Quando cheguei na porta, o telefone dele tocou e ele atendeu. Ao ouvir o nome “Maisena”, suspeitei e preferi aguardar. Eles conversaram por alguns minutos e o semblante do Morais não me agradou em nada. Assim que eles desligaram, veio a bomba:
- Doutor… É… Então… - Ele tentava escolher as palavras, mas isso só aumentava meu ódio: - O negócio não deu certo mesmo. Parece que uma moça que o Maizena arrumou, uma empregada lá do hospital, tentou apagar a Márcia, mas foi flagrada e presa no ato.
- Porra… Que ótimo! Agora tem mais uma pra você apagar. Está ficando cada vez mais fácil. - Ironizei.
- Mas eu me adiantei, doutor. Quando fechei o esquema com o Maisena, mandei foto do Marcos e pedi para ele mostrar para a moça que faria o serviço. Daí, se fosse presa, ela acusaria seu irmão e o deixaria mais enrolado ainda…
- Certo. Isso ajuda, mas se a Márcia acordar e der com a língua no dentes, ME acusando, contando tudo o que armamos e porque fizemos isso. - Fiz questão de frisar o “me”: - Caralho, eles vão virar o canhão para mim, Morais. Para mim, porra!
- Doutor, relaxa! Se for preciso, mando um bonde entrar e arrasar com ela no hospital.
- Você tá louco, Morais!? A essa altura, ela deve estar sendo vigiada por um batalhão. Agora ninguém chega perto dela. - Considerei o óbvio: - Eu preciso pensar em outra saída.
[...]
Capítulo 40 - Relações Obscuras
- Jairo? É Balthazar. Como está você, meu amigo? E dona Ana? - Perguntei ao telefone, com minha Gegê pendurada em meu ombro, o que me fez ligar o viva voz para ter um pouco mais de conforto.
- Vamos bem, obrigado, seu Balthazar.
- E Márcia? Como está?
- Balthazar… - Ele parou por um instante, como que pensando no que falar, mas prosseguiu com a maior honestidade possível: - Atentaram contra a vida da minha filha ontem à noite. Graças a Deus, um médico passava bem na hora e socorreu a Márcia, mas…
- Ela está bem? - Acabei o interrompendo.
- Então… As próximas horas serão cruciais, mas um médico que a atendeu me disse que, fora o susto, ela parece bem.
- Ela está consciente, acordada? - Insisti.
- Não. Eles deram um remédio para ela dormir.
- Mas quem fez isso, Jairo? Pegaram a pessoa, pelo menos?
- Sim. É uma moça que trabalha aqui, não sei se enfermeira ou técnica, sei lá… Enfim, o médico estranhou ela estar onde estava, foi verificar e notou que ela tentava fazer algo contra a Márcia. Daí socorreu minha filha e chamou a segurança que a prendeu.
- Ótimo! Talvez agora a gente consiga descobrir quem está por trás dessa história?
- Talvez sim.
- Bom, vocês estão precisando de alguma coisa, qualquer coisa?
- Não. No momento, está tudo bem. Se precisarmos, eu te aviso.
- Ok, meu amigo. Fica firme e qualquer coisa não hesite em me ligar, certo?
- Tudo bem. Obrigado.
Desligamos e Gegê me encarava assustada com o que acabara de ouvir. Não nego que eu também estivesse, afinal, não conseguia entender quem poderia querer fazer mal àquela moça, mas uma coisa era certa, ela não fora vítima de um simples assalto.
[...]
- Porra, que mulher complicada, hein, Jota? - Falei ao meu investigador que concordou com a cabeça: - Que vontade de dar uns tapas nela?
- Servida de bunda ela é bastante, doutor. - Ele me respondeu com um sorriso malicioso.
- Verdade! Brava daquele jeito, na cama, ela deve dar uma canseira legal.
