Agora estava eu ali, desmontada e sem graça naquele camisolão e chinelos simples. Me sentei numa poltrona, enquanto ela acondicionava com o máximo cuidado e carinho minhas coisas numa malinha, colocando-a num armário do quarto. Depois disse que iria buscar os apetrechos para me colocar o cateter. Assim que saiu, Marcos entrou e me encarou:
- Você fica bem de azul. - Disse, zombando da minha cara.
Capítulo 3 - O oponente onipresente
- Vai tomar no cu, Marcos! - Xinguei, mas ri em seguida e ele também.
Ficamos papeando e logo Fernanda voltou com seus apetrechos. Escolheu me braço esquerdo e na primeira agulhada conseguiu seu intento. Não pude evitar a expressão de incômodo com a espetada, mas enfim…
- Vamos tirar o sangue? - Me perguntou.
- Tá bom, né!
Na porta de meu quarto, uma cadeira de rodas me aguardava e resmunguei:
- Poxa, Fernanda, não estou morrendo.
Ela me encarou séria e colocou o indicador na boca para que eu fizesse silêncio. Me toquei de minha gafe e falei baixinho:
- Eu estou bem. Posso ir andando.
- O problema não é ir, mas sim voltar depois que tira o sangue. Alguns pacientes passam mal. - Me respondeu: - Além disso, são nor…
- Normas do hospital. Já sei! Tá bom, então. Ô, caramba, viu!...
Sentei-me na cadeira e fomos, voltando minutos depois. Entrei no quarto de cadeira de rodas e o Marcos se surpreendeu com aquilo. Desci e fui me sentar na poltrona enquanto Fernanda saía novamente:
- Pra que isso? - Ele me perguntou.
- Normas do hospital… - Falei zombando: - Eles devem pensar que estou morrendo.
Ele riu da minha cara, mas eu não estava achando graça alguma. Ele vendo minha cara, e me conhecendo um pouquinho, mudou de assunto e passamos a conversar amenidades enquanto aguardava a enfermeira voltar. Algum tempo depois, ele recebeu uma ligação e pela forma que conversava, entendi que era da mãe dele:
- Oi, mãe.
- Não. Não vou chegar para o jantar. Estou no Albert Einstein.
- Calma, mãe! Calma… Estou bem. Não aconteceu nada comigo. Estou acompanhando uma amiga que foi agredida num bar e que não tem ninguém para ficar com ela aqui.
- Isso… No Albert Einstein.
- Acho que amanhã. Ela não queria ficar, mas o médico a convenceu. Só que a mineirinha já disse que não fica mais que um dia de forma alguma. Ô mulherzinha brava.
- Não. A senhora não a conhece.
- Nome!? - Ele me encarou e perguntou meu nome completo que respondi sem saber o porquê e ele voltou a falar com ela: - Annemarye Costa Brasil Bravo.
- Pois é. O nome já diz tudo. - Riu um pouco e ficou mudo logo depois: - É sim, mãe.
- Tá bom, mãe.
- Beijo.
Desligaram e eu o encarei. Então, ele me explicou o que havia conversado com ela, inclusive, que ela a visitaria no dia seguinte pela manhã:
- Mas que ótimo! Conhecer sua mãe com a cara deformada é tudo, mal vestida e no hospital era tudo o que eu precisava. Vou causar uma ótima primeira impressão. - Zombei e sorri: - Valeu, viu, Marcos!?
- Deixa de ser boba! Minha mãe é mãe. Ficou preocupada com você sem nem te conhecer. Ela vem, eu te apresento e você irá causar sempre uma boa impressão. Vai ver só.
A enfermeira entrou nesse momento com uma bandeja com soro, medicamentos e outros apetrechos, mas antes que enfiasse aquilo tudo a indaguei:
- Fernanda, não rola um jantar primeiro? Estou com fome e acho que o Marcos também.
Ela me encarou, olhou na ficha médica sem obter resposta e pediu licença para perguntar ao médico. Saiu e voltou minutos depois, dizendo que ele iria liberar uma refeição leve antes da medicação e me perguntou se eu queria sopa ou arroz com legumes, e uma fruta:
- Carne? - Perguntei a encarando: - Um bifinho acebolado, talvez?...
