Dei um beijo de boa noite na dona Eugênia e me despedi dos demais formalmente, inclusive dele. Fui até a cozinha beber um pouco de água e dei um beijo na Fátima também, escancarando que eu não estava confortável com os dois homens da casa. De lá para minha suíte foi um pulinho e, pela primeira vez desde que chegara ali, tranquei a porta. Me joguei na cama de roupa e acabei chorando magoada com ele e comigo mesma por ter me deixado ser enganada novamente. “Poxa! Namorada!? Por que ele fez isso comigo? Aliás, como você fez isso com você, sua idiota!”, pensei, enquanto chorava baixinho para não alertar ninguém. Fiquei ali, deitada, chorando, me lamentando e, não sei a que horas da noite, ouvi mexerem na fechadura da porta, tentando abri-la, em vão. Ninguém me chamou e se tivesse feito, eu não atenderia, nem mesmo se fosse a dona Eugênia. Depois disso, dormi, aliás, cochilei, ou melhor ainda, rolei na cama fechando e abrindo meus olhos durante toda a noite. Uma noite que parecia não ter fim...
Capítulo 8 - Colo de mãe e do meu pai, ai!
Acordei, ou abri de vez os olhos, não sei bem, por volta das nove e meia da manhã. Eu estava horrível, com olheiras profundas de uma noite pessimamente mal dormida. Fiz o meu melhor na frente do espelho e, inclusive, usei o preparado da dona Isaura sob os olhos. Melhorou, mas não resolveu minha aparência. Me levantei e fui até a cozinha procurar um café. Depois de cumprimentar a Fátima, peguei apenas uma xícara com café preto e fui até a sacada da área social, para me distrair com a paisagem. Perdida em meus pensamentos, olhando para o nada, conclui que tinha feito o correto e que, na verdade, eu deveria tê-lo feito desde o início. Logo, a dona Eugênia chegou me dando um carinhoso abraço e beijo no rosto, levando-me para sentar com ela numa mesa externa próxima:
- Você não dormiu bem, tá no seu rosto. - Ela contemporizou: - Então, deve ter tido tempo de pensar no que te pedi.
- Não há o que conversar, dona Eugênia. É a vida me atropelando mais uma vez e só vou deixá-la seguir… - Falei, olhando para minha xícara.
- Marcos me contou ontem que vocês quase se beijaram…
- Menino linguarudo, sô! Ara! - Me surpreendi, mas completei em seguida: - Ainda bem que não aconteceu.
- Ele quer conversar com você. Me disse que quer se explicar e ele tem uma boa explicação. Apenas o ouça. - Ela colocou a mão sobre a minha e apertou: - É uma mãe… É a sua amiga quem está pedindo, por favor!
- Eu vou embora, dona Eugênia. - Falei e a surpresa se estampou em seu rosto: - Já liguei para meu pai vir me buscar.
- Poxa, Anne… Não deixa uma história que tem tudo para ser linda terminar assim.
- Desculpa, mas eu não… - Me interrompi, com os olhos marejados e pronta para chorar.
Sem saber mais o que falar, lhe dei um beijo no rosto, levando minha xícara para a ilha da cozinha, agora sob o olhar assustado da Fátima e tomei o rumo da minha suíte para organizar minhas coisas.
[...]
A tristeza no olhar daquela menina me atingiu forte, nem um punhal em meu peito teria sido tão doloroso. Eu precisava fazer algo para salvar aquela história que mal havia começado e decidi agir, mas meus pensamentos foram interrompidos:
- Dona Eugênia, a Aninha tava chorando… - Fátima me falou, preocupadíssima com a jovem conterrânea.
- Eu sei, Fátima. Ela está com o coraçãozinho machucado e o Lelinho fez questão de enfiar o dedo ontem.
- Uai! O que foi que ele fez que eu não vi?
- Não foi nada. Esquece. Eu vou ajudar essa menina. Pode ficar tranquila.
