A minha vida continuava apesar de tudo. Não era o mesmo homem que anos atrás comandava sua própria empresa e dormia com a joia da coroa do escritório, mas a vida é tudo uma questão de perspectiva, e ela estava melhor do que quando eu vivia no olho do furacão.
Meu novo trabalho era mais físico e eu me sentia ótimo por ter saído do mundo da TI. Isso significava menos tempo para cair nas armadilhas da minha mente. Se não tomasse cuidado, as lembranças voltavam com força. À noite, a combinação de cansaço físico, bebida e remédios garantia que eu não ficava muito tempo na cama com meus pensamentos.
Fora do trabalho, eu passava meu tempo planejando minha vingança. Eu investigava meus inimigos, Alberto e os outros membros do grupo de mensagens. Eu tinha pastas com resumos da vida de cada um deles, incluindo suas relações familiares, amigos, localizações, e qualquer informação que eu pudesse encontrar. Cada informação que eu obtinha me deixava um passo mais perto da minha vingança.
O grupo tinha parado de me perseguir. Tinha passado tanto tempo que até um dos membros havia me procurado para se desculpar, porque ele tinha encontrado Jesus. Ele me contactou por mensagens, pedindo meu perdão e implorando por nos encontrarmos pessoalmente. Ele dizia que precisava contar a história toda para mim, que eu tinha que ter muito cuidado e não ficar no radar daquelas pessoas, eles eram perigosos e estavam obcecados em me destruir. Eu nunca respondi às mensagens dele, precisava de mais tempo para planejar minha vingança, e não ligava que ele tinha se arrependido. Ele ainda sofreria as consequências de cruzar o meu caminho.
Após um período de dor e sofrimento, a vida finalmente começava a parecer normal de novo. Eu tentava me distanciar do meu passado e esquecer tudo o que havia acontecido comigo. A traição tinha me feito desistir de qualquer relacionamento para sempre. Eu não queria dar a ninguém o poder de me machucar daquela forma novamente. No entanto, o destino tinha outros planos para mim.
Certo dia, enquanto passeava com meu cachorro, vi uma mulher sentada sozinha em um banco. Meu primeiro instinto nesses casos era sempre desviar o olhar e ir embora, mas ela se aproximou e começou a brincar com o meu cachorro, perguntando sobre o nome e a raça dele. Respondi de forma breve e tentei continuar a caminhar, mas ela não desistiu e continuou puxando assunto comigo.
Depois desse dia, ela estava no parque na hora que eu passeava com meu cachorro quase todo dia. Eu sentia desconfortável com as perguntas, era evasivo nas respostas e tinha medo de me abrir novamente, mas ela parecia entender meus receios e respeitá-los. Com o tempo, fui me soltando e percebendo que estava gostando de ter alguém para conversar.
Ela se chamava Sofia, era uma moça de estatura mediana com os cabelos negros que batiam no seu quadril. Não era absurdamente bonita como Carla e nem estava em tão boa forma, mas não acredito que algum homem a rejeitaria. O que me atraiu nela, era o fato dela saber bem o que era sofrimento. A infância dela foi um inferno, com o pai alcoólatra e violento. Ela me confidenciava histórias horríveis, embora ele nunca tenha abusado dela, a forma que ele a olhava e tocava quando bebia não era como um pai com sua filha.
Foi com Sofia que eu me abri pela primeira vez e contei um pouco do que havia acontecido comigo nos últimos meses. Claro, eu mudava alguns detalhes da história para evitar parecer um fracassado completo. Na versão adaptada da minha vida, eu sofrido cyberbullying na adolescência após ser traído por uma namorada, mas havia tudo tinha ficado bem. Contava para ela sobre a dor e humilhação que passei, nossos traumas nos aproximavam cada vez mais.
Durante meses, eu encontrava Sofia quase todos os dias enquanto passeava com meu cachorro. Ela me confessou mais tarde que ficava espionando minha casa e esperava até que eu saísse para me encontrar “casualmente”. Embora eu sentisse atração por ela, eu me esforçava para não deixar transparecer. Todas as primeiras vezes do nosso relacionamento partiram da iniciativa dela: primeiro encontro, primeiro beijo e primeira vez que dormimos juntos.