Acabamos caindo numa risada sem nos dar conta que uma figura quase caricata, praticamente um clone do ator Danny DeVito, nos encarava com cara de poucos amigos. Passei a encará-lo também porque relevar o enfrentamento de uma mulher eu aceitava, mas de um homem… Eu estava louco por uma briga e achei que aquele baixinho viria bem a calhar:
- Qual é, nanico, vai encarar? - Falei e ri, sendo seguido pelo Jota numa estridente gargalhada.
Nesse momento, o secretário de segurança entrou no corredor em que estávamos e pousou sua mão no ombro daquele homem que apenas sorriu maleficamente para mim, chegando a me gelar a espinha, e falou:
- Para você é doutor nanico!
- Nanico!? Que história é essa, Salva? - Perguntou-lhe o secretário de segurança, doutor Amâncio.
- Devemos perguntar isso a seu subalterno, Amâncio. Foi assim que ele me chamou.
- Como é que é? - Doutor Amâncio me encarou como se quisesse me matar: - Você sabe com quem está falando, delegado?
- Doutor! Foi só um mal entendido… - Falei sem ter o que falar.
Só então reparei que o terno que aquele “nanico” usava não era um terno qualquer. Era um corte impecável que somente os melhores alfaiates conseguiriam reproduzir e, considerando sua altura e largura, certamente havia sido feito à mão e sob medida. Acuado, tentei parecer simpático:
- Me desculpe, doutor. Realmente, fui indelicado.
- Sua delicadeza ou indelicadeza não me interessa, delegado, não estou aqui por sua causa. - Ele falou rispidamente e continuou: - Aliás, o senhor é o responsável pelo inquérito relacionado ao senhor Marcos Antônio de Sá Pinheiro Pinto, não é!?
Confirmei com a cabeça e antes que eu falasse qualquer coisa, ele continuou:
- Então, quero falar com o senhor, sim, e agora, já.
Eu já estava fodido mesmo e pensei em enfrentá-lo, afinal, ele já estava se mostrando descortês e abusado, mas o doutor Amâncio emendou:
- Vou junto com vocês. - Disse e me apontou o corredor, tacitamente dando-me ordem para irmos.
Fomos até minha sala e nos sentamos. Ele pediu acesso ao inquérito e eu, ao olhar para o doutor Amâncio, recebi uma confirmação com a cabeça. Entreguei os autos que, após uma rápida leitura, pois parecia que ele apenas queria confirmar o teor do que já conhecia, me confrontou novamente:
- Eu deveria pedir a sua prisão por ter cometido abuso de autoridade contra meu cliente, delegado. Não há nada no inquérito que justifique ele ter sido preso duas vezes. - Ele falou irado, quase gritando: - São apenas meras provas circunstanciais e, “data venia”, inservíveis para qualquer tipo de condenação. Sorte SUA… - E frisou bem o “sua” com o dedo em riste: - Sim! Sorte sua que a doutora Annemarye estava presente e conseguiu evitar que ele permanecesse preso, ou agora eu estaria me tornando um verdadeiro pesadelo para sua vida funcional, pessoal e social.
- O que é isso!? O senhor está me ameaçando, doutor? - Perguntei, surpreso com tamanha audácia vinda de uma pessoa tão baixa.
- De forma alguma, eu estou apenas falando o óbvio. Se meu cliente estivesse preso indevidamente, e é claro que não existe qualquer prova que justifique sua prisão, o senhor estaria perdido em minhas mãos. - Ele falou se recostando e me olhando com um sorriso ameaçador nos lábios: - Afinal, não somos pessoas leigas, doutor, e o senhor sabe muito bem qual é a diferença entre advertência e ameaça, não sabe? - Me perguntou e balancei afirmativamente a cabeça: - Então, só estou advertindo o senhor que, se entrar em contato novamente com meu cliente e não comigo, irei usar todas os meios jurídicos que possuo para afastá-lo definitivamente de suas atividades.
- Salva, calma! - Falou o doutor Amâncio, novamente colocando a mão em seu ombro: - Eu acredito que o delegado tenha entendido que agora as comunicações deverão ser feitas somente com você, não entendeu, doutor?
- Sim. Claro, claro… - Resmunguei e resmunguei novamente: - Primeiro, a doutora do nome complicado me dá uma canseira, agora isso.
