Capítulo 4 - Espera, esse sonho é meu!
- Como é que é!? - Acabei falando baixinho pela surpresa que tomei.
- Deus, Marcos. Ai… Assim… Assim. Assim! - Ela falava cada vez mais alto e notei, nesse momento, que sua pele estava arrepiada.
Eu não sabia o que fazer. Fiquei tentado em deixá-la prosseguir para ver o que mais ela poderia compartilhar daquele devaneio comigo, mas me senti um canalha abusando da confiança de uma pessoa que praticamente estava sob meus cuidados. Lutando contra meus instintos, decidi acordá-la:
- Annemarye… - Falei baixinho: - Sou eu, Marcos. Acorda.
- Hã, hã… Ai, Marcos. Não para, não. Hummmmm…. Ai, assim! - Continuou gemendo e respirando descompassadamente, agora agarrada aos lençóis.
Me aproximei de seu rosto e a chamei novamente:
- Annemarye… Annemarye, acor…
Ela me interrompeu com um abraço forte, segurando-me pelo pescoço e me apertando contra ela própria. Aliás, ela cravou suas unhas em minha nuca e passou a gemer ainda mais intensamente, colada em meu ouvido. Me desculpem os moralistas de plantão, mas fiquei excitado, sim. Aquela voz rouca, potente, grave que ela possuía, gemendo próximo ao ouvido, deixaria qualquer homem excitado. Meu pau endureceu. Não tive culpa, foi instintivo:
- Ai, Marcos, não para! Deus! Aaaaai. Eu vou gozar. Não para… Não para. Não Para! - Gemia e respirava descontroladamente até que passou a esfregar seu rosto no meu e tremer: - Ahhhhhhh… Ahhhhh… Ahhhh…
Só depois disso ela começou a relaxar. Nesse momento, uma enfermeira entrou pelo quarto para verificar uma alteração na pulsação da Annemarye num monitor remoto e me pegou grudado nela; na realidade, ela grudada em mim:
- O que está acontecendo aqui!? - Ela me perguntou, assustada.
- Eu não sei! Ela estava gemendo e falando dormindo. Daí me aproximei para tentar acordá-la e ela me agarrou. Não solta de jeito algum. - Disse, mostrando o óbvio.
Ela se aproximou para ver se minha versão dos fatos conferia e, nesse momento, Annemarye soltou uma baita pérola:
- Ai, que pau delícia, Marcos. - Suspirou fundo e continuou: - Ai, que gozada... Eu quero mais…
Eu fechei meus olhos por um momento, envergonhado por ela ter soltado isso na frente da enfermeira que nos encarava agora com olhos arregalados, até esboçando um leve sorriso:
- Fica tranquilo! Eu já entendi. Esse remédio, às vezes, gera um efeito meio, "assim" em algumas pessoas. Ela só está sonhando com esse tal Marcos, mas não significa que ela esteja te traindo, tá ok? - Falou.
- Eu sou o Marcos! - Respondi sorrindo e com um certo orgulho.
- Ah… Então, ótimo! Você deve ter dado uma noite e tanto de prazer para ela. Parabéns. - Brincou comigo, agora sorrindo maliciosamente.
- Pois é… - Comecei a sorrir: - Participei sem ter participado.
Ela riu novamente e passou a chamar pela Annemarye, mas nada dela acordar. Passou então a cutucá-la, também sem resultado. Depois forçou um pouco seus braços e conseguiu me liberar. Seguiu tentando acordá-la e, após algumas tentativas, a Annemarye abriu os olhos. Na verdade, estavam semicerrados e ela parecia não enxergar ninguém. A enfermeira achou prudente chamar um médico para examiná-la e saiu pelo corredor afora. Quem entra pouco depois no quarto: o doutor Fabrício! Ele, pelo menos, se mostrou profissional e, depois de examiná-la, não encontrou problema algum. Ainda assim orientou a utilização de um medicamento que, após ministrado, fez com que ela dormisse tranquilamente. Pelo menos ela, porque eu fiquei acordado até altas horas, sorrindo feito bobo e pensando sobre o que havia escutado: “Então, ela também não me esqueceu!”.