Assim que ela se afastou, liguei para o Marcos e ele não me atendeu. Eu precisava falar com ele de qualquer forma, dizer que ela estava indo embora e que, se ele a amasse, teria que parar tudo e colocá-la em primeiro lugar em sua vida. Tentei mais duas, três vezes e nada dele me atender. Liguei na empresa e fui informada de que ele havia saído com investidores para visitar uma obra, esquecendo seu celular:
- Mas, querida, alguém deve ter um telefone. Eu preciso falar urgentemente com o Marcos.
- Dona Eugênia, vou tentar ligar para o encarregado que está acompanhando eles e peço para ele ligar para senhora. Pode ser?
- Claro! Faça isso. Ficarei aguardando. - Respondi, meio sem esperanças: - Mas, de qualquer forma, assim que ele botar os pés na empresa, peça para ele me ligar com urgência urgentíssima!
- Sim, senhora. Fique tranquila.
- Querida… Tranquila é a única coisa que não estou hoje.
[...]
Depois de arrumar minhas coisas, só me restava esperar a chegada do meu pai. Fui até a sala de estar e não vi a dona Eugênia. Imaginei que estivesse em sua suíte. Me sentei no sofá e fiquei navegando pela internet no meu celular até que um sono avassalador me atingiu em cheio. Eu estava realmente cansada da noite anterior e como consegui ficar muito bem aninhada nas almofadas, ousei dormir ali mesmo. “A dona Eugênia que me desculpe, mas um pouquinho não faz mal, né!?”, pensei antes de apagar.
Acordei, não sei quanto tempo depois, com uma mão acariciando minha cabeça. Abri meus olhos e vi minha mãe me encarando e segurando um choro que não sei como conseguiu. A olhei surpresa, mas logo sorri para ela e ganhei um abraço gostoso, desses que só a mãe da gente sabe dar. Daí ela não se segurou mais e desabou em lágrimas. Eu que precisava tanto de um colo tive que consolá-la:
- Mãe, eu estou bem. Foi só um susto. - Disse várias vezes enquanto a alisava.
Pouco depois, vi meu pai de pé atrás dela e a única coisa que consegui fazer foi dar um “tchauzinho” à distância, sorrindo por vê-lo ali também. Ao lado dele, dona Eugênia nos olhava igualmente com olhos marejados. Depois de um tempo, ela, enfim, conseguiu se controlar e se levantou de cima de mim, dando-me a chance de me levantar e pude dar um abraço no meu pai. Sistemático, após o abraço, passou a mexer na minha cabeça para várias direções, como se estivesse analisando o estrago que me fizeram:
- Estou bem, pai. O pior já passou.
- Onde está esse animal?
- Não faço ideia e não quero saber.
- Ele não foi preso?
- Depois a gente conversa sobre isso, tá bem? Agora não é o melhor momento.
- Tudo bem. - Concordou, me dando um beijo no rosto: - Mas a gente vai conversar mesmo, e muito sério.
- Anne, quero que vocês fiquem para o almoço. Fátima já está terminando de esquentar uma deliciosa costela que a nossa menina... - Encarou meus pais e brincou: - Me desculpem, mas agora ela é um pouquinho minha também! Bem, como eu dizia, que a nossa menina nos preparou ontem.
- Não precisa se incomodar, dona Eugênia. - Meu pai respondeu todo solene.
- Faço questão! - Ela insistiu com ele e se voltou para mim: - Anne, por favor.
- Pai, é melhor aceitar. Uma mãe dando ordem já não é fácil, não vou aguentar duas! - Brinquei.
Eles riram e aceitaram. Ficamos conversando na sala e logo o Marcos chegou aflito, nervoso, engravatado, charmoso, lindo e… travado! Quando viu meus pais, ele ficou tímido, travou! Seria até bonitinho para um homem descompromissado e interessado em mim, mas não era esse o caso. Depois de ser orgulhosamente apresentado pela dona Eugênia aos meus pais, cumprimentando-os formalmente com um aperto de mão encorpado, olhos nos olhos, como um bom negociante, contei que ele fora o meu salvador e meus pais voltaram a agradecê-lo, agora efusivamente. Aliás, minha mãe, sempre emotiva, ainda fez questão de chorar no peito dele.
