CAPÍTULO VII
*** EDUARDO ***
− ENTÃO DEIXA eu ver se entendi... O e-mail que você me mandou, mas que eu nunca recebi, na verdade, foi parar na caixa de entrada de um empresário aqui de São Paulo mesmo, um cara super rico, que te chamou pra uma entrevista de emprego, e você foi, sem fazer ideia de que a vaga era pra ser puto dele... Quando descobriu, saiu correndo, mas ao invés de deixar o sapatinho de cristal pra trás, deixou a carteira de identidade, porque a gente é pobre e se deixasse o sapato, o príncipe nunca viria atrás, o chulé ia espantar. - explica e faz uma pausa no próprio falatório para rir da piada que ela mesma contou: − Daí o homem te encontrou, veio até a sua casa, te comprou comida quando percebeu que você estava o dia inteiro sem comer, fez você implorar pra gozar na mão dele, disse que você é o puto dele e que era pra você ligar quando aceitasse isso? - Joana pergunta com as sobrancelhas arqueadas e uma expressão muito divertida em seu rosto, fazendo-me revirar os olhos.
− Basicamente. -reconheço, derrotado, que sua narrativa absurda descreve com uma exatidão de detalhes perturbadora a novela que minha vida virou. E, para ela, é mais do que suficiente. Sua gargalhada sonora toma conta da minha casa e eu balanço a cabeça negativamente.
Hoje é o quinto dia no meu programa de reabilitação de João Pedro Govêa, e eu precisei pedir socorro, ou faria uma loucura. O homem simplesmente se recusa a abandonar meus pensamentos. Mesmo que, desde o dia em que Luiz esteve aqui para deixar as compras, eu não tenha mais tido notícias dele, continuo vendo-o em meus sonhos, e mais que apenas vê-lo. Sinto seu cheiro, seu gosto, seu toque, um inferno que está virando minha cabeça e me deixando a beira uma decisão muito absurda.
Foi isso o que me fez correr até a padaria na frente de casa ontem, colocar crédito no meu celular e ligar para Joana, implorando para que ela viesse almoçar comigo hoje. Eu precisava contar tudo o que vinha acontecendo na minha vida para alguém, ou eu explodiria. E por mais que eu realmente não quisesse contar para ela, porque sabia que esse seria exatamente o tipo de reação que ela teria, não é como se eu tivesse muitas opções.
Uma semana desde que eu o vi pela primeira vez, e Senhor! Como eu quero vê-lo de novo! Desconfio que eu esteja com saudades. Mas como isso é possível? Como eu posso, em sã consciência, estar sentindo saudades de um homem que disse com todas as letras que eu era seu puto. Não seu namorado, ou alguém com quem ele se importava, ou, nem mesmo, seu amigo, mas seu puto!
E que cuidou de você, te fez gozar e saiu daqui sem nenhum tipo de satisfação pessoal, te comprou comida quando você estava um dia inteiro sem comer, e, no dia seguinte, mandou compras o suficiente para alimentar uma pequena família da Malásia, e ainda te obrigou a aceitar... Meu subconsciente intrometido me lembra, dando mais uma marretada forte na parede de proteção que levantei contra a vontade de reconhecer meu próprio desejo de ligar para ele e dizer que sim, eu aceito, o que quer que ele me oferecer, eu aceito, porque ele estava certo o tempo todo, eu o desejo com uma loucura que nunca nem mesmo imaginei que viveria antes.
Esfrego as mãos sobre o rosto, tentando limpar a mente de toda essa confusão. A pequena mesa entre Joana e eu, ainda servida com o almoço, me confronta, dizendo que, se não fosse por ele, a essa hora, eu provavelmente estaria dormindo para evitar sentir fome, como em tantos outros dias. Percebendo minha seriedade, Joana finalmente se esforça e para de rir.
− Qual é o grande problema, Eduardo?
− Você tá realmente me perguntando isso, Jo?
− Sim! Eu tô! Porque está escrito na sua cara que você quer pular em cima do telefone e ligar pra esse cara. Então o que é que está te impedindo?
− Eu não sou um prostituto, Joana!
− Mas quem foi que disse que você é? -questiona, e eu reviro os olhos, perguntando silenciosamente “Sério?!”
− Que tal o fato de que ele se recusa a ficar comigo se não me pagar?
− Mas ele não vai te pagar pelo sexo, ele deixou isso bem claro...
− Isso foi só ele tentando me convencer a fazer o que ele queria! Joana! Isso é absurdo! Eu não posso me deixar ceder! É absurdo, simplesmente absurdo!
Joana me encara com olhos analíticos, o silêncio se estende entre nós por vários segundos até que ela o quebre:
− Você tá desesperado pra fazer essa ligação, não tá?
