Meu pai é diretor de uma empresa que fabrica vidros. Antes desse emprego ele trampava num lugar que fabricava carpete pra carro, ou seja, o homem tinha a moral de arrumar uns empregos, cada um mais sem graça que o outro.
Fui me ligar que o cara era o mandachuva quando cresci, mas quando era criança, meu pai trabalhava tanto que um dia ele me levou na escola e quando perguntaram quem era eu disse que era o namorado da minha mãe, que ele nem morava com a gente.
Segundo me contam, depois disso o meu pai começou a trampar menos e ficar mais com a gente.
Mas o que interessa saber desse lenga-lenga é que meu pai é o fodão.
O fodão tipo Tony Stark, sabe…
O cara, na maior elegância, obrigou os pais da Cris a assinar um documento onde os caras meio que abriam mão da guarda, meus pais foram “nomeados” tipo… responsáveis legais, uma coisa assim… não prestei muita atenção.
E o meu pai, quando eu era criança, pegou um dos quartos de casa para fazer um tipo de escritório, mas como ele passou a trabalhar menos, o lugar acabou virando um… nada. Tinha uns móveis lá, mas ninguém nem entrava no lugar.
No dia seguinte a chegada da Cris, logo cedo misteriosamente apareceram uns caras e começaram a esvaziar o quarto, depois pintaram tudo - maior barato que a tinta não tinha cheiro - trocaram a porta, tiraram o carpete e colocaram um piso que parecia madeira, e foi tudo tão rápido e eficiente que na hora do almoço os caras já tinham terminado tudo.
E lá veio a Cristiane reclamar que ela podia muito bem continuar dormindo no quarto comigo.
— Não, não, não… - disse minha mão quando a Cris reclamou - Nem fica bem uma menina linda como você, dormir no mesmo quarto que o Leo… vai que esse menino maluco resolve ver pornografia na sua frente… não, não, não…
— Que papo é esse de ver pornô, mãe? - perguntei indignado.
— Tá, que eu não sei que você vê essas coisas, Leonardo… - disse ela me matando de vergonha.
Aí, meu pai veio almoçar com a gente, coisa que peguei bem pra caramba, e a tarde fomos os quatro bater perna na cidade e comprar móveis novos para uma Cris revoltada.
— Você não tem de gastar esse monte de dinheiro comigo, tia!
— Enfia uma coisa nessa cabecinha, meu amor. - disse minha mãe segurando a Cris pelas orelhas - Quem manda aqui sou eu, seus pais me autorizaram a fazer com você o que eu quiser, então, se eu quero te dar um quarto, um monte de roupas bonitas e jóias e perfumes… aceite, e sem reclamar!
A menina tinha passado a vida toda indo lá em casa e não sabia que a minha mãe era doida?
Chegou uma hora que aquilo perdeu a graça e fui no cinema com meu pai e as duas foram comprar, comprar, comprar… que povo pra gostar de comprar… nunca vi.
Nem perguntei o quanto custou a brincadeira, só sei que no dia seguinte estava tudo pronto, arrumado, móveis montados, cortina instalada, quadros nas paredes, luminárias cheias de frescura e um monte de roupas e calçados em sacolas chiques sobre a cama…
O povo com quem a gente jogava bola no condomínio achou um barato a Cris aparecer e tirando um ou outro que ficou de conversa errada, até que foi tudo bem de boa, as meninas inclusive curtiram um monte o bom gosto dela pra roupas e aí, já viu, virara best friends.
Na escola, antes da Cris voltar já como menina, troquei ideia com meus parceiros sobre o assunto, e é lógico que os caras não botaram fé no que eu tava falando, então, levei todo mundo lá em casa pra conhecer a Cris.
Foi quando eu vi que não era só comigo que a coisa era cabulosa.
Todo mundo que já conhecia a versão antiga dela ficou meio assim… tipo… sem reconhecer a versão antiga naquela menina linda que estava na frente deles.
Os caras piraram o cabeção quando viram que era de verdade um Cris transformada. Passamos a tarde inteira trocando ideia, até minha mãe expulsar todo mundo que ela tinha coisas pra cuidar e a gente tava atrapalhando.
