CAPÍTULO XXIII
Eu batia as unhas na tela do celular em cima da minha coxa direita, aguardava na recepção, com o bafo do ar-condicionado nos ombros e nuca. Conferi, a entrevista era às três da tarde, faltavam cinco minutos.
O rapaz a minha frente ergueu-se antes de mim e caminhou com a mulher até a sala ao final do corredor.
"Maldita hora em que fui dar o meu número ao Kevin", mesmo bloqueando-o, ele encontrava um jeito de falar comigo. "Falou com ele?", "Onde ele está?", "Por que não me paga logo?", há dias Kevin enviava as mesmas mensagens.
A mulher retornou, e fez um gesto com a mão para que eu a acompanhasse.
- Você preenche essa ficha, por favor, - ela me entregou uma folha. - Em seguida vou chamar um por um para uma entrevista pessoal.
Havia mais de uma vaga de emprego porque a escola abria uma nova "filial" e precisava de gente com experiência. Eu saí da entrevista com um buraco no estomago por ter que responder a tantas perguntas, repassava na cabeça cada momento das perguntas da mulher "devia ter respondido auxiliar de almoxarife". O escritório ficava no shopping, saí, caminhando pelos corredores, e lojas, via as pessoas, entre elas um casal, mais a frente.
Hilda e o marido. Ele trajava camiseta, bermudão, chinelos, óculos e boné, cultivava metade da barba que um dia tivera. Ela viu meu reflexo pelo vidro da loja em frente, virou-se e acenou.
- Como vai sumido? - disse e me beijou. - E o Ian já se recuperou?
- Totalmente. Aliás, nem agradeci a força que vocês nós deram...
- E o traíra por onde anda? - perguntou.
Eu sorri de volta sem responder, ficamos em silêncio. Hilda bateu a palma da mão no meu ombro, murchou os lábios "é mais amigo dele que meu, entendo", não precisou dizer, os seus gestos o fizeram em lugar das palavras.
Eu gravei um áudio para o Felipe no zap. Mais uma sem resposta. Ele desaparecera do Instagram, e de vez em quando postava alguma coisa no onlyfans, mas no geral, silêncio absoluto. Ninguém sabia do Felipe.
Embora ele tivesse me avisado sobre a viagem, e a parceria, que o Ian me explicou tratar-se de um trabalho com outro cara ou mulher no caso do Felipe mais difícil ser com uma mulher, para os dois produzirem algo juntos no only ou em outra plataforma.
"E aí como foi?"
Ian me mandou no zap.
"Acho que bem" respondi "Você está em casa?"
"Na oficina, passa lá em casa..."
"Como se fosse fácil enfrentar tua mãe", digitei mas apaguei logo em seguida, atacar a velha diretamente se tornara um caso de brigas intermináveis.
Como eu previra antes, dona Janete não se recuperava nunca, na verdade a velha achou uma desculpa para prender o filho em casa, e o Ian sabia, achava até engraçado esse esforço da mãe, porque via aí uma forma de reaproximação.
Eu via o avanço dela sobre ele, e um frio perpassava minha espinha, meu estomago, minhas pernas, porque a promessa dela parecia cada vez mais real, ela convencera o Ian de acompanhá-la a igreja, porque não podia ir sozinha.
Nem reparei quando saí do shopping, e entrei no ônibus, por pouco não passava do ponto, desci ali, com mais dois quarteirões a percorrer na canela. Mas o dinheiro minguava dia a dia, sozinho eu não produzia nada para o Only, a única fonte de renda.
Uma mulher com novelos de algodão no lugar dos cabelos, ajustou a máscara de tecido ao nariz e boca, disparou um álcool no corrimão onde eu havia segurada e içou-se ao ônibus. As máscaras e álcool em gel começavam a ficar caros, e escassos.
- Te achei, - Kevin cortou meu pensamento. - Preciso falar com você.
- A é, eu também, - tirei o celular do bolso. - Que merda de tanta mensagem é essa? Deu meu número a torcida do flamengo?
- Você me bloqueou? Queria o quê?
- Eu não tenho nada a ver com a dívida do Felipe, - suspirei. - Ninguém sabe onde ele está, nem ao irmão ele disse nada.
Kevin sorriu de canto, estreitou a distância entre nós com o nariz a um palmo da minha bochecha, e o calor de entre os lábios com cheiro de menta em cima de mim, eu o afastei.
- Você tem medo de mim né não? - disse. - Eu percebo que te tiro do eixo.
- Ridículo, você se acha, - falei e sai.
Eu o ouvi fazer o esqueite rodar ao meu lado.
- Espera, preciso mesmo da sua ajuda.
- Fala logo, mas se for sobre Felipe, já adianto...
- Não isso, aquele puto está me dando um castigo. Acho que posso eu mesmo produzir umas paradas... - ele me cortou.