- Ótimo. - Responderam ambos quase ao mesmo tempo, o baixinho com um sorriso malicioso ou de satisfação por saber que a outra advogada havia aprontado pouco antes dele chegar.
- Há somente outra questão que acho importante pontuarmos. - Disse aquele advogadinho invocado: - Quero garantias reais de que meu cliente não será preso nem hoje, amanhã ou em qualquer outro dia pelo senhor. Caso contrário, vou orientá-lo a não comparecer na delegacia e só depor em juízo.
- Mas doutor, eu não posso prometer nada. Se surgirem provas, eu vou prendê-lo. - Insisti.
- Não, não vai. Ele não está em estado de flagrância, é réu primário, com bons antecedentes, trabalho e residência fixos… Não há nada que justifique sua prisão, nem nunca houve. - Frisou novamente, me encarando ameaçador: - Não é isso, Amâncio?
O doutor Amâncio nada respondeu, mas balançou a cabeça afirmativamente enquanto o próprio advogado continuava falando, agora diretamente para mim:
- Não é isso, doutor?
- Eu não posso te garantir nada, doutor… É Salva, não é? - Perguntei e ele acenou positivamente a cabeça: - Então… Eu não posso garantir que não vá prendê-lo se houver uma ordem judicial para tanto, não é?
- É óbvio! - Ele concordou, mas não perdeu a deixa: - Havendo ordem judicial, emanada de uma pessoa capacitada e que tenha analisado detidamente a prova, é sua obrigação prender; mas não foi isso que aconteceu nas duas oportunidades anteriores, não é doutor?
- Salva, acho que o delegado já entendeu e não irá tentar prender seu cliente novamente, não é, delegado? - O doutor Amâncio falou, me encarando e, como eu nada respondi, insistiu: - Não é, doutor delegado?
- Sim, é claro. - Respondi.
- Então ótimo! Estamos combinados… Não haverá mais nenhuma tentativa de prisão contra seu cliente. Palavra do delegado e minha também, meu caro. - Ratificou o doutor Amâncio.
- Maravilha! Voltarei logo mais à tarde com ele então para o senhor colher seu depoimento. - Ele disse já se levantando e me estendendo a mão.
Despedimo-nos e ele se foi pela porta e estacionamento afora, acompanhado pelo doutor Amâncio, ambos embalados numa conversa animada que me deixava ainda mais desconcertado e curioso de onde eles se conheciam. Vi que realmente estava lidando com peixes grandes e, se quisesse prender o tal do Marcos, eu teria que rebolar muito ainda.
[...]
Ficar num apartamento do Aurélio, que quase ninguém sabia da existência, não me parecia má ideia. Entretanto, meu sexto sentido, intuição, sei lá, chamem do que quiser, estava aceso igual a luz de um farol em meio duma tempestade. Por mais que eu tentasse ser prática, racional, objetiva, alguma coisa me dizia para não aceitar a sugestão do Marcos e deixei isso bem claro:
- Não! Não vamos para lá.
- Mas por que? - Ele perguntou, claramente assustado com a força da entonação de minhas palavras.
- Pode chamar do que quiser, mas alguma coisa me diz que lá não é um bom lugar.
- Mas Anne…
- Não e pronto, Marcos! Ara, sô, você é meu cliente e sou eu que tomo as decisões por aqui, “capisce”? - O interrompi, mostrando quem mandava naquela situação.
Ele apenas me olhou, com aqueles lindos e arregalados olhos, e balançou afirmativamente a cabeça:
- Você não tem nenhum amigo que possa te abrigar um pouco, Marcos? Qualquer um que não fique tão na cara assim?
Marcos passou a pensar, coçando o queixo e o seu Bastião, vendo que ele não falava nada, tomou a palavra:
- Eu conheço, doutora.
Nós dois o encaramos, esperando que continuasse e ele continuou:
- Eu tenho uma chacrinha não muito longe, bem simples, mas confortável. Se vocês quiserem, podem ficar lá.
- Maravilha! - Comemorei uma possibilidade viável e continuei: - O senhor pode nos levar para lá agora?