E nisso, rapidinho ela tinha um monte de gente que comprava briga por ela.
Um maluco até de declarou apaixonado…
Só não soquei o cara porque a Cris riu e disse que era uma mulher comprometida.
Meus pais foram com ela no médico para começar a transição, iam com ela no psicólogo e deram toda assistência pra menina desabrochar.
Eu tava junto com o meu pai quando ele foi na escola conversar com o diretor/dono e explicar que a Cris é menina, seria tratada como menina, usaria o banheiro das meninas e que se alguém tivesse alguma coisa contra isso, que falasse com os advogados dele.
Na moral… o coroa chegou com aquela cara de boa praça que ele tem, trocou ideia com os caras numa boa, contou até umas piadinhas sem graça e soltou a bomba.
Se a Cris fosse incomodada com a menor e mais insignificante das brincadeiras que só diverte um lado, por quem quer que fosse dentro da escola, que o processo viria pra arrancar o couro de todo mundo.
E como o meu pai é fodão, e o diretor ficou com o cu na mão, no dia seguinte o cara fez uma reunião com todos os alunos e meio que ameaçou expulsar todo mundo que fizesse besteira e que se a escola fosse processada, ele arrancaria o dinheiro dos pais dos preconceituosos.
Aí você deve ter pensado que nessa, os caras que curtem zoar a cara dos outros viriam pra cima da gente só de pirraça.
Certo?
Certo.
Só que, nem eu, nem os caras e nem aquele monte de gente que já gostava dela, ninguém contava que a Cris fosse louca de pedra, e, além disso, a mulher estava escorada no poder do meu pai…
Olha a conversa.
— Se alguém disser ou fizer qualquer coisa - disse meu pai um dia em que os dois estavam conversando na sala - que você não goste, me chama, Cristiane.
Meu pai tinha essa mania de chamar a Cris de Cristiane.
— Se preocupa não, Tio… eu sei me cuidar.
— Sabe? - perguntou meu pai desconfiado.
— Ando com o Leo desde criança… aprendi com ele.
— Mesmo assim. - meu pai não tava levando a sério a conversa dela - Se precisar, me chama.
E quando eu digo que a menina é doida, é porque ela foi pra escola no primeiro dia dela toda montadinha… nem dá pra dizer que ela ia montadinha porque desde o dia em que saiu pra fazer compras com a minha mãe, ela nunca mais usou roupas de menino… então, no primeiro dia de aula dela, a menina foi vestida meio que de Arlequina.
Eu não sabia o que mais me chamava a atenção, se o fato de ela ser de fato menina, se o shortinho jeans, a meia arrastão, a camiseta grudada, o tênis com luzinhas coloridas, a maria chiquinha ou o taco de basebol.
Para quem conhecia o Cris, todo tímido e quietinho, é claro que fiquei na neura de acontecer alguma coisa, mas a Cristiane, como dizia meu pai, era diferente, a menina tem uma confiança que beira a petulância… resultado disso é que, na saída da aula, eu esperava por ela na esquina e ela veio na minha direção toda sorridente.
Nisso um moleque veio pra cima dela, na calçada, FORA da escola, e enquanto ele só falava umas palhaçadas, ela deixou quieto e continuou no seu caminho, mas quando o moleque botou a mão nela, querendo a atenção que ela não dava, a garota simplesmente deixou o taco cair na cabeça do menino.
E não é que a maldita sabia usar aquilo… deve ter aprendido na gringa.
Lógico que quando vi que a coisa ia complicar, corri para o lado dela pra ajudar caso a coisa piorasse, mas nem precisava.
Apareceram mais moleques, amigos do primeiro, apareceram nossos amigos também, teve muita discussão, teve gente exaltada, a Cris fazendo cara de quem queria sangue, esperou pra ver se só na gritaria dava pra resolver, mas quando viu que não, me colocou nas costas delas, falou pros “meninos dela” se afastar e rodou aquele taco acertando quem estivesse no caminho e no final, teve um ou dois dedos que podiam ou não ter quebrado e alguns hematomas.
Todo mundo ameaçou chamar advogados, mais gritaria, ninguém ousava chegar perto, mas a coisa só acabou quando a polícia pareceu.
