Coloquei uma cadeira no quintal, me sentei na ponta, encostei a nuca no encosto com o rosto virado pro céu, fechei os olhos e comecei comer biscoitos recheado.
Eu fiquei ali um bom tempo, vez e outra abrindo um pacote de biscoito. Eu ansioso me perco a comer doces.
Lá pelo meio-dia, eu ali ainda queimando neurônios, com o rosto virado pro céu com um sol tenebroso, olhos fechados, comendo mais um pacote de biscoitos, ouvi uma voz:
- E aí vizinho!
Levei o maior susto, quase caio da cadeira.
O vizinho deu uma risada alegre, e brincou:
- Oxi vizinho. Tu tá devendo é?
Eu também ri. Eu não dava uma risada há muito tempo, nem de leve. E respondi:
- Não. É que eu estava com a mente longe, fora de órbita.
De perto eu reparei que os olhos do vizinho eram verdes, e achei esplendidamente lindo. Sua pele branca mas bem queimada do sol. Seus cabelos lisos, de fios grossos, já tinha muitos cabelos brancos apesar de sua aparência de uns 35 anos de idade; mais alto que eu; seu corpo era o tipo forte mas sem músculos, aquele forte com aspecto de inchado; braços volumosos, peitoral grande com peitões, pernas nem volumosas (deu pra ver pelo preenchimento das calças); e a barriga bem saliente, volumosa, não de gordura, parecia inchaço mesmo (não de doença, foi o exemplo que achei para vocês terem um ideia de como ele é, talvez parecendo aqueles homens que tomam bomba e não malham).
Ele não é exemplo de beleza, apesar de seus olhos verdes, mas tem suas qualidades físicas atraentes. Não estou dizendo que me atrai por ele, eu não andava com a mente tão legal assim, pra sentir algo por alguém.
Então ele puxou assunto:
- Rapaz, é sério que tu tá aguentado esse sol?
Realmente no céu parecia ter meia dúzia de sóis. Aqui em Feira de Santana no verão o bicho pega.
Eu não ia dizer pra ele que estava ali por causa de uma crise de ansiedade, então respondi:
- É só pra pegar uma vitamina D.
Ele:
- Rapaz, não tem votamina D certa... eu só tomo esse sol no trabalho porque não tenho outro trabalho.
Eu fiquei curioso pra saber em que ele trabalhava, ela trajava uma calça jeans velha, toda suja, botas nos pés, porém sem camisa. Mas não perguntei... eu nunca faço perguntas na verdade, se eu não tiver algum grau de intimidade.
Ele acabou de falar sobre não gostar de tomar aquele sol no trabalho e já emendou:
- Vizinho, arruma duas bolachas dessa aí. Só duas mesmo.
Eu acho que ele queria faz tempo, e estava enrolando com conversinha pra não ser tão direto.
Eu achei engraçado ele falar "bolacha". Eu sei que também é correto, mas estava acostumado a ouvir somente "biscoito". E falei:
- Não. Vou pegar um pacote pra você.
Fui ele direção à porta da cozinha com ele falando:
- Precisa não, vizinho... somente dois tá bom.
Peguei um pacote e levei até ele. Poderia parecer grosseiro isso, mas não se passou essa hipótese pela minha cabeça.
Eu falei:
- Oxi! Fica sossegado. Eu tenho estoque desses biscoitos lá dentro. (Realmente eu tinha, mas hoje em dia diminui mais por causa de excesso de açúcar).
Ele pegou os biscoitos, então reparei as mãos dele... mãos bem pesadas, dedos bem grossos, a palma das mãos pareciam um couro cheio de calos, as unhas bem sujas. Ele parecia trabalhar na roça, talvez. E ele disse:
- Pô! Valeu, vizinho!
Eu não suspeitava que ele estava com fome. Por já ser mais de meio-dia - eu já estava há um tempão no sol me enchendo de biscoitos - pensei que ele queria apenas algo doce porque muita gente gosta de comer algo assim após o almoço.