- Imediatamente. - Disse e mudou a direção em que seguia.
A viagem prosseguia e nós já estávamos entrando na via Dutra, mas um silêncio estranho tomou conta do ambiente. Certamente, era muito mais incômodo para o Marcos que me olhava estranho, o que vi de soslaio algumas vezes enquanto lia partes do inquérito buscando algum detalhe. Eu já estava ficando incomodada em ser observada por ele daquela forma e fui sincera, acho que até demais:
- Ara, Marcos, o que foi? Por que você está me olhando assim? - Falei irritada, chamando até a atenção do seu Bastião, que logo voltou a focar na direção: - Só não me diga que tem dedo seu nessa história?
- Desculpa, Anne…
- Marcos, pelo amor de Deus! - Acabei o interrompendo, agora assustada com o rumo daquela prosa: - Você não fez nada disso, né?
- Não, não… Eu só queria te pedir desculpas por te colocar no meio de uma situação dessas.
- Porra! É isso!? - Respirei aliviada e continuei: - Você não tem culpa, seu bobo. Está claro para mim que alguém está armando contra você. A questão é saber quem?
- Você acha isso mesmo?
- E você não!? Para e pensa: alguém tenta matar sua ex, que está grávida de você, bem no momento em que você assume o relacionamento com outra e, de repente, surge uma pessoa que ouviu de outra pessoa que ouviu de outra que um bam-bam-bam do Leblon, chamado Quinho, que mandou matá-la. - Expliquei pacientemente e conclui, encarando-o: - De duas, uma: ou é verdade, ou estão armando para cima de você. E aí? Qual você acha?
Ele me olhou com os olhos arregalados, assustados mesmo eu diria, e começou a suar frio. Eu o olhava de uma forma séria, mas pelo seu comportamento, pela forma como seu psique e seu físico responderam, ficou claro para mim que ele era inocente. Ele ainda tentou se justificar, agora com os olhos marejados:
- Anne, eu não fiz…
Eu não aguentei e o abracei, mas não havia nada de sensual em nosso contato. Eu queria apenas que ele soubesse que não estava sozinho e que eu faria de tudo que estivesse ao meu alcance para defendê-lo e inocentá-lo:
- Eu sei, Marco, fica calmo. Não estou duvidando de você. - Falei baixinho enquanto o abraçava: - Eu vou te ajudar.
Meu celular começou a tocar desesperadamente e vi a figura quase caricata do doutor Gregório surgir na tela. Atendi de imediato:
- Anne, onde vocês estão?
- Uai, estamos indo nos esconder. Foi o senhor que mandou.
- Ah, não, é… - Respondeu e começou a rir: - Mas podem voltar. Já resolvi tudo com o delegado. Acho que ele não vai querer arrumar para a cabeça do teu namorado tão cedo.
- Certeza, doutor?
- Claro, menina. Podem voltar e vão direto para a casa dos pais do Marcos. Vou espera-los e contarei tudo.
Nos despedimos e pedimos ao seu Bastião para nos levar de volta. Ele deu meia volta e coisa de quarenta e poucos minutos depois, estávamos chegando na mansão da d. Gegê. Nem bem descemos do carro e ela com o seu Balthazar vieram correndo nos receber. Ela acolheu o Marcos com o típico abraço materno de uma saudade que eu ainda não entendo bem, mas espero entender um dia. Seu Balthazar, por sua vez, me pegou num abraço de pai, forte, apertado, acolhedor, quase fiquei sem ar. Assim, abraçados, fomos conduzidos para dentro da enorme mansão e só então a dona Gegê se lembrou que tinha uma nora, ou candidata a nora:
- Me dá um abraço, Anne. - Pediu, aliás, decretou com um sorriso molhado das lágrimas que não cessavam.
- Ah!? Agora lembrou que eu existo. - Brinquei com ele, colhendo uma sonora risada e um gostoso abraço, que lhe correspondi com tapinhas nas costas depois de um tempo: - Também amo a senhora, dona Gegê. Já pode me soltar, uai! Gosto muito de mulher me bolinando desse jeito, não.