Aí você vai dizer que não dava pra ela ir com o taco pra escola todo dia.
Certo?
Certo.
E ela não precisava.
Ela disse que fui eu que ensinei… eu não lembro de ser tão violento… mas o mais louco é que quando foi preciso, não é que a menina mostrou, mesmo, que sabia se defender…
Minha mãe até perguntou em quantas brigas me meti quando era criança para a Cris ter aprendido tanto…
Eu não lembrava de ter arrumado tanta encrenca.
Por falar na minha mãe, a mulher tava toda feliz de ter uma filha, mesmo que postiça. As duas saíam pra passear, iam juntas arrumar o cabelo, fazer unha, comprar roupa… essas coisas
Quando estava com a minha mãe, a Cris se comportava feito uma mocinha, toda dengosa e fofa, mas na escola… lá também ela era fofa, mas quando acontecia alguma coisa, pelo amor de Deus… a menina era desaforada, peitava qualquer um e era até meio barraqueira…
Tudo o que eu queria que o Cris fizesse quando a gente arrumava encrenca, quando nós dois éramos meninos e ele nunca fez, a Cris fazia.
— Sou magrinha, Léo, - disse ela um dia que a gente chegou em casa sem arrumar briga - no corpo a corpo não dou conta, por isso tenho de bater onde machuca, pra dar tempo da gente correr.
E um exemplo disso aconteceu uma semana depois, quando fomos cercados na saída da escola, uns meninos que se sentiram ofendidos por apanhar de uma menina vieram na ignorância, chamando ela de viadinho e coisas do tipo.
A Cris, abriu um sorriso lindo e mandou todo mundo se foder.
E aí virou bagunça.
Nisso, nossos amigos já tinham aprendido que era melhor ficar longe e apreciar o espetáculo.
Vou te dizer, a primeira vez que a vi dar um murro na garganta de um moleque que naquele dia passou a mão na bunda dela, juro, até eu fiquei assustado.
Parecia que baixava uma entidade na mulher…
Cê é loko…
Quando o moleque ficou sem respirar, ela deu dois tabefes com toda força nas orelhas do menino.
Sabe aqueles com a mão feito copinho?
A besta deve ter ficado dias meio surdo.
E sabe o que ela disse quando me viu surpreso?
— Nem faz essa cara, Leonardo que aprendi com você…
Cara… nas semanas que seguiram, a menina enfiou uma lapiseira na mão de um louco que tentou beijar a boca dela, chutou o saco de um nóia que veio na violência pra cima e enfiou as unhas na cara de um moleque - e ali acho que ela exagerou na maldade - só porque o cara chamou ela de gostosa no pátio da escola.
Nas primeiras semanas tinha confusão quase todo dia, a maioria a gente resolvia na conversa, que, na verdade, ninguém tinha a moral de bater nela…
Até parece que alguém encostaria um dedo naquele dengo de criatura, por mais que ela fosse filha do capeta quando arruma briga…
Mas de vez em quando a coisa ficava feia, o povo se exaltava e acabava tudo em confusão, mas quem corria o risco de apanhar era sempre eu ou algum amigo nosso que estivesse ali para ajudar.
De qualquer forma, apesar da forma violenta como ela cuidava do assunto, nunca aconteceu nada que mandasse alguém pro pronto-socorro, - o moleque da lapiseira na mão não sei se foi pro PS.
E na última vez que a gente “teve” de brigar, (e eu achava que a Cris gostava de bater nos meninos) eram uns três e os caras tavam bem bravos, que ela zoou com o tamanho do pinto deles, e a gente teve de correr, porque, além de tudo, a louca chutou o saco de um e arrancou um teco de cabelo de outro, mas, depois daquilo, não sei porque, talvez porque de um jeito ou de outro ela acabou conquistando o coração de todo mundo, até daqueles que gostavam de perturbá-la, nunca mais ninguém se incomodou com ela.
Sem contar que a Cris se tornou tipo a rainha da moçada LGBT e muita gente não hétero meio que tinha ela como uma diva máxima da parada.
Tinha até página no Instagram dos fãs dela.
E não era uma página só uma, não.
Lá pelo meio do semestre estava todo mundo de boa com o fato de ela ser menina já tendo sido menino e a maioria até esquecia dessa história.