Depois, já refeitos, almoçamos e, claro, não houve espaço para conversas entre nós dois. Minha mãe não se desgrudava de mim e quando o fazia, meu pai a substituía. Depois do almoço e de negarmos um cafezinho, coisa impensável para nós mineiros, peguei minhas coisas, agradeci imensamente a estadia e os cuidados que tiveram comigo, e dei um abraço mais que apertado na dona Eugênia, fazendo com que chorasse no meu ombro. Eu também chorei. Ela já tinha conquistado um lugar em meu coração e me doeu demais a despedida. Do Marcos, eu me despedi com um abraço meio formal e um beijo no rosto. Eu simplesmente não sabia mais como fazer com ele e fiquei sem jeito. Sei lá, acho que acabei me desconectando. Ainda assim me doía me separar dele, mas era uma dor diferente, estranha e eu não consegui chorar. Eu só não consegui…
- Preciso falar com você. - Cochichou no meu ouvido, interrompendo meu próprio raciocínio.
- Não há nada a dizer. Está tudo bem. - Respondi baixinho para ele.
- Não está. Eu preciso me explicar para você. Só me escuta. - Ele insistiu: - Só um minuto, por favor.
- Meus pais estão aqui, Marcos. Não dá.
Ele me encarou sério, com um olhar triste, mas estava decidido a ter aquela conversa, nem que fosse a última. Nossa despedida já estava demorando mais que o normal e, mesmo sem olhar, eu sabia que meus pais estavam nos encarando. Marcos também parecia saber:
- Seu Vicente, dona Luíza, eu preciso conversar um assunto importante com sua filha e tem que ser agora. Será que poderiam esperar um pouquinho mais? - Ele perguntou aos meus pais.
Olhei para ele e depois para eles que me encararam, surpresos. Minha mãe me olhou fundo nos olhos e, sagaz, pareceu ter entendido tudo. Voltou-se então para a dona Eugênia que, igualmente surpresa com a atitude do filho, nos encarava sem reação:
- A senhora disse que tinha um cafezinho? - Ela lhe perguntou, sorrindo: - A viagem vai ser longa e seria bom meu marido tomar um para ficar mais “esperto”, né, Cente?
Meu pai encarava o Marcos agora como se quisesse jogá-lo da sacada. Eu não podia culpá-lo, ele quis fazer o mesmo com o Gustavo quando soube da traição e olha que se tivesse tido chance, acho que eu teria deixado. Acredito que só quisesse me proteger de uma nova decepção, aliás, eu tinha certeza disso:
- Tenho sim, dona Luíza. Venham comigo. - A dona Eugênia falou de imediato, também entendendo a intenção da minha mãe e, indicando a direção da cozinha, convidou novamente meu pai: - Seu Vicente, venha tomar um café.
- Tá. Eu… Eu vou. - Ele respondeu, voltando seu corpo em direção à cozinha, mas ainda me encarando, sério.
Eles foram em direção a ilha da cozinha e eu me dirigia ao sofá da sala de estar, quando o Marcos me pegou pela mão e puxou para sua suíte. Assim que fechou a porta, eu falei de imediato:
- Você está louco!? Meu pai é descendente de italianos, turrão e mineiro do interior, e você me puxa pro seu quarto? Ele vai acabar te dando uma surra.
- Se eu tiver tempo de me explicar para você, tomo a surra com gosto. - Brincou: - Quero me explicar sobre a Márcia.
- Você não me deve explicação alguma da sua vida, Marcos. Só não gostei daquela coisa da sedução, paquera, brincadeiras e depois descobrir que eu não passei de uma brincadeira para você.
- Eu nunca te desrespeitei, nem te tratei como um objeto e…
- Não pareceu! - Eu o interrompi e me dirigia à porta, mas me arrependi: - Eu sei! Desculpa. Eu é que devo ter me confundido. Ainda estou meio confusa depois que terminei meu noivado. Fica tranquilo. Não te culpo de nada.