[...]
No dia seguinte, acordei grogue, zonza, “Perdidinha da Silva”. Ainda assim, depois de firmar melhor minha visão, consegui ver o Marcos tomando um café com uma senhora no sofá próximo de mim. Quando me movimentei, ele viu e veio me auxiliar:
- Oi, caipirinha. Como está se sentido?
- Estou com a boca seca…
Ele foi pegar um copo de água e foi repreendido pela senhora que o orientou a dar apenas um pouco e em pequenas quantidades, o que ele obedeceu, sem questionar:
- Bebe devagar.
Tomei e, lógico, reclamei da pouca quantidade, mas ele riu e justificou ter recebido “ordens médicas superiores”. Nesse instante, aquela senhora chegou junto dele na beirada da maca e se apresentou:
- Querida, ainda não nos conhecemos. Sou Eugênia, mãe do Marcos.
- Oi. É um prazer. Desculpa os meus trajes, mas são “normas do hospital”. - Tentei brincar.
Funcionou! Ela, aliás, eles riram:
- Fica tranquila, querida. Sei como funciona. Eu sou psiquiatra, então…
Tentei ser gentil, mas estava bem tonta e minha visão ainda parecia até meio embaçada:
- Não estou enxergando direito. Está tudo meio… embaçado…
- É normal, querida. O remédio que você tomou é bem forte. Além disso, o edema ainda é bem visível. - Ela deu a volta na maca e passou a olhar meu rosto: - Está doendo?
- Até que não… - Disse e coloquei a mão sobre meu rosto, me assustando com o inchaço: - Credo, gente! O que é isso?
- Calma, caipirinha. Calma! Minha mãe disse que é normal, mas logo passa.
- Me dá um espelho, um celular, qualquer coisa. - Pedi para eles.
- Menina, calma! Fica tranquila. Você vai ficar bem…
- Um espelho, por favor! - Insisti, a interrompendo, e como eles não se moviam, tentei me levantar: - Deixa! Eu vou ao banheiro.
Aliás, assim que tentei me movimentar, o quarto girou e vi que o remédio era realmente mais forte do que eu imaginava. Voltei a me deitar, colocando as mãos sobre os olhos, como se isso fosse ajudar e passei a respirar rápido mas diminuindo aos poucos, tentando recuperar o equilíbrio:
- Calma! Vou te dar meu celular. - A dona Eugênia me falou e eu abri os olhos tentando focalizá-la melhor.
Quando me deu o aparelho, ativei a câmera de “selfie” e mirei no meu rosto, ficando assustada com o tamanho do inchaço e de uma mancha roxa em meu rosto. Aliás, assustada era pouco, fiquei horrorizada e com olhos arregalados:
- Meu rosto… - Comecei a chorar: - Aquele animal acabou comigo. Ai, meu Deus!...
- Calma, Anne…
- Como você quer que eu fique calma, Marcos!? - O interrompi de uma maneira rude e chorei mais ainda: - Olha pra mim. Ele acabou comigo. Poxa! Eu só queria me distrair um pouco, me divertir, esquecer dos meus problemas e arrumo outro. Que merda de vida!…
- Minha querida, escuta…
- Eu quero sair daqui. - Acabei também interrompendo sem querer a mãe do Marcos: - Já deu! Isso não está me ajudando em nada. Quero ir embora.
Notei que Marcos saiu do quarto enquanto eu tentava sair da cama, mas era contida calmamente por sua mãe. Logo, uma enfermeira voltou, tentando se impor sobre mim e eu soltei os cachorros sobre ela, aliás, uma matilha inteira de lobos. Eu estava irada, assustada e só queria sair dali, nem sabia para onde, mas sabia que ali eu não queria estar. O doutor Gonçalo entrou em seguida com o Marcos e vendo meu estado, falou algo para a enfermeira que eu não entendi:
- Annemarye, calma! - Ele me pediu com a paciência e formalidade típica dos melhores médicos.