A mulher era tão cativante que até os malucos em quem ela bateu acabaram se tornando amigos dela. E com ela não tinha tempo ruim, ela trocava ideia desde as candidatas a biscates, aquelas que andavam de moletom gigante pra todo lado e as patricinhas ridículas, com os tortos, os nóias, com os inteligentes… chegava perto ela prendia no laço invisível de simpatia…
Onde a gente morava, os camaradas trataram de anunciar a novidade e ninguém abriu a boca para falar nada contra, talvez por que todo mundo soubesse que meu pai não deixava barato… sei lá…
Na verdade, até teve uma senhora de uns duzentos anos que falou merda pra ela no elevador, mas a Cris, debochada que só, abraçou a mulher por trás, deu uma encochada na mulher que até levantou a doida… e pra piorar deu uma mordidinha no pescoço da véia e uma bolinada nos peitos da doida preconceituosa…
Juro… achei que a mulher ia explodir de raiva dentro do elevador.
E o pior, não tinha como a véia escapar e a Cris ficava ameaçando agarrar a mulher e eu fingia que tentava impedir.
Cara… como a gente riu.
Óbvio que o síndico veio encher o saco, mas meu pai nem deu corda.
Estou enrolando aqui, mas eu sei que todo mundo tá interessado é em saber como ficou aquele tesão todo que eu tinha por ela, lá no começo.
Não vou dar de louco de dizer que desapareceu de uma hora pra outra, que não foi bem assim, e também não posso afirmar que o fato de ela ter pinto não me dava uns frios na barriga, mas toda vez que lembrava do beijo… cara… pensa num moleque que perdia o contato com a realidade.
Minha mãe até achou que eu tivesse usando umas parada errada.
Quando a gente tava junto na rua, beleza… ela era uma menina bonita que andava com o braço enroscado no meu, todo mundo via, até pelo tanto que a gente ria, que a gente era amigo e tava tudo certo.
Em casa, a rotina de menina era um tormento pra mim, ela tava a vontade, segura de que podia ser ela mesma, então, a menina andava pela casa de camisola ou de shortinho, de toalha… eu quase tinha um treco quando ela vinha e deitava no sofá e usava minhas pernas como travesseiro ou quando pedia massagem nos pés…
Tinha milhares de coisas que ela precisava passar na cara ou no corpo, e às vezes ela saia do quarto e ia terminar de passar creme sentada no sofá comigo… aquilo me tirava do universo… e para piorar, a medida que os peitinhos cresciam ela me chamava para ajudar a escolher sutiã.
Ela tomava os remédios dela todo dia no horário, certinho.
E nisso a gente era quase como sempre fomos, dois amigos que viviam grudados um no outro… mesmo que eu sonhasse beijar a boca dela o tempo todo.
Mas teve um dia, um mês mais ou menos depois de ela anunciar que não era mais menino, a gente estava jogando o game na sala, estávamos sozinhos em casa e quando matei todos os jogadores dela, cai na besteira de comemorar…
Pois a maldita, brava porque não sabia perder, veio pra cima de mim na ignorância, a gente acabou se agarrando e caímos deitados no sofá, eu primeiro e ela esticada sobre mim, o rosto dela bem perto do meu.
— Você é um monstro, Léo… - a menina estava brava de verdade - achei que me amasse…
Mesmo bravinha ela era dengosa e quando falou isso estava com a boca a um centímetro da minha.
— Eu te amo… - respondi sem nem saber o que estava dizendo.
— Então, me deixa ganhar de vez em quando, seu chato!!!
Nisso, do nada, ela começou a alisar meu rosto com a ponta das unhas me fazendo ter calafrios.
— Se eu te beijar, você me deixa ganhar? - disse ela na maldade.
— Se você me beijar eu te deixo fazer o que quiser…
— Olha as coisas que você fala… e se eu quiser mais que beijar tua boca?
Mandei tudo pro inferno e grudei a boca dela na minha…
Cara… como eu estava com saudade daquele beijo.
Dali uns dez minutos, quando percebi pra onde ia aquela conversa, joguei-a no encosto do sofá, deitada ainda, me contorci para cair no chão e levantar antes que ela entendesse o que tinha acontecido.