− Muito! -murmuro, choroso.
− Então faz, Eduardo! Só se vive uma vez! Isso não é a mesma coisa que se prostituir, e mesmo que fosse, se fosse a sua vontade, qual é o grande problema?
− Não é tão simples assim, Jo! Isso é tão errado!
− Errado por que? Errado pra quem?
− Pro mundo inteiro? Eu não posso, simplesmente não posso!
− Claramente, você está tentando convencer a si mesmo disso, e não a mim, mas se a minha opinião valer de alguma coisa, eu acho que você está sendo besta. É a sua vida, e você só tem uma. Nem que seja pra finalmente perder a virgindade, já que o homem te deixou subindo pelas paredes, mas se você quer, faz!
− E o que eu vou dizer pra minha mãe, por exemplo, Joana?
− Amigo, você mentiu sua mãe por tanto tempo sobre verdades da sua vida que você achou que iriam magoá-la. Por que fazer questão de ser honesto justamente agora?
− Nossa, obrigado! Agora eu me sinto realmente muito melhor... -Movo a cabeça para os lados, entreabro meus lábios e franzo as sobrancelhas.
− Só estou sendo prática! Você quer ficar com o cara, mas está aí, cheio de um pudor hipócrita! -Arregalo meus olhos, chocado com a palavra usada:
− Hipócrita?
− Sim! Hipócrita! Porque você quer e nenhuma justificativa que você use pra dizer que não deve vai mudar seu desejo, então, do que adianta ter pudor pra fazer se você não tem pudor pra desejar? É um pudor hipócrita, que tem dois pesos e duas medidas.
− Mas tudo na vida tem dois pesos e duas medidas quando se trata de desejar e ter. Uma coisa é eu querer matar alguém, outra coisa, bem diferente, é eu executar um assassinato! E desejar a morte de alguém desprezível, mas não matar essa pessoa, não me torna hipócrita, me torna um ser humano que sabe viver de acordo com regras.
− E pra que servem essas regras?
− Pra que a vida em sociedade funcione?
− Exato. E você pode me dizer, exatamente, como transar com o cara por quem você está louco de tesão vai prejudicar o funcionamento da sociedade?
Abro a boca para responder, até me dar conta de que eu não tenho uma resposta para isso. Porque não vai. Aceitar ou não a proposta de João não muda a vida de mais ninguém além da minha, então por que eu deveria me importar com a forma como as outras pessoas veriam esse “relacionamento”?
− Exatamente. -Joana declara ao perceber que eu não tenho uma resposta para a sua pergunta: − É a sua vida, Edu! E a sua vontade é tudo o que importa. Se você tiver alguma preocupação sobre isso, de alguma forma, te prejudicar, eu vou te ouvir e nós podemos conversar sobre ela, mas, se não, acho que você só tá tentando se convencer a não fazer uma coisa que você, obviamente, está insana pra fazer. -Ouço suas palavras e suspiro derrotado.
− Sabe, Joana? Não era exatamente isso que eu esperava ouvir quando te liguei e pedi por esse almoço...
− Você esperava que eu colocasse um pouco de juízo na sua cabeça, e, acredite em mim, eu to fazendo isso! -Torço meus lábios, pensativo, e balanço a cabeça lentamente para cima e para baixo. As palavras da minha amiga são como o último golpe de uma bola de demolição no muro de proteção que construí entre mim e meu desejo de dizer sim a João Pedro. No fim das contas, sou obrigado a reconhecer, ele esteve certo o tempo todo, já sou seu putinho...
O resto da tarde avança devagar enquanto Joana e eu conversamos sobre mil outros assuntos. Falamos da sua faculdade, de um cara com quem ela vem trocando olhares e eu aproveito a oportunidade para jogar em sua cara seu próprio conselho, afinal é isso que amigos fazem, não é?
− E você ainda não foi até ele porquê...?
− Porque eu não me sinto confortável sendo eu a dar em cima dele! -Me responde como se estivesse declarando o óbvio, e para quem conhece sua personalidade como eu, está mesmo.
− E não se sente confortável porquê...?
− Porque as pessoas vão falar! Afirma, e eu sorrio largamente, dizendo apenas com meu sorriso um “te peguei” que Joana compreende imediatamente. Estreitando seus olhos para mim, ela balança a cabeça para os dois lados, negando.
− Você não presta, Eduardo!
− Um dia é da caça, outro do caçador! -Revira os olhos: − Tudo bem! -Digo, tendo uma ideia de como fazê-la se jogar, porque se eu vou fazer isso, ela também vai: − Eu faço, se você fizer!
− Nós não somos mais adolescentes, Eduardo! Não vamos fazer isso de só vou se você for.
