CAPÍTULO X
No calendário do meu celular as datas de aniversário têm alarmes, o próximo era o meu, "um presentão esse" pensei comigo mesmo com os pertences de Ian em cima das minhas coxas.
O descanso de tela no iphone dele era uma das fotos que tiramos na pizzaria no seu último aniversário. Os sorrisos na imagem me provocaram também um riso, a gente as vezes sente vontade de morar em um momento, em um foto.
Olhei para cima na parede do corredor do centro cirúrgico, há minutos não passava ninguém ali, um relógio com os ponteiros do tamanho dos meus antebraços giravam embutidos na parede.
Meu celular descarregara ainda quando descíamos da ambulância. Um frio nas costas percorria minha nuca, toda vez que eu encontrava a médica que assistiu minhas confissões patéticas ao lado de Ian.
- O importante é que funcionou, - repeti para mim mesmo na tentativa de rebater a vergonha do olhar da médica vivo na minha cabeça.
Com o impacto do veículo as configurações internas do celular do Ian não funcionavam como deveriam e as horas apareciam trêmulas.
Aquele barulho de gente mordendo borracha era sinal de passos no piso, alguém se aproximando no outro extremo "que não seja dona Janete" pedi internamente, olhando para o lado.
- Oi, - disse Felipe. - Alguma notícia?
- Nada ainda.
Felipe se sentou encostando a coxa próximo a minha, segurou o meu joelho.
- Eu tenho várias, - suspirou. - Acho que não sairei mais daqui, vou ser levado para o centro psiquiátrico, ou para um mosteiro beneditino.
- Do que você está falando? - perguntei.
Felipe carregava abaixo dos olhos duas meias luas escuras.
- Ian é um herói nacional, e ainda será reconhecido, que mulher insuportável!
- Ruim assim? - quase sorri.
Ele moveu a cabeça para cima e para baixo. Felipe se inclinou sobre as coxas e voltou a cabeça para mim.
- Mais uma coisa, essa é séria, - ele respirou fundo. - Jackson conversou com a médica, a plantonista que trouxe o Ian, ainda não confirmou mas parece que ele vai ter que fazer outro procedimento, caríssimo.
- Mas e o Sus não cobre?
Outras solas de sapatos mordendo o chão num barulho de rãs cortou nosso fôlego. Dona Janete liderava apertando a bolsa por baixo do braço volumoso, os cabelos para trás presos em um coque, caminhava a frente, Paula e Hilda vinham atrás.
Ela segurava um copo descartável na mão que trazia as duas alianças a sua e a do falecido, há décadas.
- Não precisam ficar, - Janete disse. - As coisas são como têm que ser.
- Dona Janete... - Felipe começou.
- E você principalmente, - disse me olhando. - Ou acha que não sei? Há muito que sei. Você e ele, sodomitas assumidos, pecadores, está escrito...
Eu ergui-me apertando as coisas de Ian contra meu peito e me apoiei na parede da frente. Luana aproximou-se de mim. Hildinha sentou entre Felipe e dona Janete, a mulher acionara em si mesma a trombeta dos últimos tempos, e citava Apocalipse.
- Não entrarão nem idolatras nem feiticeiros, nem prostitutas, está tudo lá, o dragão enfrentará... - dizia.
Fiz-me de surdo, "com o filho entre a vida e a morte e ela pregando isso?" é mesmo o apocalipse, Zumbi, só pode.
Jackson aproximara-se sem provocar como todos nós, os barulhos de ranhuras no piso, ele trazia consigo um papel. Era o único a prestar atenção às palavras de dona Janete como um dos foragidos do Egito ouviam Moises.
Apenas quando ela se calou para beber a água, foi que ele nós surpreendeu a todos.
- O hospital pelo Sistema Único de Saúde não cobre os gastos do procedimento, daqui há quinze dias Ian vai precisar deVocês jovens são assim, quando pegam em dinheiro ninguém se lembra de pagar um bom plano de saúde mas um carro novo, ah, isso é importante, - Janete o cortou.
Eu não aguentei mais desgrudei da parede e me aproximei dela.
- Cala essa boca. Cala essa boca! Ninguém aqui está interessado nas suas noias moralistas. Se situa mulher. É seu filho, teu filho! Se isso não entra na sua cabeça, por favor nos poupe dessa ladainha. Continua Jack, quanto custa?
Ele aproximou o papel onde encontrava-se um esboço feito a caneta no rodapé da página, os médicos que estavam na enfermaria rascunharam um valor conhecendo a situação.
Felipe conteve um riso com a palma da mão sobre a boca. Dona Janete voltou-se para o copo e bebeu mais água como se não tivesse sido com ela.
A enfermeira chefe vinha pelo corredor como Jackson sem causar o barulho no chão, dona Janete puxou o papel da minha mão e bufou pela boca, Hildinha engoliu em seco ao olhá-lo, e Felipe nós representou:
- Caceta dura! - bradou. - Será que ele tem esse dinheiro?