Era bom ter companhia, quando estava com ela as lembranças eram bem menos frequentes. No entanto, o sexo era um problema na relação. A visão do corpo dela, o cheiro do quarto e o som da sua respiração me transportavam de volta para a minha casa antiga, onde eu via claramente do meu lado um velho soltando jatos de leite na garganta da minha ex-esposa.
Sofia parecia não se incomodar tanto com o nosso relacionamento mais platônico. Talvez ela achasse que, com o tempo, eu sairia mais da minha casca e o sexo viria naturalmente. Ou talvez fosse um alívio para ela não ter que viver com alguém como o pai.
A questão do sexo só se tornava mais evidente quando Sofia bebia. Quando a conheci, ela estava em uma das suas inúmeras tentativas de se abster de álcool, mas como eu precisava beber para dormir, ela foi se juntando a mim no hábito. Era bizarro quão rápido a bebida surtia efeito e a fazia virar outra pessoa. Eu esperava que um alcoólatra desenvolvesse resistência aos efeitos do álcool, mas na primeira lata de cerveja, ela já começava a falar coisas sem sentido e tentava inutilmente ter relações comigo.
Durante uma de nossas noites de bebedeira, cometi um erro que me custaria caro. Embora eu utilizasse frequentemente as redes sociais em minha vida dupla como espião, a experiência com Carla havia me ensinado sobre os perigos da exposição excessiva. Eu havia eliminado todas as minhas fotos da internet e configurado todos os níveis de privacidade das minhas contas para o máximo, exceto em um aplicativo de compartilhamento de fotos que eu nem sequer lembrava de ter criado uma conta no passado. Sofia tirou uma foto de uma taça de vinho, postou com a legenda "Celebrando com meu amor" e marcou minha conta.
Foi suficiente para que o grupo "Cornélio e os amigos da Constância Investimentos" voltasse a fazer parte da minha vida. Eles vasculharam tudo sobre a vida de Sofia e postavam fotos dela e da minha ex-esposa lado a lado, zombando de mim por ter trocado uma Ferrari por um Fusca. Descobriram textos que Sofia havia escrito sobre sua luta contra o álcool e me humilhavam, insinuando que somente uma bêbada estaria como um merda como eu.
Ao ver aquelas mensagens, fui tomado pelo pânico e mal conseguia respirar. Eles não haviam me esquecido, não era apenas uma diversão passageira para eles. Estavam determinados a continuar me torturando pelo resto da vida. O que eles poderiam fazer me assustava. Após tanto tempo sendo passivo, se alguém visse as mensagens do grupo, pareceria que eu era cúmplice deles. Que eu era um corno manso que além de expor ilegalmente imagens da minha esposa, ficava excitado em me humilhar para aquelas pessoas. Eu havia ido longe demais tentando me proteger, e agora ninguém acreditaria na minha versão da história.
Eu tive uma briga intensa com Sofia em relação à foto. Ela parecia incapaz de entender por que eu estava tão preocupado com a minha privacidade. Passamos semanas sem nos falar depois disso, e ela achava que era porque eu estava traindo-a. No entanto, foi ela quem tomou a iniciativa de tentar consertar as coisas entre nós.
Um dia, ela me ligou e pediu para nos encontrarmos no parque para passear com o meu cão. Ela estava muito animada, contando como havia feito uma nova amiga na aula de pilates e que ela insistiu para Sofia dar outra chance ao nosso relacionamento.
Sofia não tinha nenhuma amiga íntima, pelo menos não que eu soubesse. Na infância, ela era frequentemente ignorada pelas outras crianças por causa do terror que vivia em casa. E ao longo dos anos, as colegas que ela conheceu na vida adulta acabaram se afastando devido ao seu problema com a bebida. Por isso, ver Sofia tão radiante com uma nova amiga era uma mudança agradável e inesperada, que parecia estar dando a ela uma nova perspectiva e disposição para tentar um novo começo comigo.
Eu não me opus à ideia de tentarmos reatar. Após o término e as mensagens humilhantes do grupo, minha saúde mental havia sido abalada, e eu estava constantemente assombrado pela sensação de estar sendo seguido. Tudo o que eu queria era recuperar um pouco de paz e normalidade.