- Calma!? Estou desfigurada! Minha vida acabou…
- Você vai se recuperar. Só ficou assustada com a imagem, mas está bem. Acredite em mim. É só dar um tempo para o seu corpo se recuperar. - Ele insistiu, em vão.
- Bem!? Bem, doutor? - Eu falei, quase gritando.
A enfermeira voltou e foi direto com uma seringa no soro que eu estava tomando. Pela falta de experiência clínica, acabei não me tocando que estavam me dando um “mata leão” químico. Foi certeiro! Fiquei mole e a última coisa que me lembro foi do rosto do Marcos, assustado me olhando:
- Marcos… Me tira… daqui… - Foi a última coisa que me lembro de ter dito.
[...]
Meu filho não tinha experiência ou vivência clínica para uma situação como aquela e isso ficou claro pelo nervosismo estampado em seu rosto. Coube a mim agir como mãe e médica naquele momento:
- Quinho, fica tranquilo. Ela só se assustou com a imagem que viu. Isso é normal. Essa parte psicológica eu conheço bem. - Falei.
- Eu sei, mãe, mas… Poxa! - Ele falou com uma preocupação genuína no rosto.
Aliás, a forma como ele a olhava deixou tudo muito claro para mim. Aquela “paixão de verão” que ele viveu nos Estados Unidos com aquela moça ainda estava muito viva em seu coração. Restava apenas saber se seria correspondido por ela. Eu não sabia, nem se ele tinha essa resposta, mas quis tentar obter alguma indiretamente:
- Muito bonita essa sua, ex-namorada, filho. - Brinquei.
- É… Linda mesmo, não é? - Me respondeu, sem tirar os olhos dela e agora acariciando carinhosamente sua mão.
Nesse momento, ele pareceu se tocar de minhas intenções e me encarou, sorrindo timidamente:
- Não começa, mãe! Ela é só uma amiga.
- É!? Está falando por você ou por ela?
- O que é isso, mãe!? Eu a encontrei, por acaso, no bar.
- É mesmo. Você não me explicou direito essa história…
Ele passou então a me contar todo o acontecido, em especial a violência sofrida por ela e a forma como ele agiu, sem mesmo saber tratar-se daquela pessoa que ele tanto parecia ter um apreço especial. Eu não me surpreendi com sua postura, afinal, eu e meu marido o havíamos educado para respeitar e proteger uma mulher. Ele apenas agiu instintivamente conforme nossos ensinamentos e isso me deu um orgulho imenso, fazendo com que sorrisse para ele:
- O que foi, mãe? - Me perguntou ao notar meu sorriso de orgulho.
Não disse nada. Dei a volta na maca e lhe dei meu melhor abraço, seguido de um beijo mais que carinhoso. Ele merecia um prêmio de reconhecimento pela sua atitude. Protegeu uma mulher e eu lhe dei; protegeu sem pestanejar e o destino lhe devolveu uma paixão:
- O que foi isso, dona Eugênia? - Me perguntou, sorrindo.
- Só uma mãe orgulhosa de seu filho. Somente isso. - Respondi e insisti: - Mas você ainda não me respondeu se ela é só uma amiga por vontade sua ou dela.
- Ah, mãe…
- Ela namora?
- Que eu saiba, não. - Me olhou e depois a ela novamente: - Mas eu…
- Você o quê? A Márcia!? - Eu o interrompi: - Você sabe muito bem o que penso desse relacionamento, não sabe? Aliás, vocês estão juntos atualmente ou já se separaram outra vez?
- Então… É complicado.
- Sou sua mãe e posso dizer que hoje sou sua melhor amiga, Quinho, mas não vou te dizer o que fazer, mesmo eu achando que sei o que você deveria fazer. - Disse e também olhei para a bela morena que ronronava como uma gatinha à nossa frente: - A decisão é sua, mas eu não vou te dizer que ela pode estar bem a sua frente. Não vou dizer isso. Eu nunca te induziria, dizendo que essa morena é o seu destino. Não! Não eu. Claro que eu nunca diria que vejo você olhar com mais carinho para essa moça, acho que talvez até paixão, quem sabe amor, do que qualquer outro dia já olhou para a Márcia. Eu não vou dizer…
- Tá bom, mãe! Eu já entendi que a senhora não quer dizer isso. - Começou a rir me encarando: - Poxa! Imagina se quisesse, então.