- Não. Sem carne.
- Nem um peitinho de frango?
- Não.
- Chama o médico pra mim. Estou saindo agora dessa câmara de tortura. Vou embora. - Falei brincando, mas ela levou a sério e saiu mesmo.
Eu encarei o Marcos e, pela primeira vez naquela noite, ri de verdade por ela ter caído naquela brincadeira. Quando o médico entrou no quarto, eu ainda estava rindo e expliquei que a parte de ir embora tinha sido só uma brincadeira, mas que a reclamação pela falta de carne, não:
- Mas o prato de legumes é suficiente para suprir suas necessidades…
- Carne, doutor... Pelo amor de Deus! Um pedacinho que seja já serve. Tô com fome. Dá a sopa pro meu acompanhante, mas eu preciso de carne, bife de fígado, sustância. - Insisti.
Ele começou a rir e autorizou que me dessem um pequeno bife de frango. Minutos depois fomos servidos. Recebi um arroz com legumes, purê de batatas e um bifinho de frango, bem “inho” mesmo, uma banana, gelatina e um suco de laranja. Marcos, por sua vez, recebeu um legítimo bife à cavalo, arroz, batatas coradas e legumes cozidos, banana, gelatina e suco de laranja. Tentei negociar um pedaço do bife dele, mas ele se recusou terminantemente, por serem “ordens médicas”. Acabei comendo consternada aquela comida sem tempero, insossa e desbotada. Fiquei chateada mesmo! Adoro comer uma boa comida caseira e bem temperada. Acho que ele se compadeceu de mim depois de um tempo e me deu um pedaço de seu bife. O dele estava acebolado e bem temperado:
- Eu vou morrer de inanição se tiver que ficar dois dias aqui, Marcos. - Resmunguei com olhos marejados: - Saio daqui amanhã, nem que tenha que pular a janela.
- Você está bem, dá pra ver. Também acho que sairá amanhã. Daí te levo para comer um rodízio.
- Rodízio!? Aceito! - Sorri: - Mas só depois que meu rosto voltar ao normal, né…
- Então, eu peço algo para a gente comer. Fica tranquila que vou te recompensar pelo sacrifício de hoje. - Ele disse e deu uma garfada na minha comida, fazendo uma careta: - Esse está ruinzinho de tempero mesmo, hein?
Fiquei curiosa e dei uma garfada na comida dele. A dele tinha tempero! Por que a minha não? Daí ele me mostrou um sachê de tempero à parte e me perguntou se eu não havia recebido:
- Não! Não recebi. Poxa…
Ele deu de ombros e sorriu. A gelatininha estava gostosa e a fruta… Bem, a fruta é fruta. Banana é banana em qualquer lugar e aquela não estava diferente. Ficamos papeando e trinta minutos depois o médico veio me ver. Viu que eu estava bem e perguntou da dor. Essa não cessava mesmo e reclamei de uma dor na boca. Ele pediu que eu a abrisse, mas antes fui escovar os dentes. Assim que voltei, ele a examinou e notou um belo e profundo corte no canto inferior direito, próximo aos meus lábios:
- E você não tinha sentido nada? - Resmungou e eu acenei a cabeça negativamente: - Acho que seria bom dar uns pontos…
- Na boca? - Perguntei.
- É. Eu mesmo faria, mas, por sorte, o doutor Fabrício está aqui e ele é um ótimo cirurgião plástico. Vou chamá-lo.
Saiu rapidinho e voltei a me sentar na poltrona:
- A coisa só piora, Marcos!
- Relaxa, caipirinha. É só uns pontinhos.
Pouco depois, o doutor Gonçalo voltou com um médico jovem, moreno, bonito, alto e forte, dono de um sorriso potente e bastante sedutor:
- Então, essa é a moça que precisa que eu melhore seu sorriso? - Perguntou, brincando.
- Doutor, estou toda inchada e certamente não porto meu melhor sorriso hoje. - Respondi, cortando sua iniciativa.
Ele sorriu e colocando uma mão em meu queixo, levantou meu rosto, olhando os dois lados e depois de cima a baixo:
- Judiaram mesmo de você, não foi, moça? É… Qual seu nome mesmo?