Em um dos encontros com Sofia ela estava especialmente animada. “Nenê, a minha amiga do pilates quer marcar um date duplo com a gente sexta à noite, vamos?”, ela perguntou. Eu não gostava da ideia de conhecer novas pessoas, mas não tinha uma desculpa plausível para não ir ao evento.
Marcamos o jantar para as sete na casa da nova amiga de Sofia, combinando que ela passaria em casa, se arrumaria e iríamos juntos. Porém, o que aconteceu naquele dia foi uma sequência inacreditável de coincidências. Primeiro, Sofia descobriu que não conseguiria passar na minha casa, e teríamos que ir em carros diferentes. Tentei chegar o mais tarde possível para não chegar antes dela, mas a forte chuva dificultou a chegada de Sofia, que não conseguia encontrar um carro de aplicativo. Se não estivesse chovendo tanto, eu provavelmente esperaria por ela fora da casa da nova amiga, mas o mundo conspirava para que eu tocasse a campainha e entrasse sozinho naquela casa.
A porta se abriu devagar, rangendo como num filme de terror. E quem me esperava do outro lado me despertava muito mais terror que o Freddy Krueger. Vestindo um terno preto com risca de giz como um coveiro, quem estava do outro lado da porta era Alberto, o chefe da minha esposa, o homem com quem ela havia tido um caso, que me perseguia e torturava na internet.
Meus punhos se cerraram imediatamente, e eu avancei na direção dele, tropeçando num degrau que não percebi que existia. Alberto só deu um passo para trás e riu, evitando o meu ataque de fúria. Carla surgiu de trás dele, ficando no meio de nós dois e gritou: “Não. Não faça isso.” Eu olhei incrédulo para o rosto dela. Ela estava louca se achava que eu não partiria para a porrada com ela também depois de tudo o que me fez. No entanto, eu fiquei confuso. A expressão dela ao falar aquelas palavras era intensa demais, parecia que ela estava preocupada de verdade comigo.
Eu não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Como minha ex-esposa e seu amante poderiam estar na mesma cidade que eu e minha nova namorada, e ainda por cima terem nos convidado para jantar? Era óbvio que tudo era uma armadilha, mas eu estava tão perplexo que não conseguia pensar direito.
Alberto sorriu com ironia e me cumprimentou, fingindo que tudo estava normal. "Entre, Cornélio", ele disse. Eu me senti invadido e exposto, mas não podia deixar que ele percebesse minha fraqueza. Ainda querendo esmurrá-lo, eu o encarei com raiva, mas ele me provocou ainda mais. "Você não quer passar vergonha na frente de Sofia, né?", ele disse, "ela não merece saber que está saindo com um ridículo, um corno manso." Eu senti meu sangue ferver, mas não queria dar a ele a satisfação de me ver perdendo o controle.
“Entra corninho. Deixa eu te dar um tour pela casa, sei que vai reconhecer bastante coisa que a gente trouxe da sua casa antiga. Mas quase tudo daquela pocilga eu joguei no lixo, a puta e o corno não tinham muita classe”, ele falou. Carla fez uma careta de dor ao ouvir a ofensa. Pela primeira vez eu o via tratando minha ex-esposa como um animal na frente dela, por que ela estava aceitando isso?
Enquanto tentava entender a situação, comecei a reparar mais em Carla. Ela usava uma sandália gladiadora com um salto gigantesco, e ao lado daquele velho ridículo, ela parecia uma amazona. Estava com um vestido preto com brilho que colava em sua cintura, e com uma fenda que expunha suas pernas que pareciam mais musculosas por causa do salto. Suas costas estavam expostas, e era impossível desviar o olhar de seus seios pelo colar de diamantes que ela usava. Aquele look não era para uma mulher que iria jantar com amigos; era para a ganhadora do Oscar de melhor atriz.
A casa estava impecavelmente nova, limpa e organizada, como se fosse um cenário de novela. Ninguém deveria morar ali. Eles deveriam ter alugado a casa apenas para armar aquela trama. Eu deveria ter fugido na hora, revelado meus segredos para Sofia e encerrado a noite antes mesmo de começar. Mas a raiva inundava meus pensamentos. Eles achavam que estavam atraindo um rato para a ratoeira, mas, na primeira oportunidade que tivesse, eu iria matar os dois ali mesmo.