Comecei a rir também, com o braço entrelaçado ao dele, olhando para a jovem que dormia tranquilamente. De repente, ele pegou seu celular e acessou a agenda, fazendo um bico de inconformismo:
- Tenho uma reunião daqui a uma hora. Acho que vou cancelar…
- Por que? Para não deixá-la só!? Não se preocupe. Eu fico com ela até você retornar.
- Mãe!?...
- Eu estou te dizendo… Eu fico!
- Ah… Bem, eu vou aceitar, mãe. Preciso resolver essa questão ou vou atrasar um cronograma importante da empresa.
- Pode ir tranquilo, querido. Vou cuidar muito bem da sua “amiga”. - Fiz questão de frisar a última palavra, dando a entender que eu entendia haver algo mais ali.
[...]
Quando acordei novamente, sei lá quanto tempo depois, minha visão já havia melhorado e apenas a mãe do Marcos estava no quarto, sentada no mesmo sofá de antes. Ao notar minha movimentação, ela veio rapidamente para o lado da maca:
- Oi, querida. Você se lembra de mim?
- Lembro. Lembro, sim. Me desculpa. Eu fiz papelão, não fiz? - Perguntei, colocando minha mão sobre meu rosto e sentindo que ele parecia não ter se desinchado quase nada: - Me empresta o celular, por favor.
Ela me olhou de uma forma maternal, já imaginando a repetição da cena, mas eu a tranquilizei:
- Não vai se repetir, eu prometo. Só quero me ver…
Ela me emprestou o celular e eu voltei a me focalizar. O inchaço havia diminuído quase nada e a mancha roxa, por sua vez, havia se acentuado. Meus olhos voltaram a marejar, enquanto eu devolvia seu aparelho. Ela o guardou na bolsa e puxou uma cadeira para se sentar ao meu lado:
- Olha… - Começou a falar, segurando minha mão: - Sou médica. Li seu prontuário, vi seus exames, conversei com seu médico e posso te garantir que você vai ficar bem, sem nenhuma marca nesse rostinho lindo. Quando o doutor lhe falou que era só uma questão de tempo, ele estava dizendo a verdade.
- Eu sei. - Concordei: - Nem sei porque fiquei nervosa daquele jeito. Eu não sou assim.
- Provavelmente… Acredito que foi efeito dos remédios, aliada a tensão do que você passou, do susto que tomou ao ver seu rosto inchado e com esse hematoma… Mas já estou vendo que você está melhor, mais tranquila.
- É… - Concordei novamente: - Cadê o Marcos? Espantei ele, não foi?
- Não, querida. - Ela começou a rir me fazendo corar, mas depois explicou: - Ele tinha uma reunião agora, acho que um almoço de negócios e eu me ofereci para ficar aqui com você.
- Dona Eugênia… É Eugênia, não é? - Ela confirmou: - Não precisa ficar aqui comigo. A senhora deve ter seus pacientes e não quero atrapalhar. Além disso, aqui está cheio de enfermeira e…
- Querida, eu moro no Rio de Janeiro. - Ela é quem me interrompeu agora: - Estou aqui a passeio. Fica tranquila que não está me atrapalhando em nada.
- Certeza?
- Claro que tenho. Fica tranquila.
Ela passou então a mudar o foco da conversa e conversamos sobre diversos assuntos. Ela se mostrava uma ótima companhia, me distraindo com várias histórias da infância do Marcos e se mostrando uma ótima ouvinte. Aliás, ela parecia bem curiosa a meu respeito, querendo inclusive saber de onde eu conhecia seu filho:
- Então… A gente se conheceu numa viagem. Eu estava indo fazer um intercâmbio, um curso de inglês imersivo de seis meses nos Estados Unidos e ele também estava indo para lá, mas não me lembro para fazer o quê… Bem, enfim, nos conhecemos no voo e nos encontramos lá algumas vezes.
