A nossa especialidade era não parar. Havia em nós o mesmo acordo tácito de seguir transando como se o Feitiço de Áquila fosse nos atingir ao amanhecer. A maneira como ele me tocava me conduziu ao êxtase em diversos momentos da noite, e pelos seus gemidos, entendi que o mesmo estava ocorrendo com ele. De êxtase em êxtase, nossos corpos realmente atingiram o seu limite máximo.
Quando enfim terminamos, o dia já começava a amanhecer. No meu quarto, assim como na Urca, havia uma ampla janela com uma modesta sacada, que tinha como vista a Baía de Guanabara, o amanhecer visto dali era lindo. Muito embora eu quisesse ver aquele amanhecer, meu corpo era incapaz de se movimentar para além dali, decidi, então, pegar o controle da persiana, ao lado da cama, e abri-la um pouco, para que pudéssemos contemplar aquele momento.
O quarto estava gelado, e acredito que essa era a desculpa necessária - se é que se precisasse de alguma - para que o Ben me puxasse para ainda mais perto dele. Seus braços me apertavam firmemente, como se houvesse um receio de que eu fugisse para longe dele. Meu corpo, apesar de não ser magricelo, estava totalmente preso ao poder que o corpo dele exercia sobre o meu, e isso estava longe de ser um problema ou até mesmo uma reclamação. Era algo que eu gostava. Sempre gostei.
Benjamin sempre foi o amigo carinhoso que gostava de abraçar e demonstrar carinho, uma carência que provavelmente veio do fato dele vir de uma família que não tinha o contato físico como uma demonstração de afeto. Era comum que, quando estávamos juntos assistindo tv, em dado momento ele se deitasse no meu colo pedindo carinho, ou fazendo o oposto: pedindo que eu me aproximasse para que ele me acarinhasse. Sempre fui fã desses momentos, e revivendo aquela experiência, depois de termos ficado juntos a noite inteira, somente reiterou e aumentou esse prazer.
- Tu não vai me deixar dessa vez? - sua voz grave quebrou o silêncio enquanto eu estava quase dormindo, sentindo seus dedos deslizarem pelo meu cabelo.
- Não sei, você quer que vá? - não nos olhamos, permaneci deitado, quase sobre o seu peito.
- Vai te foder, né, João. Vim na tua casa, no meio da madrugada pra me declarar e no dia seguinte te mandar vazar?
- Não fala assim comigo. - fiz menção de sair dos seu braços, o que foi rapidamente gerenciado por ele.
- Desculpa, desculpa! Mas você entendeu, não foi? - ele voltou a mexer no meu cabelo. Desde sempre ele gostou de brincar com as ondinhas do meu cabelo.
- Eu entendi, mas também entendo que a nossa circunstância não é das melhores… - fez-se um momentâneo silêncio constrangedor. A respiração dele pesou, mas eu continuei - Quer dizer, você vai se cas…
- Eu sei, João! Eu sei! - ele me interrompeu - Ninguém mais do que eu sei a situação merda que eu tô enfiado e que acabei enfiando você e a Carol, mas, por favor, não fala disso agora não. Não tô pedindo pra você ignorar ou esquecer, tô só te pedindo pra não falar agora. Eu quero curtir esse momento contigo, quero me lembrar desse amanhecer.
- Tudo bem.
Voltamos ao silêncio, sua mão permaneceu acariciando meu cabelo, e de repente, os recados que Morfeu tinham a me passar se mostraram muito mais interessantes que o nascer do sol. Gradativamente, apesar da claridade que aumentava, meus olhos foram cedendo. Eu sabia que o despertar traria surpresas, mas naquele momento, eu apenas queria adormecer.
-
Amanheceu, mas eu não vi nada, somente perto da 13h da tarde que eu finalmente acordei. Ben não estava mais na cama e nem no quarto. Eu ainda tentava processar os eventos da última noite quando peguei o meu celular e vi dezenas de mensagens da Carol me perguntando se eu sabia onde o Benjamin estava. E, bem, naquele momento eu não sabia onde ele estava, mas sabia perfeitamente onde ele esteve nas últimas horas.