- Annemarye.
- Annemarye! Ora, que nome mais lindo.
- Só o senhor que acha…
- Por favor! Sem essa de senhor ou doutor, ok? Só me chame de Fabrício. Devemos ter a mesma idade…
- Tá bom. Desculpa, Fabrício. Preciso mesmo levar ponto?
- Abre a boca. Deixa eu ver…
Abri e ele a analisou, chegando à conclusão que uns três ou quatro pontinhos com uma linha especial que é absorvida pelo organismo resolveria a questão. Pediu para a enfermeira providenciar o necessário e me conduziu até a maca, sob os olhos curiosos e claramente incomodados do Marcos. Assim que subi na maca, ele me deitou e me ajeitou carinhosamente. Na movimentação, a auréola do meu seio direito apareceu, mas ele a ajeitou profissionalmente, embora eu tenha notado que ele a olhou um pouco mais do que deveria. Pouco depois, pediu licença para providenciar alguma outra coisa e saiu do quarto. Não pude evitar de acompanhá-lo com os olhos enquanto saía. Depois, lembrei-me do Marcos e olhei em sua direção. Ele me encarava com um semblante sério:
- O quê? - Perguntei.
- Nada, não. Parece que você encontrou uma boa companhia para passar a noite, não é?
- Nããããão!? Tá com ciúmes, Marcos? - Brinquei e ri gostoso.
- Oras! - Ele resmungou: - Boquinha que eu beijei, esperava não ver nas mãos de outro homem. Ainda mais um todo meloso que nem esse doutorzinho aí…
- Não acredito. - Ri ainda mais, mas acabei sentindo dor novamente e, instintivamente, coloquei a mão no rosto: - Ai, ai…
Ele se levantou e veio ao lado da minha maca, preocupado comigo:
- Tem algo que eu possa fazer?
- Não. - Suspirei fundo: - Já devem me dar algum remédio e vamos torcer para funcionar.
Nisso o doutor Fabrício, aliás, só Fabrício entrou novamente, acompanhado de duas enfermeiras que traziam todo um aparato para os pontinhos. Achei um exagero, mas não era minha área e preferi não me meter. Marcos voltou a se sentar no sofá e Fabrício veio explicar o procedimento:
- Ok, Annemarye, é bem simples. Acho que não será necessário colocar um espaçador na sua boca se você me ajudar.
Eu a encarei curiosa:
- É simples mesmo! Você abre a boca e eu vou passar uma pomada anestésica e depois aplicar uma leve anestesia local. Então, te dou os pontos. A Lúcia e a Fernanda me ajudarão. Se cansar sua boca, você nos avisa, ok?
- Então, tá, né…
O procedimento realmente foi mais simples e rápido do que eu própria poderia imaginar. Como explicou, ele fez. Doer, realmente não doeu; mas sentir a movimentação dele me dando os pontos, não foi nada agradável. Além disso, toda a movimentação, por mais cuidadosa que tenha sido, e foi, fazia meu rosto doer também:
- Pronto, doutora Annemarye. “c´est fini!” (Está acabado!) - Disse ao terminar o procedimento.
- “Oui, docteur. Merci!” (Sim, doutor. Obrigada!) - Respondi num francês meio arrastado por causa do meu lábio dormente.
- “Alors, parlez-vous français?” (Então, você fala francês?)
- Oui! Malheureusement, je ne pratique pas parce que je n'ai personne à qui parler. (Sim! Infelizmente não pratico porque não tenho com quem conversar)
- Magnifique! (Maravilhoso) - Vibrou e continuou: - Si j'ai un peu de temps, je passerai plus tard pour qu'on puisse parler un peu. (Se eu tiver um tempinho, passo mais tarde para conversarmos um pouco.)
Começamos a rir das caras dos demais, alheio a nossa conversa, mas logo me calei porque Marcos não estava curtindo e eu não queria ser indelicada justamente com quem estava me ajudando tanto. Como nesse momento eu olhei para seu lado e o fiquei observando em silêncio, o Fabrício foi cumprimentá-lo:
- Peço desculpas. É que não é fácil encontrar alguém que fale francês. Sua namorada é surpreendente.