- Se encontraram? - Ela me encarou com certa malícia no olhar.
- É! Eu… A gente… - Respirei fundo, sem conseguir continuar: - Eu não me sinto à vontade para falar certos assuntos com a senhora. Desculpa.
- Já entendi, querida. Não precisa falar mais nada. - Sorriu com uma malícia gostosa, oriunda de sua experiência de vida e mudou de assunto: - E você, qual sua área de atuação?
Expliquei um pouco mais sobre minha profissão e ela se surpreendeu ao saber que eu já cursava doutorado com tão pouca idade. Coincidentemente, disse que conhecia o doutor Gregório, meu patrão, que era um amigo de longa data de seu marido. E, assim, a conversa foi fluindo e o tempo passando, só me dei conta do adiantado da hora quando bateram na porta e o Marcos entrou, trajando um terno fino e uma gravata combinando tom sobre tom com o restante do conjunto. Sorri quando o vi entrar e ele me correspondeu. Dona Eugênia só nos observava em silêncio:
- Tá bonitão, Marcos! - Falei.
- E aí!? Pegava? - Ele me respondeu.
- Como assim “pegava”? - Perguntei sem entender no ato, mas entendendo logo em seguida, o que me fez baixar a cabeça envergonhada: - Ah…
A dona Eugênia começou a rir, enquanto Marcos se aproximava e lhe dava um beijo no rosto. Achei bonitinho e sorri de seu jeitinho. Ele deu a volta na maca e me beijou a testa. Se antes eu havia ficado vermelha com sua brincadeira, agora havia arroxeado, com certeza!
- Bom, Marcos já chegou e eu já posso ir. Vou deixá-los a sós.
- Deixar!? Não! Espera aí. Eu vou ter que dormir aqui de novo? - Perguntei: - Eu quero sair daqui, Marcos. Não aguento mais esse lugar. Por favor, me tira daqui!
Eles se entreolharam por um momento e dona Eugênia falou:
- Vou procurar seu médico e ver o que ele nos diz.
Ela saiu e ele ficou me encarando. Voltei a me explicar:
- Não olha pra mim com essa cara! Eu fico deprimida aqui. Só quero ir pro meu cantinho.
Mal havia acabado de falar e o doutor Gonçalo entrou conversando com a dona Eugênia, mas ainda ouvi um sonoro “sozinha, eu não concordo!”. Encarei os dois e ele veio me examinar:
- E como está minha paciente mais impaciente? - Disse olhando meu rosto e depois de uns dois “uhum-uhum”, falou: - Se você concordar em ficar mais esta noite, te mando um bife bem caprichado, temperado e acebolado. Que tal?
- Quero ir embora! - Respondi séria, mas me rendi a uma piada: - Mas um almoço seria bem-vindo. Tô com fome mesmo.
Eles riram um pouco e ele, ao parar de rir, continuou:
- Olha, Annemarye. Você está bem. A concussão não gerou nada sério, além do inchaço, do hematoma. Acho que você poderia ficar só mais uma noite por conta do acompanhamento e dos remédios para dor.
- Quero ir embora! Por favor... - Repeti: - Tomo os remédios que o senhor quiser e ficou quietinha em casa. Só me deixa ir embora.
- Tá. Eu deixo. - Respondeu e me encarou sério: - Mas quem ficará com você? São vários remédios e, nos primeiros dias, serão alguns bem fortes mesmo.
- Vou ter que tomar esse que me deixou grogue novamente?
- Não! Esse não, mas terá que tomar antibiótico, anti-inflamatório e analgésico por uns quatorze dias, no mínimo.
- Eu me viro, doutor. É só assinar meu alvará de soltura. - Brinquei.