E a parte trágica daquele momento juntamente com uma breve amenização do meu psicólogo conturbado, foi que ele ficou ali batendo papo comigo, ele tinha assunto do arco da velha. Eu não estava afim de tanta conversa, isso soou trágico pra mim; e ele conversando tanto, quando ele se despediu pra voltar ao trabalho, eu estava mais tranquilo, e consegui sentir de verdade aquele sol escaldante, e não consegui mais ficar ali. Parecia que minha crise psicológica tinha bloqueado minhas sensações, e a conversa com o vizinho chato quebrou essa crise, pelo menos ao meio, mas suficiente pra me fazer voltar sentir.
No dia seguinte eu estava digamos apto a trabalhar. Fui fazer comida porque só tinha crus, eu não tinha ânimo nem pra cozinhar. Só limpava a casa porque sempre odiei sujeira. No entra e sai pela porta da cozinha, por volta do meio-dia vi o vizinho chegar no quintal dele. Gritou de lá e acenou, com um sorriso alegre no rosto:
- Diga, vizinho, beleza?
Eu respondi:
- Tudo bem! E você?
Ele:
- Na paz!
Eu entrei.
O vizinho ficou ali no quintal - na área, parte coberta - sentado numa cadeira, mexendo no celular. Sempre que eu saía pela porta da cozinha ele estava lá. E só saiu dali uma da tarde, fechou a porta, certamente voltou ao trabalho. No dia seguinte a mesma coisa: apareceu lá, se sentou, quando me viu falou comigo, e ficou mexendo no celular. E no dia seguinte também.
No quarto dia, eu de dentro de casa o vi chegar e se sentar. Eu estava num ótimo dia. Pensei em dar uns biscoitos pra ele comer como sobremesa. Quando fui pra dar bateu uma vergonha repentina, juntamente com um medo dele achar que eu estava dando em cima dele (eu sempre tive esse medo dos homens pensarem isso e quererem me bater). Então eu abri o pacote, fingi que estava comendo, saí, falei com ele:
- E aí, vizinho!
Ele tirou os olhos do celular, olhou pra mim com um sorriso de alegria, e respondeu:
- Diga, vizinho, beleza?
Eu levantei o pacote de biscoito e perguntei:
- Aceita?
Ele se levantou na hora e veio até a cerca.
- Pô vizinho, aceito sim. Tô numa fome de lascar.
Eu estranhei a resposta. Ele parecia não ter almoçado. E perguntei:
- Já almoçou?
- Ainda não. Desde que a mulher foi embora e levou quase tudo, não tem onde cozinhar. E tá difícil esses tempos comprar um fogão.
Eu senti a maior dó.
- Poxa! Não me leve a mal não, mas você quer almoçar?
Ele respondeu:
- Oxi, vizinho, aceito sim.
Eu não sabia colocar comida pra ninguém, então fui pela lógica: ele todo grande, todo forte, teria que comer muito pra suprir o estômago. E fui mal educado em colocar um prato bem cheio de comida.
Levei até ele. Ele comeu ali mesmo junto comigo na cerca. Ele não estava comendo, ele estava devorando a comida, e conversando mesmo comendo. E eu... doido... morrendo de vergonha, de que?!, nem eu mesmo sabia.
No meio da comida, ele disse algo que me deixou sem graça:
- Porra vizinho, você cozinha muito bem. Já dá pra casar.
Eu mudei o assunto na hora.
No final, ele só faltou se ajoelhar pra me agradecer.
No dia seguinte ele se sentou lá. Eu pensei: "será que ofereço? E se ele ficar mal acostumado?" Mas eu não estava bem por dentro sabendo que ele poderia estar com fome. Saí no quintal e perguntei se queira almoçar. Ele respondeu:
- Quero sim, vizinho. Só comi um pastel aqui.
E eu dei comida novamente.
No dia seguinte, quando saí no quintal, ele se aproximou da cerca puxando assunto. Foi justamente como imaginei. Ele poderia ficar mal acostumado. E dei comida novamente. Mas pensei: "que problema há? Fui abençoado com um emprego - que eu estava afastado, mas recebendo -, ganho um pouco mais de um salário que praticamente sobra porque eu não saía de casa, não era de festas, bares, lugares que gasta muito, então não custava ajudar alguém que precisa".