— Vamos deixar assim por hoje, Cris. - falei sem ar.
Tentei parecer firme na decisão, mas vê-la toda linda e gostosa deitada no sofá… quase pulei em cima dela feito um tarado.
A Cris riu da minha cara e da minha covardia, mas deixou quieto.
Depois daquele amasso, fiz de tudo para evitar que acontecesse de novo, mas parece que a derrota estava anunciada antes mesmo de eu começar a resistir… pensa num moleque desesperado… era eu.
E o pior nem era sentir falta do beijo dela, da boca dela, do corpo dela sobre o meu… o pior era não conseguir ignorar o fato de que ela tinha pinto e que gostava de usar e que seria sacanagem a gente ficar junto e negar esse prazer a ela.
Para aumentar minha situação que já tava foda, afinal, nada é tão desesperador que não possa ficar pior, ela ficava de provocação, mandando beijos quando meus pais estavam em casa, sentava no meu colo “sem querer”, agarrava minha bunda quando passava por mim, chegava por trás e beijava minha nuca…
Juro que resisti, bravamente até, mas no quarto dia depois do amasso no sofá, eu estava tomando café da manhã, minha mãe tava ali perto fazendo as coisas dela e a Cris chega por trás e sussurra com um a vozinha triste no meu ouvido:
— Você disse que me amava…
Ela saiu sem tomar café e eu fiquei numa angústia que parecia pesar uma tonelada na minha barriga.
Quando fui atrás dela a menina já tinha ido pra escola e na saída ela pediu um carro pra não ter de voltar comigo… coisa que só me deixou pior.
Quando cheguei em casa, mesmo com a minha mãe ali, fui direto no quarto dela, entrei, ela estava sentada na cama, mexendo no celular, eu fechei a porta atrás de mim e chegando na beira da cama ajoelhei perto dela e disse.
— Eu amo você! - falei sério - Quero ficar com você, só não sei como…
Ela me fez um carinho no rosto e sorriu um sorrisinho triste.
— Verdade… desculpe, meu amor… tô tão à vontade aqui que acabo esquecendo…
Como não consegui pensar em nada para dizer, acabei deixando ela sozinha.
Ninguém tava feliz ali.
E eu aguentei carregar aquela tristeza por quase uma semana até que fui enquadrado pelo meu pai quando a gente tava sozinho em casa.
— O que está te incomodando Leonardo? - perguntou ele, todo sério.
— Tem nada, não, pai… tô de boa.
— Leonardo… você pode até não acreditar, mas nada que você esteja passando será novidade, as crianças da sua idade não inventaram os problemas, eles existem desde sempre.
Não botava muita fé naquele papo do coroa… meu pai parecia o cara que nunca nem atravessou o sinal vermelho.
— Do jeito como vejo a sua situação, você tem duas opções. - disse ele todo civilizado - Fala comigo ou com a sua mãe. E você sabe que ela vai transformar a sua vida num inferno se for pros lados dela com esse papo de “nada, não… tô de boa”.
Pensei naquilo por um tempo, vi que ele tinha razão, vi que tinha de falar com alguém sobre aquele tormento e acabei falando meio de qualquer jeito.
— Acho que gosto da Cris…
— Gosta em que sentido?
— No sentido que eu quero beijar a boca dela.
O foda do meu pai é que nem faz cara… ele continuou olhando pra mim e de repente apareceu um sorrisinho na cara dele.
— E ela não gosta de você do mesmo jeito… é isso? - perguntou ele.
Como ele parecia que tava levando a conversa de boa, me animei e continuei.
— No primeiro dia em que a Cris se montou a gente estava sozinho… pai… eu não entendo… ela virou menina e eu fiquei louco… eu queria ela pra mim… aí, ela vestiu as roupas de menino, prendeu o cabelo e tirou a maquiagem e o tesão sumiu… só que ela é menina… só que ela tem pinto, pai… eu não sei como lidar com isso.
Meu pai pensou no assunto por um tempo e dali a pouco perguntou de novo.
— O que te incomoda é ele ter pênis, Leonardo?