Eles voltaram a rir e, nesse momento, até eu segui no embalo, só parando, pouco depois, por conta de uma pontada no rosto:
- Eu a levo para meu apartamento, doutor. - Dona Eugênia falou: - Pelo menos nos primeiros dias ou até os pais dela chegarem.
- Não leva, não! - Retruquei.
- Levo, sim! - Ela retrucou mais alto ainda: - E se não concordar, falo para ele te manter aqui por mais uma semana, no mínimo, e ainda ligo para seus pais.
- Ara, sô! - Respondi, sem saber o que falar, fazendo com que gargalhassem.
- Dançou, caipirinha! - Marcos falou ao se controlar: - Mãe é mãe e a minha quando fala, tá falado.
- Há, há, há! - Ironizei e depois resmunguei: - Virei criança novamente.
- Para uma mãe, não interessa a idade, filho será sempre filho. Um dia, você vai me entender. - Dona Eugênia falou e me deu uma piscadinha.
Depois de matutar um pouquinho, acabei concordando e recebi alta, junto de uma lista quase interminável de orientações, sugestões e receitas médicas. Me levantei sob os olhares curiosos dos presentes, talvez com medo de que eu ainda pudesse estar zonza, mas logo os tranquilizei:
- Não vai querer almoçar antes? - O doutor Gonçalo perguntou.
- Quero ir embora! Como qualquer coisa no caminho. - Respondi, decididamente.
Fui até o armário e peguei minha malinha de roupas. Eu os encarei e, como os homens não se “tocaram”, tomei o rumo do banheiro. Antes que eu entrasse lá, dona Eugênia os expulsou do quarto e ficou de prontidão para me ajudar. Nessa hora, fiquei constrangida pelo vestido que eu teria que colocar, mas, era o que eu tinha para aquele momento:
- Dona Eugênia… - Disse na intenção que ela entendesse que eu queria um pouco de privacidade para me trocar.
- Pode se vestir. Vou ficar aqui para te ajudar. - Ela disse e, entendendo minha intenção, ainda completou: - Não tem nada aí que eu já não tenha visto. Aliás, eu vejo uma todo dia.
- Eu estou pelada. Sem nada por baixo. - Então mostrei meu vestido: - Entendeu!? Sem calcinha, sem nada!
- E daí? Vagina é vagina. Sou médica. Já vi várias.
Acabei me resignando e tirei aquele camisolão na frente dela e vesti rapidinho meu vestido. Por fim coloquei minhas botinhas, guardando os acessórios na bolsa e levando minhas meias nas mãos. Ela foi até um canto do armário e voltou com uma sacolinha descartável, onde guardei as meias então:
- Pelas suas roupas, você estava procurando encrenca mesmo, hein!? - Ela brincou, mas eu acabei não entendendo o tom jocoso de suas palavras.
- Desculpa. Nunca imaginei que eu seria… bem…
- Não, não! Estou brincando com você. Você não tem culpa de nada. - Ela disse ao se aproximar de mim e me dar um abraço: - Você é linda! Tem todo o direito de ficar ainda mais bela para aproveitar sua vida. Infelizmente, nem todos os homens sabem aproveitar corretamente a companhia de uma bela mulher, tá bom? Fica tranquila.
Saímos pelo corredor e a bendita cadeira de rodas já estava a minha espera, com a enfermeira Fernanda a postos:
- Não vou! - Falei de imediato.
- Mas…
- Eu não vou! - Insisti: - A dona Eugênia me dá o braço, o Marcos me dá o braço… Ele me leva no colo se for necessário, mas, de cadeira de rodas, eu não vou!
- Levo mesmo. - Disse e já foi abaixando a mão para me pegar.
- Para! Eu tô brincando. - Falei dando tapinhas na mão dele: - Tira a mão do material, Marcos!
O doutor Gonçalo começou a rir e autorizou minha saída pelas minhas próprias pernas. Saímos de lá para o carro do Marcos, um belo e imponente sedã preto de uma conhecida marca alemã, e logo estávamos rodando pelas ruas da capital:
- Gente… Agora que saímos, vamos falar sério: eu posso ficar sozinha. Eu me comporto, fico quietinha em casa, mas eu só quero o meu cantinho… - Pedi, tentando ser convincente.