Saí do quarto usando apenas meu short de dormir, e o encontrei sentado no sofá. Ele já estava vestido com as mesmas roupas de ontem a noite - eu emprestaria alguma minha, mas acredito que seria estranho voltar pra casa com as minhas roupas. A chave do carro já estava em sua mão, e o celular, que não parava de vibrar, estava em cima da estante.
- Ben - o tirei do transe em que ele estava, que me olhou e sorriu. - Eu achei que você tivesse ido embora. - caminhei até ele.
- Eu dormi pouco, depois de um tempo eu fiquei inquieto na cama, mas tu tava dormindo tão pesado e tão lindo, que eu só não quis te acordar. - ele bateu em suas coxas, indicando que gostaria que eu me sentasse em seu colo, o que eu fiz. Me aproximei do seu rosto e beijei a sua testa, enquanto suas mãos deslizavam para a minha cintura, apertando-a em seguida.
- Você quer conversar? - ele afundou seu rosto no meu pescoço.
- Quero, mas não agora. Eu sei que eu preciso resolver a minha vida antes - ele afastou o rosto do meu pescoço e me encarou novamente. Um pouco à revelia dele, saí do seu colo e me sentei no sofá.
- Você vai falar com a Carol?
- Tem como não falar, João? É a segunda vez que a gente transa. Eu tô fazendo a garota passar por otária, como se ela não valesse nada.
- Eu sei, mas essa responsabilidade não é só sua, você não transou comigo a força. Eu quis… e quis consciente de tudo. Inclusive dela. A gente não controla o desejo, né.
- Acho que não. - ele deu um meio sorriso.
- E como vai ser?
- Não sei. O celular não para de vibrar desde cedo. Só dá mensagem e ligação dela, e eu pensando em como lidar com tudo isso. - ele apontou para o celular na estante.
- Eu quero te ajudar, Benjamin, mas eu não sei como. Você quer que eu te ajude a responder? Quer que eu peça pra ela vir pra cá? Não sei… qualquer coisa, eu só não quero que você segure essa onda sozinho. - estendi minha mão até seu rosto para fazer um carinho, ele fechou os olhos e em seguida beijou a minha mão.
- Fica aqui. Só isso. Eu preciso sair. Ela tá em casa. A gente não tava oficialmente morando juntos, mas desde que tudo aconteceu, ela vinha passando a maior parte do tempo comigo, lá em casa. Então eu vou sair daqui e ir pra lá. Eu não sei como vai ser. Não sei se eu vou dar conta, mas eu vou voltar aqui, João. Fica aqui, não sai de casa, por favor. Não vai embora. - ele se aproximou de mim, me deixando um pouco encurralado no sofá.
- Tudo bem - minhas mão seguraram cada lado do seu rosto - eu não vou embora. Eu te espero.
Ele sorriu, me deu um beijo na testa, recolheu as suas coisas e saiu. E então eu me dei conta do quão vazia aquela casa parecia sem ele. Óbvio que se tratava do exagero de alguém apaixonado, mas nem por isso deixava de ser verdade.
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Enquanto o Ben resolvia a complexidade da sua vida do outro lado da Baía, cabia a mim lidar com a complexidade do que me havia deste lado da cidade. Na verdade, a ausência de complexidade, já que meu relacionamento com o André, apesar de intenso, em momento algum se aproximou de um relacionamento sério. Muito pelo contrário, nunca nos prometemos exclusividade e sempre lidamos com isso cientes de que havia uma data para terminar. No final das contas, André era um amigo foda, com o qual eu transava. Se amor era latifúndio e sexo invasão, André foi a mais breve e intensa das revoluções agrárias que passaram pela minha vida.
Ainda naquele dia, troquei algumas mensagens com ele, que estava um pouco preocupado com o meu desaparecimento. Expliquei que assim que cheguei em casa, tomei um banho e desmaiei de cansaço. Não deixava de ser uma verdade, ainda que pela metade. Eu nunca fui muito fã dos aplicativos de mensagens, e se eu já não os utilizava para conversas mais pontuais, não iria começar a usar agora para falar de algo tão importante para mim. Expliquei a ele que as coisas estavam um pouco agitadas em casa e que eu precisava resolvê-las, mas que eu gostaria de conversar com ele tanto quanto fosse possível. Se as coisas estavam agitadas para mim, também estavam para o André, à medida que se aproximava o dia da viagem. Combinamos de nos encontrarmos no dia seguinte, na parte da tarde, quando eu saísse de uma das instituições em que trabalhava.