- Para! - Ele foi até a porta e se colocou entre ela e mim: - Eu vou terminar com a Márcia. Depois que te reencontrei, eu consegui entender que o que eu sentia por ela não era nada. Não vou abrir mão de você.
- Está louco!? Eu nunca vou atrapalhar o relacionamento de ninguém! Ninguém, ouviu? - Mas quando vi uma certa tristeza em seu olhar, meu romantismo falou mais alto e acabei não matando sua esperança: - Vou passar uns dias na casa de meus pais para descansar, me recuperar e colocar a cabeça no lugar. Só acho que se você não tem certeza do que sente por essa Márcia, deveria ser honesto com ela. A gente… bem... eu não sei.
- Eu posso ter esperança? - Me perguntou, segurando em minha mão.
- Uai! Não dizem que a “esperança é a última que morre”. Então… - Falei e cometi o erro de colocar minha mão em seu rosto: - Agora eu preciso ir. Meus pais já estão me esperando e meu pai já deve estar te esperando também com a cinta na mão.
Fiz menção de me virar para a porta, mas ele não aceitou e me virou para si, abraçando-me forte. Eu não neguei o abraço, pois imaginava ser apenas uma carência, talvez um abraço de despedida. Entretanto, o contato entre nossos corpos, as respirações se encontrando, os corações próximos um do outro, não deu para segurar e para um, aliás, para “o” beijo surgir, foi questão de segundo. Não sei como, mas nossas bocas se encontraram. Me rendi a uma vontade que também era minha e nossas línguas bailaram, buscando salvar algo que parecia ter se perdido. O estranho é que não estava! Foi um beijo intenso, forte, necessário e, não fossem meus ferimentos, teria sido mágico. Mas, ainda assim, foi muito, muito, muitíssimo bom!
Depois de algum tempo e dois ou três gemidos meus de dor, ele afastou sua boca, mas manteve sua testa encostada a minha. Adorei ficar curtindo aquele contato de olhos fechados. Aquele silêncio disse tanta coisa:
- Eu vou resolver e te buscar. Prometo! - Falou para mim.
Eu nada respondi, talvez com medo de confirmar um compromisso que ainda me assustava, mas sorri para ele. Por fim, ele abriu a porta da sua suíte e voltamos até a área social do apartamento, vendo que nossos pais conversavam animadamente na ilha da cozinha. Acho que tínhamos cara de crianças que haviam feito arte porque minha mãe sorriu de uma forma cúmplice que eu só me lembrava de ter visto na época dos namoradinhos de adolescência. Meu pai não parecia tão animado e vi que só ficou mais tranquilo quando me viu:
- Café? - Perguntei ao me aproximar deles.
- Café, querida. Vem cá. - Disse a dona Eugênia, colocando uma xícara para mim.
[...]
Não gostei da atitude do tal Marcos ao pedir para conversar a sós com minha filha. Tudo o que a Annemarye não precisava naquele momento era se machucar em outro relacionamento. A Luíza seguia rápido e serelepe para a ilha da cozinha do apartamento com a dona Eugênia e parecia já ter entendido algo que eu só comecei a imaginar naquele momento.
Fiquei inquieto quando me sentei no banco da ilha. Eu olhava a todo o momento para aqueles dois e fiquei ainda mais arredio quando vi que ele puxou minha filha para dentro do apartamento. Me estiquei todo no banquinho praticamente os seguindo com o olhar:
- Acalme-se, seu Vicente, eles só precisam conversar. - Falou a dona Eugênia.
- O que está acontecendo? - Perguntei objetivamente, só querendo confirmar o óbvio.