- E você achou que eu estava brincando!? Falei muito sério, mocinha! Vai ficar no meu apartamento, pelo menos nos próximos dias. - Dona Eugênia insistiu e acabei fazendo um biquinho típico de criança emburrada, fazendo com que sorrisse para mim: - Vou te tratar muito bem. Pode confiar. Acho que vou até te mimar um pouquinho se você deixar.
Marcos me olhava pelo espelhinho do carro e sorria da minha cara. Acabei mostrando minha língua para ele e balançando negativamente a cabeça, dando-me por vencida:
- Ok, então. - Respirei fundo: - Podemos, pelo menos, passar em meu apartamento para eu fazer uma mala? Estou literalmente sem nada para usar…
- Verdade! Isso eu confirmo. - Dona Eugênia riu e me olhou depois: - Desculpinha…
- É só me falar onde você mora. - Marcos disse em seguida.
Passei o endereço e fomos direto para lá. Ao chegar, ambos desceram comigo:
- Eu não vou fugir, gente! - Falei.
- É, né!? Bem… Cuidado e canja de galinha nunca é demais. - Dona Eugênia disse, entrelaçando seu braço no meu.
Identifiquei-me na portaria e o porteiro, seu Tiãozinho, um senhor de uns sessenta e poucos anos, veio correndo saber porque eu havia passado o dia fora. Ao ver meu rosto, roxo e ainda inchado, se desesperou:
- Meus Deus do céu, menina! O que aconteceu com você? - Perguntou, pálido, vindo me abraçar.
- Ah, seu Tiãozinho. É uma história chata que eu não quero contar pra ninguém agora. - Respondi, correspondendo ao abraço e apresentando meus acompanhantes: - Vou passar uns dias na casa da dona Eugênia e do Marcos. Será que o senhor dá uma olhada nos meus brinquedos para mim? Daquele jeito que a gente combinou.
- Claro, menina! - Passou a olhar meu rosto, com medo até mesmo de me tocar: - Tá tudo bem mesmo, né?
- Tá sim. Pode ficar tranquilo.
Subimos até meu apartamento e os deixei na sala enquanto fui até meu quarto arrumar uma mala para minha hospedagem forçada. Peguei alguns vestidos, bermudas, calças, calcinhas, sutiãs, meus apetrechos de higiene, cremes, maquiagem, tênis, sandália, chinelos, sapatos, enfim, todo o necessário para uma pequena estadia. Levei minha mala pelas rodinhas até a sala e fui até a área de serviço:
- Oi, bebês. Mamãe chegou! - Disse e uns gritinhos ecoaram.
Logo, dona Eugênia veio até onde eu estava e lhes apresentei meus filhos postiços: Torresmo e Bacon, meus porquinhos da índia:
- Quer levá-los? - Ela me perguntou: - Você tem uma gaiolinha, não tem?
- Tenho, mas o seu Tiãozinho já está acostumado a tratar deles. Às vezes, eu acho que, quando eu viajo, ele os carrega para casa e fica brincando com eles. Sei lá...
Peguei as chaves de meus brinquedos, um sedan médio branco de uma marca francesa e uma Fat Boy vermelha com detalhes em preto, e Marcos a minha mala. Descemos até a portaria e entreguei as chaves para seu Tiãozinho que se incumbia de ligar seus motores um pouco a cada dois ou três dias só para mantê-los lubrificados e a bateria em dia, e saímos. Por fim, pedi que também alimentasse meus bichinhos e seus olhos brilharam.
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO TOTALMENTE FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL É MERA COINCIDÊNCIA.
FICA PROIBIDA A CÓPIA, REPRODUÇÃO E/OU EXIBIÇÃO FORA DO “CASA DOS CONTOS” SEM A EXPRESSA PERMISSÃO DO AUTOR, SOB AS PENAS DA LEI.