− Tudo bem, então. Eu vou continuar aqui, sozinho, subindo pelas paredes, louco pra pegar o telefone e ligar pro meu príncipe desencantado que me chama de puto... fazer o quê?! Não dá pra ganhar todas, né? -Olho para as minhas unhas dramaticamente, mas me dou conta de que elas realmente estão precisando de atenção.
− Você não pode estar falando sério! -soa indignada.
− Ah, eu posso! Posso e estou! Porque você não pode pregar uma coisa e viver outra! Se você quer que eu te ouça, vai ter que fazer o mesmo!
− Mas são situações completamente diferentes!
− Sim, são! Mas o princípio é o mesmo! E então?! Como vai ser? Minha virgindade vai viver para ver mais alguns dias, meses, ou, quem sabe, até anos, ou você vai fazer o que quer e chamar o carinha pra sair?
Joana revira os olhos e bufa:
− Isso vai ter volta!
− Já está tendo! Acredite em mim, fazer essa ligação parece que vai custar um pedacinho da minha alma!
− Ô homem dramático! -diz, e dou de ombros, sem poder negar.
O sol já está perto de se pôr quando Joana deixa minha casa. Combinamos que eu faria a ligação hoje mesmo, e que ela chamaria o cara da faculdade para sair na aula da semana que vem, porque vai viajar amanhã cedo para fazer um trabalho de campo em seu estágio e não quer fazer o convite por mensagem, mesmo eu tendo falado várias vezes que não tinha nada a ver.
Na cama, olho para o celular em uma das minhas mãos e para o cartão preto com o telefone na outra, meu coração bate acelerado no peito, parecendo um bumbo de escola de samba. Sinto o revirar em meu estômago e mordo o lábio. Oh, céus!
− Vamos lá, Eduardo! Você consegue! Não é nada demais! É só uma ligação!
Desbloqueio a tela e, com dedos trêmulos, começo a digitar os números. Paro na metade, decidido e desistir, mas as palavras de Jo se repetem na minha cabeça, como o estímulo que faltava para que eu aceite meu próprio desejo insano. Eu nunca fiz nada louco na vida, e aonde isso me trouxe? Não muito longe, não é verdade? Respiro profundamente, fecho meus olhos, tomando coragem, porque eu sei, tão certo quando meu nome é Eduardo, que independente do quanto isso venha a durar, esse é um passo sem volta que vai mudar toda a minha vida.
Mesmo que só para mim, mesmo que apenas a forma como eu me enxergo. Dizer sim para o João é dizer sim para uma vida que eu nunca tinha imaginado viver, até ele. Dizer sim para o João é mais do que me queimar, é me jogar no fogo por livre e espontânea vontade. Dizer sim é aceitar ser livre só para me prender a algo que eu não faço ideia de como vai se desenrolar.
Expulso o ar dos meus pulmões e abro os olhos, digito a outra metade do número e coloco o dedo sobre a tecla verde, no entanto, antes que eu possa tocá-la e dar início à chamada, ouço batidas em minha porta. Ótimo, Joana esqueceu alguma coisa aqui! Justamente agora que eu tomei coragem você me atrapalha?
Passo os olhos sobre a mesinha da cozinha, procurando o que pode tê-la feito voltar, mas não encontro nada. Em um salto, estou de pé, com poucos passos minha mão já está a maçaneta, abrindo a porta, só que ao invés de Joana, encontro seu Josias com uma expressão de pouquíssimos amigos no rosto. Pisco os olhos, realmente surpreso, embora eu não devesse estar, afinal, estou devendo três meses de aluguel, eu sabia que ele apareceria aqui, mas nos últimos dias, o dilema de ligar ou não ligar apagou da minha mente todos os outros problemas, inclusive os mais importantes, como precisar de uma justificativa para que seu Josias não me expulse daqui.
− Boa noite, seu Josias. -Digo e sorrio gentilmente, em uma tentativa inútil de amenizar seu claro mau humor, mesmo sentindo toda a umidade da minha boca sumir instantaneamente.
− Boa noite, Eduardo. -Me responde duro e eu engulo em seco.
− O senhor quer entrar? -Pergunto, já dando espaço para que ele passe pela porta, mas o homem permanece imóvel no portal. O encaro duvidoso, e, sem que eu possa me impedir, meus lábios se movem automaticamente de um lado para o outro. Troco o peso do meu corpo de perna, incomodado com a postura rígida de seu Josias. Ele nunca me tratou assim antes... Você nunca deveu tanto assim antes...
− Não, eu não quero. Vim aqui só pra te dizer que você tem até amanhã ao meio dia pra esvaziar a casa, ou eu vou achar quem esvazie pra você.