- Sério que você não notou, Cente. Eles se gostam, seu bobo. Acho que ele foi se declarar para ela. - Luíza disse, chamando minha atenção: - Senti um clima de romance desde que ele chegou. Só não entendi porque eles pareciam meio perdidos…
- Luíza, a Anne acabou de sair de um relacionamento. Acho que você esqueceu o tanto que ela sofreu por causa daquele outro miserável lá, não foi? Não sei se ela está pronta para outro assim tão cedo…
- Vicente!? - Luíza me repreendeu por alguma coisa que eu disse.
- Seu Vicente. - Dona Eugênia me chamou a atenção: - O senhor está certíssimo em querer proteger sua filha. Eu faria o mesmo. Só que o Marcos não é um “miserável”. Ele é um ótimo rapaz e não digo só por ser meu filho. Adoro de coração a Annemarye e digo que se eu achasse que ele não seria capaz de fazer sua filha feliz, eu seria a primeira a me opor, mas eu… - Ela agora encheu os olhos de lágrimas: - Poxa, gente… Se vocês tivessem visto o que eu vi nesses dias. Eles se adoram! Brincam, se divertem, se paqueram… Pareciam dois adolescentes apaixonados.
- Não sei. Não sei mesmo! Não estou convencido. - Insisti e tomei um bom gole de café antes de me tocar da força daquela palavra: - Apaixonados!? Mas como? Eles não acabaram de se conhecer?
- Não, seu Vicente. Eles já se conheciam de uma viagem aos Estados Unidos. Quis o destino que eles se encontrassem num momento, digamos, atípico, mas que trouxe com força um sentimento que acho que eles já tinham um pelo outro.
Cocei meu queixo intrigado com todas as coincidências, mas não podia negar que eu próprio pedi inúmeras vezes a Deus que fizesse minha filha feliz. Ela merecia e se fosse com ele, que fosse Eu a amava demais e só queria o seu bem, mas, ainda assim, minha desconfiança gritava mais alto:
- Confio demais na minha filha, dona Eugênia, mas… sei lá... Ainda acho muito cedo. - Insisti.
- Para com isso, homem! Se ele puder fazer nossa filha feliz, serei a primeira a ficar do lado dos dois. Não tente atrapalhá-los.
- Eu não disse isso, Lú! Amo minha filha e nunca atrapalharia nada. Só disse que acho cedo. Eu não quero vê-la chorar novamente… - Respondi e fiquei eu agora com os olhos marejados pela triste lembrança de tê-la visto sofrer tanto por um amor traiçoeiro.
Aliás, nesse momento, as lembranças daquele dia em que ela me ligou chorando, aos prantos, tentando me falar alguma coisa que não conseguia, sufocada ao ponto de ficar sem o ar, vieram forte na minha mente. Acho que já tinham se passado uns dois meses quando ela me ligou no meio da noite totalmente transtornada:
- Pai! Pai! Pai! - Ela repetia sem parar no telefone sem falar mais nada, apenas chorando, soluçando e passando mal.
- Annemarye, o que está acontecendo? - Eu perguntei imediatamente, tentando controlar ainda a Luíza do meu lado: - Respira, menina! Fala comigo. Annemarye, fala comigo.
- Pai! Pai. Ah, pai… - E chorou de uma forma que me doeu no fundo da minha alma.
- Meu Deus, o que está acontecendo, Cente? - Luíza começou a me metralhar, tentando tomar o telefone de minhas mãos: - Eu quero falar com a minha filha. Me dá essa merda, Vicente!
- Para, Luíza! Você não vai ajudar em nada falando com ela assim. Você só vai deixá-la mais nervosa. Agora, para!
Eu só ouvia minha filha chorando no outro lado da chamada e voltei a conversar com ela:
- Annemarye, me escuta. - Pedi sua atenção e ela não me respondeu, mas eu tinha que tentar ajudá-la, mesmo que à distância: - O que foi que eu te ensinei a fazer em um momento de crise, na sua infância?
- Procurar um policial!? Pra que eu quero um policial agora, pai? - Ela começou a voltar sua raiva para mim e isso era ótimo, pois estava reagindo.
- Porque ele é preparado para atuar numa crise, meu anjo. Liga pra polícia. - Falei, pois tinha conseguido pelo menos fazê-la conversar comigo.