Mesmo nervosa, ela gargalhou e só então suas lágrimas pararam de cair. “Bem que meu avô dizia que não há remédio melhor que uma boa risada”, pensei comigo, sorrindo em silêncio. O doutor Gregório nos esperava sentado no amplo sofá da sala, com um copo de whisky na mão. Levantou-se ao nos ver e veio me cumprimentar com um abraço e um beijo no rosto, virando-se para o Marcos a quem cumprimentou igualmente:
- Soube que você andou causando na delegacia, doutora Costa Brasil Bravo. - Brincou comigo assim que nos sentamos.
- Eu!? Uai! Claro que não, sô. - Comecei a sorrir maliciosamente para ele: - Bem, talvez só um pouquinho…
Passamos então a conversar sobre tudo o que havia acontecido durante aquela manhã e passei a explicar para ele minhas impressões. Todos nos ouviam com atenção e em total silêncio, tentando acompanhar nossa forma de falar. A um dado momento, dona Gegê, sempre ela, resmungou:
- Gente, eu não tô entendendo nada! - Riu constrangida: - A gente pode ter a letra ruim, todo mundo reclama, mas vocês em compensação têm uma língua horrível, não dá pra entender nada!
Eu e o doutor Gregório nos olhamos e sorrimos, só aí lembrando que realmente estávamos conversando entre nós, esquecendo que os mais interessados em entender toda a situação não dominavam o “jargão jurídico” que estávamos despejando há minutos. Marcos se levantou e foi buscar um whisky para ele e para o próprio pai, retornando pouco depois. Eu o encarei inconformada, pois aquele mal educado não trouxe um gelinho para mim. Não me conformei e tomei seu copo, deixando-o surpreso:
- Você queria? - Me perguntou.
- Ah não, não, não… - Disse enquanto balançava o gelinho pelo copo e me virei para a dona Eugênia: - A senhora não deu educação pro seu filho, dona Gegê? Ara, onde já se viu, nem pra oferecer…
- Culpa minha, Anne! Isso é falta de cinta quando ele era mais novo. - Ela me disse, sorrindo.
- Posso complementar a educação dele lá em casa? - Perguntei, devolvendo o sorriso, olhando-o de soslaio.
- Deve! - Ela respondeu e riu alto, chamando a atenção de todos.
- Mamãe Anne vai ter uma conversinha bem séria com você depois, mocinho! Você não perder por esperar… - Falei, espremendo os olhos e tentando simular estar brava.
Entretanto, ele me deu um sorriso malicioso que me quebrou inteira. Aliás, fiquei claramente constrangida, ficando vermelha, talvez roxa, porque entendi em seus olhos a mensagem que ele queria mesmo ser surrado, mas de uma forma toda particular. Pigarreei, para despistar meu próprio constrangimento e o doutor Gregório assumiu a palavra, explicando todo o ocorrido para eles em uma linguagem de leigos, confirmando comigo, vez ou outra, alguma coisa ainda não muito clara.
Depois de algum tempo, dona Eugênia se levantou para ir até a cozinha providenciar o almoço e então me lembrei do compromisso que havia assumido com o delegado:
- Doutor Gregório, eu assumi de levar o Marcos para prestar depoimento às 14:00.
- Estava pensando nisso, mas ele não irá depor. - Respondeu-me de imediato: - Vou redigir seu depoimento e protocolarei no inquérito com tudo o que interessa à defesa, reservando o direito dele ficar em silêncio para as demais questões que só serão respondidas em juízo, se acaso não resolvermos o problema antes.
Todos o encaravam e ele se voltou para o seu Balthazar:
- Você não me arruma um computador com impressora Balthazar?
Eles se levantaram então e saíram em direção ao escritório, deixando-nos na sala de estar:
- Ele parece ser mesmo bom. - Marcos resmungou para nós e, depois de pigarrear, emendou: - Tão bom quanto você, caipirinha!