Luana pegou o papel, arregalou os olhos. A enfermeira com as mãos nos bolsos nós deu uma excelente notícia Ian estava sendo encaminhado para um dos quartos do pós operatório.
Janete ergueu-se ajustou a roupa e amassou o copo.
- Agradeço a todos, - disse sem nós olhar. - Mas é a vontade maior, com certeza o senhor sabe o que faz, deixemos como está.
Ela caminhou seguindo a enfermeira. Felipe também se ergueu.
- Quem vai com ela? Essa doida não pode ficar sozinha com o Ian, - Felipe disse.
- Eu fico, por enquanto, o que decidirem me avisem - Hildinha disse.
Ficamos eu, Luana, Jackson e Felipe um olhando para a cara do outro.
- Papai podia... - Felipe começou.
- Papai é pior que dona Janete numa escala Bolsonaro de ser, - Jackson disse. - Eu tenho um dinheiro posso...
- Nem se juntarmos tudo, - disse Luana - ainda tem os gastos com a recuperação, estão inclusos.
Eu abri o celular de Ian, fiz a tentativa de uma senha na tela de descanso de primeira não correspondeu. Felipe e Luana também tentaram algumas senhas, até eu ter uma ideia, quando a cliquei o descanso subiu.
A combinação do infinito ligando os pontos de cima e os de baixo ao do centro os interligava.
Luana sem constrangimento revelou-se usuária do aplicativo conseguiu acessar um espelho do que Ian tinha recebido. O valor ali conseguiria cobrir uma parte do procedimento mas ainda faltava.
O celular de Felipe vibrou no bolso e ele ergueu-se pedindo licença. Jackson agora com uma calça e camisa que o irmão trouxera mais cedo seguiu Luana até a lanchonete dentro do hospital.
- Vão vocês, - respondi quando me chamaram.
- Quer alguma coisa? - Luana perguntou.
- Ele tem cara de café com leite, - Jackson brincou.
Conseguiu me arrancar um sorriso.
Eu segui na mesma direção que Felipe, na verdade em busca de uma tomada.
Através da porta de acesso ao outro pavimento do corredor, entrevi, adiante, Felipe e o marido de Hildinha abraçados.
Eles beijaram-se rápido e sorriram um para o outro, o homem estava com a farda da PRF, as solas de um sapato crochitaram atrás de mim, virei, Hildinha estava descendo, com o celular na mão.
Eu caminhei ao encontro dela com um bolo no meu estomago como se tivesse engolido gelo.
- Passei pelo Jack, ele vai ficar com Janete, - disse. - Que mulherzinha viu... Meu marido deve estar...
Ela percebeu o marido através da porta no retângulo de vidro no centro da porta, por onde eu o tinha visto. Felipe e ele saíram por essas portas. Hilda deu tchau com a mão e aproximou-se do marido.
Felipe sorria para ela e até soltou uma graça que os fizeram sorrir, o marido de Hilda acenou para mim, de longe.
- Felipe pelo amor... - comecei.
Ele abaixou as sobrancelhas olhou por cima do ombro, e suspirou, percebendo que eu o havia flagrado.
- Não preciso, obrigado, já basta minha consciência - ele respondeu seco.
- Mas eu vi, - falei bobo.
Ele olhou para os dois lados do corredor me encarou no fundo dos meus olhos segurando por meus braços.
- Enfia o que viu no rabo, - disse firme. - Como deveria ter feito com o caso do Ian e o Onlyfans.
Eu o empurrei com os ombros, nós encaramos.
- O que quer dizer com isso? Você que me enviou.
- Sim, mas olha no que deu, - disse mostrando o hospital. - Ninguém precisa me dizer o que aconteceu. Nem você. Todo mundo até a lua sabem o que rola entre vocês há anos, ninguém se aproxima seriamente de você por que? Já pensou nisso? Então. Ian viveu esperando por isso, por você, você decidiu que era hora, e o coitado todo feliz, por causa de uma coisa dessas, você destruiu o coração dele, o despedaçou.
- Eu não... - abaixei a cabeça. - Eu não sabia que...
- Corta essa João Carlos, somos de fibras diferentes porque se sou o Ian, quebrava aquele celular nesse seu narizinho lindo, isso que faltou, umas porradas - Felipe suspirou. - Pronto falei, estava preso.
O silêncio voltou a reinar no corredor, um casal de idosos olhavam para nós como olhariam para dois marcianos descendo da nave espacial. Eu e Felipe caminhamos em direção a ala comum, e ao corredor da enfermaria pós cirúrgica.
Antes de entrar no quarto segurei o antebraço de Felipe, e fiz com ele o que deveria ter feito com o Ian, abracei-o forte, ele correspondeu.
- Desculpe, - falei. - Agora, essa história do Ian, todo mundo sabia?
Felipe jogou a cabeça para trás sorrindo voltou a me olhar e segurou no meu bumbum.
- Quando ele olha para isso aqui, está tudo dito!
Sorrimos de uma forma que só aos amigos é possível sorrir.