Eu sabia que não haveria problema algum em contar a ele o que havia acontecido, e de certa forma, não havia a obrigação de contar, já que não havia nada sério entre nós, mas as coisas estavam pouco claras entre todos os componentes dessa teia em que eu e Benjamin nos enfiamos; eu já estava sendo pouco claro com a Carol, não poderia fazer o mesmo com o André.
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O domingo seguiu com o meu coração aos pulos, não havia cabeça para ser produtivo e pensar nas aulas que eu daria no dia seguinte, muito menos para ser ocioso e me distrair assistindo alguma série, filme ou documentário. Eu só conseguia pensar no que estava ocorrendo no outro lado da Baía de Guanabara. Seria uma hipocrisia enorme minha dizer que eu achava errado mandar mensagem pra ele pra saber como as coisas estavam se desenrolando, por receio de ser invasivo… invasivo! Eu dormi com o noivo de outra em duas oportunidades e troquei juras de amor com ele em outras. A realidade é que toda essa zona era cinzenta, eu não queria magoar a Carol, nem ninguém, mas também não poderia dizer que não queria o Benjamin, porque eu queria e sempre quis. Não se pode controlar os nossos desejos, a gente pode correr e se afastar, mas eventualmente, seremos pegos por esse descontrole… o que se pode tentar conter é o tamanho do estrago e, infelizmente, eu mensurei muito mal a quilometragem do estrago da última noite.
Já era noite, perto das 19h, me sentei em uma das poltronas da varanda e afundei no turbilhão de pensamentos e reflexões das últimas horas. E quando ele terminasse com ela, o que seria de nós? Eu não era otário, sabia perfeitamente que qualquer coisa que tivéssemos, se iniciaria a partir de uma traição. Quais as chances disso dar certo? Quais as chances de dar errado? Eu terminaria tudo com ele mesmo tendo o deixado romper com a Carol.
Antes que eu chegasse a qualquer tipo de conclusão, a campainha tocou e eu sabia que era ele. A sua entrada já estava liberada na portaria. Corri até a porta e a abri, ele estava lá, parado, cabisbaixo. Havia mudado de roupa, estava usando a mesma roupa que todo carioca usa em dias de folga: bermuda, regata e chinelos; caso eu não estivesse em casa, também estaria de chinelo, mas também estava de bermuda e regata, mas com um blazer preto alongado por cima - estávamos na primavera, em que apesar dos dias quentes, as noites costumam ser mais frias.
- A gente acabou. - ele respirou fundo, pude ver que seus olhos estavam vermelhos. Ele havia chorado recentemente em algum momento do deslocamento até meu apartamento.
- Tudo bem. Vem cá. - abri meus braços e o acolhi ali mesmo, na porta do apartamento. Não me importava se alguém passasse e visse. Abraçá-lo era também uma forma de tentar me consolar pelo pé em que as coisas estavam.
- Como ela tá? - minhas mãos deslizavam pelas suas costas.
- Pior do que eu. Pior do que você. Eu não sei explicar. - ele saiu do meu abraço e me encarou.
- Eu não sei nem o que… - ele me interrompeu.
- João, eu te amo. Não me deixa, por favor.
- Eu também te amo, Benjamin, mas por… - novamente ele me interrompeu.
- Por favor, João. Não vá embora. - havia um desespero nele maior do que quando ele saiu do apartamento mais cedo.
- Eu tô aqui com você, Ben. Por que eu iria embora. - ele segurou a minha mão.
- Porque ela tá grávida, João. A Carol tá esperando um filho meu.
“E podia estar tudo agora dando errado pra mim, mas com você dá certo. Por isso não vá embora. Por isso não me deixe nunca, nunca mais. Por isso não vá, não vá embora. Por isso não me deixe nunca, nunca mais.”