Não consegui evitar uma gostosa risada e fui sincera:
- Ele é muito melhor que eu na área criminal, Marcos, aliás, ele é o melhor que eu conheço. Essa é a área que ele comanda no escritório. Eu só atuo no criminal em uma emergência, mas não gosto nadica de nada.
Ficamos papeando por mais um bom tempo e só nos demos conta disso quando o doutor Gregório e o seu Balthazar retornaram, com um “depoimento” pronto para que o Marcos assinasse. Ele o leu e depois me repassou para que eu também o lesse. Como eu já esperava, apenas respostas óbvias e que atendiam aos interesses da defesa. Dona Eugênia nos chamou para sua sala de jantar onde um almoço já estava servido. Almoçamos e após um café, que por minha parecia já ter se tornado rotineiro, o doutor Gregório se despediu e saiu a caminho da delegacia, mas não sem antes me falar:
- Daqui por diante eu assumo a defesa dele.
- Eu fiz algo errado? - Perguntei assustada, pois imaginava que fossemos trabalhar juntos.
- Não, querida, você foi brilhante em tudo, mas ele é seu namorado e seus sentimentos podem atrapalhar. - Disse enquanto se despedia: - Isso não quer dizer que você não possa colaborar. Você só não estará mais na linha de frente.
[...]
Era uma das noites mais estreladas que eu já havia visto em São Paulo. Aliás, eu não sabia que as noites poderiam ser estreladas por aqui, mas aquela estava deslumbrante. Ela e eu também, modéstia à parte. Dei o meu melhor para ficar bela enquanto esperava o Erick chegar e pontualmente minha campainha tocou. Abri a porta e ele me esperava com uma bonita flor nas mãos:
- Eu não sabia bem o que trazer, então…
- São lindas, Erick! - Disse e lhe beijei a face, enquanto recebia o vasinho: - Só vou colocá-la sobre a mesa e podemos ir.
Saímos dali diretamente para um restaurante chique, cujo nome eu não me recordo mais, mas pelos frequentadores notava-se ser de altíssimo padrão. Pedimos dois drinks e eu fiquei deslumbrada olhando o cardápio e sem saber por onde começar. Erick, aquele velho cavalheiro que eu me recordava, sugeriu os pratos e eu aceitei:
- Você está linda, Renatinha!
- Obrigada, Erick! Você também está muiiiiiiiito bonito. Tenho certeza que se a Anne estivesse aqui, ficaria caidinha por você.
- Sei não, viu… - Respondeu, ficando chateado.
- Erick, eu consigo ver vocês dois juntos e ela acabou de começar a namorar, nem deve ser nada sério, cara.
- Você tinha que ver o olhar dela para ele…
- Deslumbramento! Começo é sempre assim. Só que você tem uma vantagem para esse “sei lá o nome dele”: vocês já se conhecem há um bom tempo e tem até uma história em comum.
Ele não me respondeu, mas me encarou curioso com a forma que eu falava. Decidi que era hora de mostrar para ele que eu não estava brincando quando disse que o ajudaria a conquistar a Annemarye:
- Olha só, eu acredito mesmo que você ame a Anne… - Comecei a rir de mim mesma: - Ih, até rimou! “Ame a Anne”... E por eu acreditar nisso é que não quero deixar você se rebaixar ao nível do seu pai e irmão, e pior, fazer com ela o que eu sei que eles querem fazer, transformá-la num capacho, rebaixá-la, humilhá-la para que ela se submeta aos caprichos deles.
- Mas Renata…
- Não! Pelo amor de Deus, não me diga que você acha que a sugestão do seu pai é o melhor caminho para você conquistar a mulher que você diz amar?
- Eu também não queria que fosse por esse caminho, mas se tiver que ser…
- Não! Eu não aceito isso. Não aceito… - Falei de forma firme e decidida, encarando-o: - Me deixa te ajudar a conquistá-la primeiro?
- E se não der certo? Você ainda vai nos ajudar com o plano do meu pai?
- Nossa, cara… Me dói ouvir que você cogita fazer aquilo que o seu pai sugeriu com aquela moça. De verdade, me dói na alma.