E assim ficou por uns 12 a 15 dias, eu dando só o almoço a ele, e ele chegou pra mim e me surpreendeu.
Ele sabia que eu estava afastado do trabalho, então eu tinha tempo. E ele disse:
- Vizinho, quero fazer um acordo contigo, se você topar.
Eu:
- Qual?
Ele:
- Eu faço a feira, compro tudo que precisa pra almoço, e você entra com a gás e a mão de obra. Eu não ofereço também o gás porque não tenho tanta condição, ainda preciso fazer bico pra pagar pensão, e...
Eu cortei ele:
- Sim, eu aceito, fica tranquilo. Não precisa se explicar. Farei de coração.
Ele ficou feliz e, eu não sabia de uma coisa: eu quando passei cozinhar pra ele também, isso serviu de motivação. Percebi que cozinhar só para mim eu tinha menos ânimo. Serviu até como terapia. Eu tive ânimo até de entrar na internet - já havia comprado smartphone - pra aprender sobremesas porque eu não sabia fazer nenhuma. Só sabia cozinhar comidas simples que aprendi quando morava na casa dos meus pais. Até receitas de pratos diferentes, carnes, peixes, eu busquei aprender. Como falei, isso virou uma terapia. Eu comecei tomar gosto pelas coisas. E a melhor parte é que ele passou vim comer na minha casa, ao invés de eu dar pela cerca e ele comer ali no sol. Ele poderia pegar o prato e ir comer em casa, mas ele não dispensava uma conversa comigo. Então, ele nem ia mais pra cerca. Ele dava a volta da rua dele pra minha e vinha comer aqui, e sempre conversando. Ele tinha papo, desenvolvia qualquer assunto, ele é o oposto de mim; ele começou se transformar numa boa companhia, e eu estava pegando gosto pela amizade dele.
Por falar em terapia, meu prazo de licença havia acabado, mas a psicóloga da empresa havia me achado ainda inapto, e prorrogou por mais 90 dias.
Foi um prazo muito bom, me ajudou muito, apesar de receber o salário seco - salário correspondente ao cargo. Eu tive muito contato com o vizinho nesse período, era meu único amigo na verdade, minha única companhia, e ele até chegou questionar isso. E eu expliquei a ele o porquê de eu ser sozinho, meus medos, minhas inseguranças, e assumi que eu era gay. Ele deu uma boa risada e disse:
- Eu já tinha percebido desde que te vi.
Eu fiquei sem um pingo de graça ele ser tão direto. Eu perguntei:
- E você não se importa em frequentar minha casa e ter amizade comigo por ser gay?
Eu deu outra risada com um semblante leve e tranquilo, e, sem dar muitas explicações, respondeu apenas:
- Nem um pouco.
E assim ficamos, ele vinha aqui e casa toda meio-dia almoçar, as vezes chegava do trabalho e vinha aqui pra casa e ficávamos na porta conversando, me chamava pra sair por aí finais de semana mas, como eu sei que sou meio afeminado, eu não aceitava tipo achando que eu ia manchar a imagem dele (isso foi uma coisa que minha família implantou na minha mente, e eu não conseguia remover. Lembram que meu irmão mais novo parou de ir pro ponto de ônibus junto comigo? Pois é).
E nosso, um dia ele chegou pra almoçar, e me deu uma notícia chata:
- É vizinho, vamos deixar de ser vizinhos.
Me bateu uma tristeza profunda. Quem tem depressão sabe que qualquer notícia triste geralmente triplica na cabeça dessas pessoas.
- Oxi, vizinho, por que?
Ele:
- A dona pediu a casa.
Eu:
- Por que? (E olha que não sou de fazer perguntas, mas fiquei triste com aquilo, pois era meu único amigo, e eu estava pegando gosto por ele).
Ele respondeu:
- Eu não sei. Ela só pediu a casa. Agora vou procurar outra. Se por aqui tivesse era melhor. Se você souber de alguma, me avisa.
Continuo.