- Eu não preciso de um policial, pai. Preciso de um assassino para acabar com a vida daquele desgraçado. Aquele desgraçado acabou com a minha vida. Poxa, pai… - E voltou a chorar.
- Ele quem, Anne? O Gustavo? Ele fez alguma coisa pra você? - Insisti, falando o que me parecia ser o mais óbvio naquele momento.
- É! Ele… - Ouvi alguém falando o nome dela onde ela estava e um xingamento muito claro: - Gustavo! Você ainda está aqui? Sai daqui, seu filho da puta! Some da minha frente, desgraçado!
- Anne! Ai, meu Deus! Para. Por favor, me escuta. - Ouvi a voz de seu namorado, pouco antes da ligação ser encerrada e meu preocupei imediatamente:
- Vou trocar de roupa. Estou indo para São Paulo. - Disse para a Luíza que se levantou e me acompanhou para fazer o mesmo.
Enquanto nos trocávamos, meu celular tocou novamente e vi que ela estava ligando novamente. Atendi:
- Annemarye, o que está acontecendo? - Falei de imediato.
- O Gustavo me traiu com a Denise, pai. Ele me traiu com a Denise. - Falou irada, mas sem chorar.
- Ele está aí? - Perguntei.
- Estava, mas o seu Tiãozinho chutou ele para fora do condomínio. - Ela continuou falando, brava, mas já um pouco mais controlada: - Ele e ela... Ele colocou os dois para fora!
- O seu Tiãozinho está aí com você? Deixa eu falar com ele? - Pedi e a ouvi rindo de uma forma meio nervosa.
- Pai… - Continuou: - O seu Tiãozinho pegou o Gú pelos fundilhos da bermuda e o jogou para fora como um saco de batata. A bermuda dele rasgou e ele praticamente ficou só de cueca na rua.
- Minha nossa! - Falei.
- Minha nossa, nada! - Ela passou a rir mais alto ainda, quase gargalhando: - Daí ele tirou a cinta e foi para cima da Denise que chorava como se fosse a vítima da história e falou que ela ia tomar a surra que devia ter tomado quando criança para aprender a não ficar com os homens das outras. Ela saiu correndo com os peitos na mão. Se não fosse trágico, teria sido hilário.
- Chama o seu Tiãozinho, meu amor, por favor! - Pedi novamente e ela o chamou, dizendo alguma coisa que não entendi.
- Alô! Pois não?
- Seu Tiãozinho, é o Vicente, pai da Annemarye. Tem como o senhor ficar de olho nela até a gente chegar aí? Sei que ela é controlada, mas…
- Nem precisa continuar, seu Vicente. - Me interrompeu: - A Cida já está com ela aqui e vamos ficar com ela até o senhor chegar.
- Obrigado, meu amigo. Depois te dou uma gorjeta, sei lá.
- De forma alguma, seu Vicente. A gente gosta muito dela e vamos cuidar bem até vocês chegarem.
Foi a pior viagem da minha vida. Eu estava tenso, bravo, irado e minha mulher brigou comigo a viagem inteira. Sabem o que é ficar quase quatro horas ouvindo sua mulher dizer que a culpa é sua? Que você nunca deveria ter permitido sua filha morar sozinha na cidade grande? Que eu era homem e devia ter notado que o namorado dela era um canalha? Que isso, que aquilo e etc? Então…
Chegamos no condomínio e seu Tiãozinho nos levou até seu apartamento, onde sua esposa havia feito o milagre de colocá-la para dormir. Ficamos os quatro próximos, conversando baixinho e aguardando pacientemente que ela acordasse depois de descansar a alma. Quando acordou, seu olhar havia se perdido. Ela não chorou, não brigou, não falou, nada. Minha esposa se desesperou e caiu em prantos, mas a Annemarye não reagiu, nem a olhou sequer. Precisei apartá-la da minha filha e pedi que a dona Cida cuidasse dela enquanto eu cuidaria da minha princesa. Princesa!? Não! Eu não havia criado uma princesa, mas sim uma loba, uma leoa e ela precisava se lembrar disso:
- Anne? Anne? - Chamei por seu nome duas vezes e insisti uma terceira, mais incisivo: - Annemarye!?