— Não sei, pai… tem hora que tenho medo de ela querer me comer, por que ela já comeu um cara e curtiu pra caralho e ela ainda é virgem… sabe… lá atrás… então, imagina…
— O que a Cristiane pensa disso?
— A gente não conversou assim… com tantas palavras ainda sobre isso…
Nessa hora ele até levantou e ficou na minha frente… e quando olhei para a cara dele, o homem parecia bem bravo.
Vi que ele respirou fundo umas duas vezes antes de falar e quando começou, parecia que eu tinha voltado a ser aquele moleque de jardim da infância levando bronca.
— Você é muito mais inteligente que isso, Leonardo! Pelo amor de Deus… tudo bem que você não soubesse como conversar com ela sobre isso, mas pensa em como ela está se sentindo… como você se sentiria, por exemplo, se uma menina não quisesse ficar com você por uma besteira qualquer… A Cristiane é muito mais que o pênis dela, filho! E se ela quiser ser ativa… ah, Leonardo… ninguém nunca se insinuou nas suas pregas, Leonardo?
— Pai… - eu estava abismado com aquele papo - Eu fiquei com umas meninas da minha idade… da escola… aqui do condomínio… pode ser que as mulheres com o senhor ficou tenha essa moral, mas… sei lá… ninguém nunca se interessaram pela minha bunda.
— Bom… se é só isso… acho que a sua vida tá muito fácil, Leonardo. Encurtando a conversa que daqui a pouco tua mãe chega, a coisa funciona da seguinte forma. Você vai conversar com a Cristiane e quando souber o que ela pensa e como ela se sente, os dois procurarão um jeito de resolver o que houver para ser resolvido…
— Do jeito como o senhor fala, parece que tá tranquilo que de repente eu fique conhecido como o viadinho do prédio.
— Isso é uma das coisas que você terá de conversar com ela. Mas pensa como a Cristiane se sentirá se você disser que ao namorá-la você te transforma em gay… eu ouvindo isso penso que pra você ela não é mulher… No dia em que você falou com sua mãe sobre a Cris ser a Cris, eu te perguntei sobre estar bem com isso. E o que você respondeu? Então, até que você tenha certeza se a considera mulher ou não, é melhor mesmo nem começar nada.
— Para o senhor tá tudo bem, pai?
— Só para que você coloque em palavras o que te incomoda, para no futuro saber discutir o assunto com mais desenvoltura, me fala, filho, porque você acha que eu não estaria bem com essa história.
Aí, como também não sou tão “oreia seca” parei pra pensar primeiro antes de responder, mas a medida que pensava eu mesmo acabava achando as respostas.
Tipo assim, se meu pai via a Cris como mulher, qualquer coisa que eu dissesse, inclusive sobre as intimidades que a gente talvez tivesse se ficasse junto, ele diria que é assunto nosso e que dentro do quarto o casal faz o que for da vontade dos dois, que ninguém tinha nada a ver com a gente e que a gente não teria como controlar o que as pessoas diriam.
Quando falo que meus pais são daora, não é só porque a gente se dá bem e meio que resolve tudo na conversa, mas também por que desde sempre eles conversaram de tudo perto de mim e nunca deixaram de responder as milhões de perguntas que fiz…
E a gente sempre falou de tudo…
Tá, não tudo que a possibilidade de eu me apaixonar por uma menina trans não existia até a Cris aparecer.
— Sei lá, pai… vai que de repente o senhor quer ser avô…
— Se a criança for adotada, serei tão avô quanto seria se tivesse sido produção sua.
Não dava pra discutir com aquele cara… o maldito tinha resposta pronta pra tudo…
Nisso minha mãe chegou com a Cris e um monte de sacolas de mercado.
Elas viram nós dois sentados no sofá, olharam pra nós perguntando pelos olhos o que estava acontecendo, meu pai deu um tapinha na minha perna e foi pra junto da minha mãe, falando qualquer coisa nada a ver, mas a Cris viu que tinha rolado um clima cabuloso e sentou comigo.
— Tá tudo bem, Leo? - perguntou ela toda preocupada.
— Você gosta da minha bunda? - perguntei sem pensar - Por que será que ninguém nunca se interessou pela minha bunda?