- Ora, ora, ora, vejam só quem está aqui, Guto! - Disse uma voz que me fez arrepiar toda e que ficou mais alta até encostar praticamente em meu ouvido: - Renatinha, Renatinha, você está linda.
Olhei assustada e vi Rubens e o Guto de pé, ao lado de nossa mesa. Chateada eu encarei o Erick que, naquele momento, me parecia vazio de qualquer sentimento. Rubens continuou:
- O Erick nos avisou que vocês viriam para cá. Inclusive, ele me disse que você tinha algumas ideias diferentes para conquistar a Annemarye. Fiquei curioso, minha querida.
Minha vontade era chorar porque me senti traída pelo Erick. Eu não acreditava que ele, mesmo sabendo das minhas intenções, tinha me entregado ao seu pai e irmão. Eu o encarei e de uma forma bastante suave, quase imperceptível, balancei negativamente minha cabeça e disse:
- Se me dão licença, vou ao toalete. - Falei.
- Senta aí, biscate… - Falou o Guto rispidamente, mas bem próximo a mim de forma que ninguém conseguisse ouvir.
- Calma, Guto! - Ele foi interrompido pelo Rubens: - Ela não vai fugir. Só vai ao banheiro. Deixa ela.
Fui até o toalete e me tranquei no reservado. Eu tremia de raiva, de ódio e não pude conter algumas lágrimas que desceram por minha face. “Poxa, eu tentando ajudá-lo a conquistar a mulher que ele ama, e ele me esfaqueia pelas costas!?”, resmunguei para mim mesma. Minha vontade era sair correndo dali e me jogar na frente do primeiro ônibus que cruzasse o meu caminho. Pelo menos assim, eu acabaria com meu sofrimento e não participaria daquela sujeira toda. Me faltou coragem e, mesmo triste, abalada, retornei à mesa, onde os três conversavam. Estranhamente, o Erick não parecia tão satisfeito com a presença deles:
- Até que enfim, hein, Renata!? Pô, eu já tava pensando que fosse ter que ir te buscar. - Falou o Guto assim que me sentei.
- Mulheres, Guto… Ela foi certamente retocar a maquiagem.
Dei um sorriso amarelo para eles e me calei. Para mim a noite, havia terminado. Eles ficaram conversando entre si e jantaram conosco. A comida linda, cheirosa, apetitosa, descia como fel pela minha garganta, pois o assunto não era outro senão os detalhes do plano maquiavélico traçado pelo Rubens para se apossar da Annemarye. A cada detalhe que ele compartilhava, mais meu estômago ficava combalido. Quando todos já haviam comido e paga a conta, eu já imaginava que seria a sobremesa, o que foi confirmado pelo Guto:
- Bom, vamos pro apartamento ou pra um motelzinho, pai? Tá na hora da Renata justificar o seu salário, né não!?
- Ora, tem um motel muito bom pro lado da…
- Não! - Erick o interrompeu, sério e me encarando: - Eu saí com a Renata hoje e hoje… - Ele insistiu: - Hoje, ela será somente minha.
- O que é isso, mano!? Divide aí, caralho! - Guto insistiu.
- Chega, Guto! - Rubens o repreendeu: - Deixa o Erick se divertir. Amanhã, você sai e se diverte também. Aliás, amanhã não! Amanhã sou eu.
- Pô! - Guto falou, balançando os ombros, irado, mas acabou se resignando.
Eles se levantaram, se despedindo de nós e saíram. Erick chamou o garçom e pediu mais dois drinks para nós e, assim que o garçom se afastou, falou:
- Fica tranquila, Renatinha, por hoje você está segura. - Falou, pousando sua mão sobre a minha: - Agora, me explica melhor o seu plano.
[...]
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO TOTALMENTE FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL É MERA COINCIDÊNCIA.
FICA PROIBIDA A CÓPIA, REPRODUÇÃO E/OU EXIBIÇÃO FORA DO “CASA DOS CONTOS” SEM A EXPRESSA PERMISSÃO DO AUTOR, SOB AS PENAS DA LEI.