e, os passos que eu dei do meu quarto até a porta de saída foi em lágrimas, não de tristeza, mas de uma felicidade incontida, um sentimento de liberação, cada passo que eu dava eu tinha a sensação de cada parte de uma corrente caindo no chão, e sai dali sem querer olhar pra trás, mas, assim como a mulher de Ló indo embora de Sodoma, eu não resisti e, do outro lado da rua olhei pra trás, só não virei uma estátua de sal (risos). Meu irmão estava em pé segurado na grade ela, me vendo partir, sem dizer uma palavra.
Parti pra luta, enfrentei a vida, trabalhei duro, fazia todas as horas extras que me eram permitidas. No segundo mês de salário que recebi eu pude comprar geladeira, mas não pagando à vista porque pagando aluguel sozinho, passei comprar meu alimento, pagar contas, então não dava pra ser à vista. Um gerente de uma loja na cidade foi um amor comigo. Ele disse que me daria um voto de confiança; o problema é que eu nunca havia comprado nada em meu nome. Ele me deixou comprar a geladeira, uma TV e um sofá de 3 lugares, dividido no carnê. O resto do que eu precisava era valor baixo, então deu pra comprar tudo direitinho e aos poucos; só a mesa que tive de esperar 10 meses para comprar, até as parcelas acaberem. O gerente queria me empurrar a mesa junto com a geladeira, mas as parcelas ficaram salgadas para mim e eu ficaria apertado.
Tirei minha primeira férias e, novidade, eu não tinha o que fazer, ainda não tinha amigos, no trabalho quando alguém puxava assunto eu resumia a resposta cortava conversa e saía, eu tinha medo do povo, eu tinha medo de descobrirem que sou gay e eles destruírem minha vida. Eu havia me tornado complexado, amedrontando, super baixa autoestima, inseguro, antissocial, tímido, calado, tudo o que destrói a vida social de uma pessoa. Eu me saí excelente no trabalho, mas estava fracassado no meio social.
Eu estava saturado de ficar em casa sem saber pra onde ir nem o que fazer nas férias, eu nunca havia feito viagem na vida, nem passeios, nada. Eu pensei em fazer uma viagem sozinho, talvez conhecer Salvador, mas me peguei com medo de sair sozinho, e eu não sabia como me divertir sozinho. Então, para minha sorte um dia a empresa me ligou, 15 dias depois, perguntando se eu queria vender minhas férias. Eu não sabia o que era isso, mas aceitei, voltei a trabalhar, e vi que foi bem lucrativo (hoje eu não faço mais isso).
Estava tudo indo bem, mas eu não contava com uma coisa: a droga da depressão que estava adormecida e resolveu acordar.
Continuo.
Gente, vocês que me acompanham, desculpem o atraso! Fins de semana meu namorado não trabalha e curtimos um pouco. Meu plano era postar um texto por dia durante os dias úteis até terminar, mas essa semana pra mim foi puxada, de segunda pra cá eu tive que resolver muita coisa pendente e foi correria, por isso atrasei. Desculpem! Muito obrigado a todos que me acompanha!