Marcos deu um sorriso amarelo, mas não o desmentiu. Eu também não me senti à vontade para desmenti-lo. Acho que nem queria… Nesse momento, uma das enfermeiras saiu, levando todo o aparato, e logo o doutor Gonçalo voltou. Eles conversaram alguma coisa entre si que não consegui ouvir e o Fabrício se despediu de mim, saindo da sala e ignorando o Marcos:
- E como está passando, Annemarye?
- O rosto dói bastante. Agora mesmo está dando umas agulhadas…
- Já era esperado. A Fernanda agora irá te colocar no soro e passará um analgésico também. Ele não te fará dormir, porque nem quero, você está de observação, mas se dormir, não fique brava com ela ou comigo se te acordarmos para verificar se está bem, ok? - Explicou me encarando sério: - Aproveite para descansar e amanhã te avaliarei para decidirmos sobre sua alta.
- Tá bem, doutor.
A Fernanda me colocou o soro e duas gotas depois, fiquei com vontade de mijar. Foi quase que automático, acredito que seja algum efeito psicológico: se água entra, água tem que sair! Fui até o banheiro levando meu balãozinho de soro e voltei pouco depois. Marcos me olhava com um sorriso cínico no rosto:
- O quê? Deu vontade, uai!
Voltei para a maca e Fernanda fez todo o restante do procedimento, injetando o medicamento no soro e saindo em seguida. Liguei a televisão e fiquei zapeando os canais, mas nada me agradou. O medicamento pareceu fazer efeito imediatamente, pois senti como se minha face esquentasse levemente e a dor simplesmente sumiu:
- Ahhhhh… - Gemi baixinho.
- Tá tudo bem, Anne?
- Estou. Agora estou.
Aí me toquei que o Marcos não estava ainda bem instalado e me sentei, fazendo menção de me levantar para ir até o armário do quarto, sendo repreendida firmemente por ele:
- Pode parar! Sossega aí, mulher. Fala do que você precisa que eu providencio!
- Eu só ia olhar no armário se tem travesseiro, lençol, cobertor pra você.
- Eu olho. Pode sossegar aí. - Veio até a maca e me deitou novamente.
- Eu estou bem, caramba!...
- Ótimo! Então, sossega para ficar ainda melhor!
Ele foi até o armário e pegou um cobertor e um travesseiro. Depois se arrumou no sofá e ficou deitado conversando comigo. Passava algum filme que agora não me lembro o nome e depois de alguns minutos eu apaguei, literalmente.
[...]
Quando estava voltando do banheiro e vi aquele animal bater naquela moça, não pensei duas vezes e fui para cima dele. Infelizmente só o alcancei depois que ele a agrediu pela segunda vez, fazendo com que caísse. Me atraquei com ele munido de uma raiva que eu desconhecia. Caímos os dois, mas dei a sorte de ficar por cima, então bati com toda a força que eu tinha. Acho que a surpresa o imobilizou, porque ele era bem maior que eu e certamente, num embate mano a mano, ele levaria a melhor. Depois de um tempo, fomos apartados pelo segurança do local e aí ele apanhou feio de uma segurança. Depois que o levaram para a sala privativa da segurança é que me lembrei da moça. Fui até ela e lhe dei meu copo de whisky com gelo, para tentar amenizar a dor e ouvi sua voz pela primeira vez naquela noite:
- Marcos!? É você?
Aquela voz eu conhecia! Apesar do som ambiente do bar, aquele timbre e sotaque fizeram avivar lembranças que eu pensava já ter superado há tempos. Nem sei o que respondi, mas assim que ela se movimentou para o lado, ficando abaixo de um facho de luz, vi um rosto que nunca desejaria ver naquela situação. Instintiva e carinhosamente toquei seu rosto, e lamentei não ter matado aquele animal que a agrediu. Aliás, quis terminar meu serviço, mas ela me agarrou e não deixou que eu fosse.