Enquanto Alberto me dava um tour, fingindo que os dois eram um casal suburbano preocupado com os rituais de serem bons anfitriões, eu buscava qualquer coisa que pudesse usar como arma. Ele brincava com minha ex-esposa, chamava-a de querida, dava beijinhos nela quando descrevia a casa, e ela correspondia de forma mecânica, parecendo preocupada.
Quase no fim do tour, Alberto começou a falar empolgado sobre suas filhas e disse que eu precisava conhecê-las. A situação já era surreal demais, mas eu não acreditava que ele fosse me apresentar sua família. Chegamos a um quarto no final do corredor do terceiro andar da casa. Fiquei chocado ao ver o que havia ali. Aquele homem sinistro tinha uma coleção inteira de revólveres.
Ele começou a mostrar cada uma das armas e contar suas histórias, mas eu não consegui prestar atenção. Será que ele pretendia me matar ali mesmo? Seria esse o grande plano deles? Enquanto ele me descrevia uma arma, ele ofereceu que eu a segurasse e sentisse o peso, mas eu recusei. Disse que não gostava de armas, mas ele insistia. Por fim, eu cedi, e tomei a arma de sua mão, e ele ficou me encarando, claramente testando minha reação. Ele queria ver se eu tentaria matá-lo ou não.
A tensão no ar era palpável. Eu não sabia nada sobre armas e com certeza havia algum truque ali. A arma provavelmente estava descarregada, travada ou era apenas uma réplica. Tentar atirar e falhar só divertiria aquele velho asqueroso. Nós dois estávamos em um jogo, fingindo ser adultos civilizados batendo papo antes do jantar. Eu devolvi a arma, e ele começou a rir de maneira estranha, como se aquela situação fosse muito deliciosa para ele conseguir se controlar. Em vez de colocar a arma no estande, ele piscou para mim e a escondeu no bolso. “Não há motivo para briga. Vamos ter um jantar agradável hoje, corno. Depois você volta para sua vida com a sua puta feia e todos ficamos bem.”, ele disse.
Meu objetivo era sair vivo daquele lugar. Não podia morrer depois de tudo o que já havia passado. Ele tinha algum plano doentio para aquela noite, mas eu não fazia ideia do que era. Escondido, mexi no celular no meu bolso, começando a gravar. Mesmo que ele me matasse ali, usaria minha morte como vingança para destruir a vida daquele velho filho da puta.
Depois do tour, sentamos na sala. Ele abriu uma garrafa de vinho, nos serviu e colocou música clássica para tocar. Eu me sentei em uma poltrona, enquanto ele e Carla se acomodavam no sofá. Ele ignorava minha presença e passava o tempo todo conversando sobre banalidades com minha ex-esposa, tocando carinhosamente em seu braço ou brincando com o colar dela. Parecia estar adorando finalmente poder atuar na minha frente. Então, ele teve uma ideia brilhante: "Gente, precisamos registrar esse momento. Vamos tirar uma foto de nós três e enviar para o grupo!" O quê? Carla sabia da existência do grupo? Minha cabeça estava uma bagunça, eu precisava encontrar uma maneira de sair daquela situação.
Alberto posicionou a câmera em um suporte e ativou o temporizador antes de se posicionar entre mim e minha ex-esposa. Posicionou seu braço sob meu ombro como se fosse um grande amigo meu, e usou o outra para puxar Carla para si e beijou-a de língua enquanto tirava a foto. Ele postou a imagem no grupo e ria sozinho enquanto olhava as mensagens que recebia no celular. Eu tentei olhar para Carla em busca de alguma dica sobre o que estava acontecendo, mas ela evitava meu olhar e parecia absorta em seus próprios pensamentos. A campainha tocou e Alberto gritou animado como uma criança: "Estamos todos prontos? A namoradinha do corno chegou!".
<continua>
Mensagem do autor:
Essa parte da história ficou muito grande, e tive que separar em dois. Próximo conto, prometo que vai ter bastante ação. Espero que gostem.
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