- E eu com isso?
Ao me virar avistei um carro em nossa direção.
Kevin me puxou pelo braço, caímos um em cima um do outro, era um Gol de duas portas, freou com os pneus dianteiros em cima do passeio onde estávamos. Ian abriu a porta, as mãos ainda sujas de graxa.
Ele olhava para mim e para o Kevin como se tivesse flagrado um crime, uma traição! Eu empurrei o Kevin de cima. Ian me içou pelo antebraço. Ele se colocou entre mim e o Kevin, e com o indicador em riste diante do nariz de Kevin disse:
- Fica longe dele! Tá ouvindo?
- Tira essa porra da minha cara, - Kevin bateu na mão de Ian. - Devia me agradecer por salvar ele de você...
Kevin armou nos lábios um riso de escarnio.
- Ian... - eu tentei.
Mas ele me olhou de um jeito tão severo que engoli as palavras.
- Qual foi? Tá inseguro é? Relaxa parceiro... - continuou Kevin.
Ele ergueu-se num salto era mais alto que o Ian e um pouco mais parrudo também.
- Que porra de parceiro? Tá maluco?
- Ian para com isso, - pedi. - E você vaza daqui, já disse que não sei do Felipe.
Não sei se a piscadela do Kevin para mim e o gesto com a cabeça em direção ao outro lado da rua, ajudou ou enfureceu ainda mais o Ian, que viu no jeito do rapaz um flerte. Eu o segurei pelos ombros.
- Ele está querendo uns murros! - gritou. - E você dando ousadia a esse daí, é brincadeira.
Eu o empurrei contra o carro, Ian desequilibrou-se e caiu no chão próximo a porta do motorista. "Quem ele pensava que era para me acusar assim? Na cara dura!", eu respirei fundo.
- Desculpe, eu... - ofereci a mão.
Ian estapeou minha mão como Kevin havia acabado de fazer com a dele, e ergueu-se passou as suas na calça.
- Seu mantra é pedir desculpas, - ganiu. - Eu bem vi o jeito que aquele cara estava pra cima de você.
- Engraçado, muito engraçado... Mas não vou discutir isso aqui no meio da rua.
Avancei pela calçada na via esquerda, Ian dirigia atrás de mim, e a buzina fazia o coro, ergui o dedo do meio acima do meu ombro. Ele acelerou adiante e dobrou a direita, rente ao passeio, estacionou. Ian abriu a porta do passageiro e me olhou pelo retrovisor.
- Vamos conversar! Entra, por favor... - disse.
Eu sentei ao lado dele que puxou a marcha e fez o carro seguir mais uma vez em direção a minha rua.
- De quem é esse carro? - perguntei.
- Um cliente da oficina.
- Cliente bom, pra te deixar a chave e tudo... - falei.
Ele bufou pela boca, seguimos em silêncio por alguns minutos.
- Mudou de ideia? - ele perguntou. - Olha acho muito justo, é apenas um pedido de desculpas mais formal.
- Você anda tão envolvido com os crentes que está começando a ficar como eles, contraditórios.
- O que quer dizer com isso? - ele brecou o carro.
- Que a sua contradição é lamentável, - falei direto. - Não vou pedir desculpas a sua mãe. Aliás, há minutos atrás você estava dizendo o quê mesmo sobre meu mantra? Pois é, sem pedido a dona Janete, desculpe.
- Por que está agindo assim hein? - Ian suspirou. - Eu não entendo.
- Sério Ian? Você voltou a morar na casa dela.
- Pra ficar perto da minha mãe.
- Voltou a frequentar a igreja.
- Porque ela não pode ir sozinha, é perigoso.
- Não me beija mais, - falei corando.
Ele soltou um riso divertido e virou-se no banco, estávamos parados praticamente no meio da rua.
- Então é isso? - ele sorriu. - Ah bebê, por que não disse?
Ian estendeu o polegar e o passou na minha bochecha.
- Falo sério, - respirei fundo. - Não quero fazer a orquestra do Titanic.
- Não entendi a referência, - ele franziu-se.
- Se essa relação estiver naufragando, não vou fazer o Di Caprio, é isso... - disse. - Eu pulo da tábua para outra, entendeu?
- Que porra de comparação! Não tem nada afundando aqui. Larga de drama. Só estou tentando me reaproximar da velha.
- E querendo que eu me humilhe a ela, - eu disse.
- Um pedido de desculpas por filmar uma cena de sexo na sala da casa dela, - ele corrigiu. - Eu acho mais do que justo.
Ian guiou meu queixo com a mão, colou os lábios nos meus. Eu passeei com os dedos pelo braço dele, Ian segurou minha nuca, a mão cheia de calos, o cheiro de graxa, e o seu próprio, com perfume, restante ainda do duzentos e doze.
A raiva naufragara de mãos dadas com o ciúme.