Quando ela começou a reclamar de dor e eu vi em seu semblante que parecia ser algo forte, talvez até grave, levei-a até minha mesa e fiz uma trouxinha de gelo com um guardanapo, colocando sobre seu rosto, abaixo do olho, pois sabia que um roxo e um inchaço seriam quase certos, questão de minutos talvez:
- Pois é, né! Você podia ter me abordado antes dele, né, senhor Marcos? - Brincou comigo, gemendo em seguida: - Ai, caralho! Devagar, está doendo.
Lamentei mentalmente eu não ter feito isso. A Annemarye não merecia aquilo, não a minha caipirinha. Não ela. Nunca! Me doeu na alma eu não ter feito algo antes e minha consciência pesou, transbordando nos olhos que ficaram marejados. Por sorte, nem ela ou qualquer outro viu, mas a dor que ela aparentava estar sentindo era tão forte que respingou em minh’alma.
Uma amiga dela, loira e brava, com pinta de autoridade, começou a discutir com ela e pela conversa, modos de falarem e se enfrentarem, deduzi que Anne havia se tornado advogada. E que bela advogada! Estava ainda mais bela do que quando a conheci. Além da beleza natural, havia agora uma imponência nela, algo que desafiava minha curiosidade e a de qualquer um que tivesse contato com ela. Decidi que precisava ficar mais um pouco ao seu lado e, após um novo gemido, soube o que precisava fazer:
- Vou te levar num hospital. - Falei.
Após uma rápida discussão, meu argumento venceu e a levei. Feito um raio x, verificaram um problema qualquer com um osso de sua face, uma trinca, nada grave, mas que merecia cuidados. Aliás, a pancada e o tombo em si pareceram ter despertado mais a atenção do médico que o próprio osso. De qualquer forma, ela teria que passar a noite ali e talvez fosse uma ótima oportunidade de voltar a conhecê-la um pouco mais. Superada uma rejeição inicial dela ao ambiente hospitalar, ela aceitou ficar e eu me ofereci para permanecer ao seu lado.
Uma enfermeira a levou para fazer uma coleta de sangue, mas me assustei ao vê-la retornar, algum tempo depois, numa cadeira de rodas. Imaginei até que ela tivesse passado mal, mas Annemarye me encarou zombeteira e falou:
- Normas do hospital. Eles devem pensar que estou morrendo.
Ficamos conversando amenidades e eu passei a perguntar sobre sua vida, pois eu queria conhecê-la novamente. Saber como aquela menina magrinha e tímida, mas dona de um sorriso cativante e um senso de humor único, havia se tornado uma mulher de porte, altivez e combatividade. Em certo momento, meu celular tocou e vi que minha mão me ligava. Precisei licença a Annemarye e a atendi:
- Oi, mãe.
- Querido, onde você está? O jantar já está pronto e já estamos esperando você. Até suas irmãs estão aqui hoje. Você não vem?
- Não. Não vou chegar para o jantar. Estou no Albert Einstein. - Respondi.
- Como é que é? O que aconteceu, Marcos? Você está bem? - Ela me perguntou com um tom assustado na voz.
- Calma, mãe! Calma… Estou bem. Não aconteceu nada comigo. Estou acompanhando uma amiga que foi agredida num bar e que não tem ninguém para ficar com ela aqui.
- Você disse que está no hospital?
- Isso… No Albert Einstein.
- Mas é grave? Ela vai ficar internada muito tempo ou sairá logo? - Insistiu, claramente preocupada.
- Acho que amanhã. Ela não queria ficar, mas o médico a convenceu. Só que a mineirinha já disse que não fica mais que um dia de forma alguma. Ô mulherzinha brava.
- E eu conheço essa tal “mineirinha”?
- Não. A senhora não a conhece.
- Não mesmo!? Qual é o nome dela, Marcos?
- Nome!? - Falei envergonhado por não saber o nome completo da Annemarye, então lhe perguntei: - Qual seu nome mesmo, caipirinha?
Ela me encarou séria, curiosa, mas me respondeu e eu repeti para minha mãe:
- Annemarye Costa Brasil Bravo.
- Nossa! Com um nome desses deve ser briguenta mesmo. - Ela falou, rindo, mas me perguntou em seguida: - Annemarye… Mas que coincidência! Esse não é o nome daquela namoradinha que você arrumou quando foi fazer aquele curso nos Estados Unidos?