Ela não se moveu, não me olhou. Então, fiz o que todo pai zeloso de interior, faria nessa situação: dei-lhe um tapa na cara! Podem me odiar por isso, mas eu conhecia minha filha e precisava colocar aquela leoa de pé:
- Ai, caralho! Porra! Seu filho de uma pu… - Ela me encarou, irada, e se calou antes de completar a frase, correndo o risco de tomar outro tapa: - Ai, pai! Poxa!
- Levanta daí, Nala! A rainha das leoas é a primeira que caça! - Brinquei com ela: - Não te criei para ficar de chororô, Annemarye! Já esqueceu o significado do seu nome?
- O que é isso, pai? Você está louco? - Ela me perguntou, assustada.
- Qual é o significado do seu nome?
- Mas o que isso tem a ver com…
- Qual é o significado do seu nome? - Insisti, a interrompendo.
- Porra! Eu sei o que significa. É senhora, soberana, cheia de graça e etc e tal. Sei lá mais o quê...
- Então, levanta e reage. Assume a tua vida de novo!
Ela se levantou, irada, com aqueles olhinhos pretos de jabuticaba brilhando de ódio e, pela primeira vez desde que chegamos ali, vi que ela procurou se localizar e saber o que acontecia ao seu redor. Daí ela viu minha esposa, calada, mas claramente em pânico nos braços da dona Cida e foi até ela. Lá se abraçaram e todo o meu trabalho foi por água abaixo porque começaram a chorar como duas histéricas. Pelo menos, ela se controlou antes da mãe e a ajudou a se controlar também. Agradeci a ajuda do seu Tiãozinho e da dona Cida e fomos para seu apartamento. Ela só não tacou fogo no colchão, porque eu não deixei, prometendo que compraríamos um novo no dia seguinte, o que fizemos realmente.
Ela colocou todas as coisas do ex-noivo em sacos de lixo e o avisou, via WhatsApp, que teria até um certo horário para recolhê-los em frente ao prédio, ou o caminhão da coleta o faria. Frisou bastante que os dele, eram aqueles que estariam amarrados com a lingerie da amante. Bem… Ela usou a lingerie da ex-amiga para amarrar outros sacos de lixo que não os das coisas dele. Então, se ele os recolheu, deve ter tido uma surpresa nada agradável em sua casa.
Depois disso, foi um inferno! Ela não queria trabalhar e eu, nem minha mulher, conseguíamos convencê-la. Acho que as lembranças e a frustração vieram fortes nos dias seguintes, porque, por duas semanas, minha filha, prática, calculista, objetiva, centrada e dona de si, se perdeu da vida e chorou o que nunca havia chorado em toda a nossa existência nesse mundão de meu Deus. Até uma patroa dela veio saber o porquê do seu sumiço e, ao tomar conhecimento, se compadeceu e disse que cuidaria de seus processos até ela se restabelecer:
- Seu Vicente. - A dona Eugênia retirou-me de meus pensamentos: - Não há um ditado que diz que nada é melhor que um amor para curar as dores de outro amor. Então!? Talvez o Marcos seja o bálsamo que a Annemarye precisa.
- Não sei. Eu… Eu peço desculpas se ofendi seu filho, não foi essa minha intenção, dona Eugênia, mas eu… Eu realmente não sei o que pensar. Vamos ver… Deixa eu conversar com minha filha depois, ok?
[...]
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO TOTALMENTE FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL É MERA COINCIDÊNCIA.
FICA PROIBIDA A CÓPIA, REPRODUÇÃO E/OU EXIBIÇÃO FORA DO “CASA DOS CONTOS” SEM A EXPRESSA PERMISSÃO DO AUTOR, SOB AS PENAS DA LEI.