— Você tá bem, Leo? - perguntou preocupada.
— Acho que minha bunda não deve ser grande coisa… - continuei pensando alto.
— Leonardo… que merda é essa de se preocupar tanto com a sua bunda?
— Quando a gente se beija, você pensa que se a gente avançar a parada, você vai querer me comer?
— Não pensei nada disso, Leo… cê tá maluco…
— Mas eu pensei… pensei bastante, por sinal.
— No quê, exatamente você pensou Leonardo? - perguntou ela impaciente.
— Que se a gente ficar junto a gente vai ficar junto.
— Não me entendendo nada dessa sua conversa, Leo… andou bebendo, querido?
Nisso me irritei com a minha falta de jeito pra levar uma ideia tão importante e peguei-a pela mão e levantei e puxei-a para fora de casa, gritando pra minha mãe que a gente ia sair, mas que já voltava.
Ela se deixou puxar até a gente chegar na escada, subimos até o terraço e sentamos numas caixas de plástico que ficavam por lá.
Um de frente pro outro.
— Eu te amo e quero que a gente fique junto. - disse já beijando a boca dela.
— Eu também quero, mas…
— Sem mas.
— Leo… você não tá esquecendo de um detalhe?
— Era sobre esse detalhe que eu estava conversando com meu pai. E ele me ajudou a entender que… que se foda… eu te amo, tenho o maior tesão em você e a gente vai achar nosso jeito de ser feliz…
— Você falou com o seu pai, Leonardo… eu vou te matar. E se ele pega mal com essa conversa? E se ele me põem pra fora de casa, Leo?
— Vamos voltar a fita um pouco, gata… primeiro que meu pai jamais faria isso, segundo que ele é o cara mais mente aberta do planeta, acho até que já andou experimentando outras modalidades de sexo…
— Sério?
— Quando eu falei que tava enroscado na parada da gente transar, ele falou com tanta naturalidade sobre o assunto que eu tô achando que aquele homem já deu ré no quibe…
— Por isso você estava tão preocupado sobre a sua bunda?
— Estava pensando… deve ser legal esse negócio de dar a bunda… nunca tinha pensado nisso… acho que tirando os preconceitos que trava a gente… e eu meio que estava com problemas com isso porque… nunca pensei nisso, mas depois da gente… acho que deve ser daora dar a bunda, se não, não tinha tanta gente dando.
— Isso é verdade.
— Então… a gente descobre juntos se a gente também vai gostar.
— A gente pode ir devagar, amor? Morro de medo…
— Cricri… a gente tem a vida inteira pra se encaixar.
— E você disse pro seu pai que me ama?
— Disse.
— E ele não vai me expulsar?
— Não.
Então, sem dizer mais nada ela sentou no meu colo e me beijou a boca e ficamos nos beijando e trocando juras de amor até o celular apitar e aparecer a mensagem da minha mãe:
“Os pombinhos podem fazer o favor de vir almoçar? Estou saindo com o papai, limpem a cozinha.”
Na escola, quando chegamos de mãos dadas e nos despedimos com um selinho, houve muita falação, zoeira dos caras e aquelas besteiras inevitáveis, mas nada que nos obrigasse a arrumar briga.
Acho até que ninguém fez nenhuma brincadeira mais cruel justamente por saber que havia o risco de processo e por que a gente, Cris e eu, se tivesse de dar porrada, a gente sabia machucar os outros.
E mesmo que direto alguém sussurrasse alguma indireta quando eu chegava, meio que aprendi a não ouvir e, como continuei andando com os mesmos amigos - e os caras se mostraram parceiro pra caralho - e a fazer as mesmas coisas do mesmo jeito, aos poucos acho que o povo meio que se acostumou e parou de se incomodar.
Apesar dos meus pais saberem que a gente estava namorando, com direito a aliança de compromisso e flores, chocolate e gentilezas que nunca ofereci a menina nenhuma, a gente nunca fez mais que se beijar e fazer uns carinhos inofensivos, nem falamos de como seria se passássemos pra próxima fase.
E durante quase dois meses a coisa funcionou bem.
Eu tava feliz, ela parecia feliz, e até meus pais pareciam felizes.
Até, que aconteceu um bendito sábado.