- Pois é. O nome já diz tudo. - Ri um pouco constrangido e depois confirmei as suspeitas da minha mãe: - É sim, mãe.
- Ora, ora, ora… Vejo o destino agir, não é? - Ouvi uma sonora risada do outro lado da linha: - Diga a ela que irei visitá-la amanhã de manhã. Quero conhecer essa moça.
- Tá bom, mãe. - Respondi, quase resmungando um “não precisa, não!”
- Beijo, querido. Se precisar de algo, me ligue.
- Beijo.
A Annemarye me encarou curiosa, quase interpelativa durante toda conversa que tive. Contei tudo, ou melhor, quase tudo o que havia conversado com minha mãe e ela pareceu aceitar bem, mas com um olhar ainda meio desconfiado. Naturalmente, ela não gostou de saber que iria conhecer minha mãe naquelas condições, mas eu estava entre duas espadas e preferi me atirar contra a que eu não conhecia bem, pois sabia que minha mãe, eu não poderia enfrentar.
Vê-la brincar com a enfermeira pela falta de carne e depois enfrentar o médico pela proteína animal me fez recordar como ela comia bem. Era magra só de ruindade, pois comia de igual para igual com os mais robustos caminhoneiros. Não sei onde ela colocava tudo o que ingeria, mas, enfim… Seu argumento venceu o médico e depois ainda a mim, convencendo-me a ceder-lhe um pedaço do meu próprio bife. Não a critico, sua comida era ruim demais, coitada.
Depois do jantar, o médico veio vê-la novamente e, por um reclame dela, verificou um grande corte no interior de sua boca que inspirava cuidados. Foi quando um jovem cirurgião plástico foi chamado a cuidar de uns pontos que notei como ela havia se tornado uma mulher realmente interessante. Estava na cara daquele paspalho que se interessou pela caipirinha. O olho dele brilhou ao conhecê-la. Triste mesmo foi ver que ela também se interessou. Fiquei incomodado e notei aí que eu ainda nutria um bom sentimento por ela.
Depois de terminar o procedimento em que ele me pareceu mais carinhoso que o necessário para com ela, ele tentou impressioná-la falando francês, mas ela o impressionou mais ainda, respondendo num sotaque típico de Paris. Mal sabiam eles que eu também falava francês, só não tinha prática. Pelo menos, não falaram nada de mais, senão eu teria ficado mais chateado do que já estava. Num certo momento, ela me olhou e deve ter visto meu descontentamento, o que forçou aquele boçal a me cumprimentar pela primeira vez, pressupondo que eu fosse seu namorado. Não o desmenti! Eu não quis fazê-lo, nem ela me desmentiu e ficou por isso mesmo. Ele saiu, despedindo-se dela e me ignorando, deixando claro uma certa rixa entre nós.
Depois disso, a enfermeira lhe aplicou um soro e começaram a ministrar os remédios nela que, pelo seu semblante e um gemido de alívio, fez efeito rápido. Depois de conversarmos um pouco, enquanto assistíamos sem prestar atenção alguma a um filme da série “Duro de Matar”, ela apagou. Depois de um tempo, já de madrugada acho, notei uma alteração em sua respiração, com suspiros cada vez mais evidentes, o que me deixou preocupado e me aproximei da maca. Entretanto, vi que seu semblante e seus movimentos corporais não aparentavam dor, mas sim prazer. “Poxa!? Será que essa safada gostou mesmo do ‘mediquinho’!”, resmunguei comigo. A surpresa veio em seguida quando ela começou a falar dormindo:
- Ah, ah, ah! Ai, Marcos. Ai… Me beija. Assim… - Suspirou então profundamente e se requebrou de uma forma sensual sobre a maca: - Não para! Aiiiii, que gostoso. Mais, mais!
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO TOTALMENTE FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL É MERA COINCIDÊNCIA.
FICA PROIBIDA A CÓPIA, REPRODUÇÃO E/OU EXIBIÇÃO FORA DO “CASA DOS CONTOS” SEM A EXPRESSA PERMISSÃO DO AUTOR, SOB AS PENAS DA LEI.