Meus olhos se arregalam em choque:
− O-o q-quê? -São as únicas palavras que eu sou capaz de dizer.
− Exatamente isso, menino. Você tem até amanhã ao meio dia pra tirar suas coisas da casa, ou alguém vai vir aqui tirar. -Reafirma e eu me apavoro, porque sei que isso é perfeitamente possível. A polícia não vai entrar aqui, então eu sei bem de que tipo de “ajuda” para tirar minhas coisas da casa ele está falando, do tráfico. Meus olhos ardem e meu coração, que antes batia acelerado, agora, agride meu peito com pancadas no lugar de batidas.
− Seu Josias, pelo amor de Deus! Eu, eu...
− Nem tenta, menino! -me interrompe: − Eu fui paciente com você, muito paciente! Já são três meses de aluguel atrasado, mas eu fui paciente, porque achei que você fosse um bom moço passando por um momento difícil, mas não é o caso, e eu não vou aceitar isso na minha casa! -Suas últimas palavras saem mais altas e seu rosto está vermelho, contorcido em uma careta de desprezo que nem mesmo nos meus piores dias alguém dirigiu a mim. Eu o encaro confuso, sem fazer ideia do que ele está falando e de, por que, do dia para a noite, seu Josias mudou completamente seu jeito de me tratar.
Ele nunca foi um amigo, mas sempre foi respeitoso e, até mesmo, amigável. Mas isso?
− Seu Josias, por favor... eu... não estou entendendo... -Me agarro à porta aberta, precisando de algum apoio para não desabar no chão. Minha voz sai em um sussurro baixo, esmagada pela sensação de desespero e pelo frio que se alojou em minha espinha. Deus, se eu tiver que sair daqui amanhã, para onde eu vou? Eu não tenho nenhum lugar para ir, nenhum lugar... Talvez os pais de Joana deixem que eu fique em sua casa por uns dias, mas e depois? A aflição toma conta de mim e as lágrimas rolam.
− Não está entendendo? Você vai negar que um homem esteve aqui na quinta-feira à noite e saiu daqui com a camisa ainda aberta e o resto das roupas nos braços, menino? Vai negar que no dia seguinte, um carro chique veio aqui e deixou um monte de compras pra você? Vai negar?
Minha boca se abre em horror absoluto. Olho para o homem à minha frente tomado por completo desespero, ele, ele está dizendo o que eu acho que está dizendo? Mas, Deus! Como? Como ele saberia de algo assim?
− Seu Josias...
− Você nega, menino? -Me interrompe, antes que eu possa concluir um pensamento e transformá-lo em fala.
− Não, mas seu Josias...
− Então não tem conversa! A rua inteira está falando disso, mas na minha casa não! Eu não aceito garoto de programa na minha casa! Você não tem vergonha não, menino?! Coitada da sua mãe se ela for viva! Que desgraça ter um filho que faz uma coisa dessas... - corta minhas palavras e sua agressão equivocada e gratuita rompe as últimas barreiras que mantinham minha dignidade de pé desde que ele começou a me acusar. Ouvir as palavras que vinham me assombrando há dias, na boca de outra pessoa, ainda mais com esse tom, transformando todos os meus medos em realidade, ter minha mãe mencionada, a vergonha que ela sentiria de mim se soubesse que eu fiz algo desse tipo... Perco a capacidade de falar e o choro sai de mim como uma cachoeira, as lágrimas são tantas que minha visão embaça e tudo o que eu posso fazer é abraçar meu próprio corpo. Choro, choro pela injustiça, pelo medo. Choro, porque amanhã a essa hora, eu já não vou ter mais um teto para morar. Choro por saber que a rua inteira está dizendo que eu estou dormindo com homens por dinheiro. Choro, porque a vida arrancou de mim a última coisa que eu guardava e protegia, meu orgulho de quem eu sou e de quem eu jamais seria.
− Até amanhã ao meio dia! Nem um minuto a mais! -sibila para mim, antes de me dar as costas, atravessar os poucos passos existentes entre a calçada e seu carro, entrar nele e sumir na escuridão da noite. Eu olho tudo isso sem realmente ver, sem conseguir acreditar que está realmente acontecendo. É só quando noto pessoas parando suas caminhadas na rua para olhar para mim, que fecho a porta e, dentro de casa, escorrego até o chão. Deixo que as lágrimas saiam até meu rosto ficar inchado, meu nariz, vermelho e entupido, e minha cabeça doer.
Olho ao meu redor, encarando minhas coisas. São poucas, mas são minhas. Como eu vou arrumar um jeito de tirá-las daqui e um lugar para levá-las até amanhã ao meio dia? Balanço a cabeça negando, incrédulo, perdido, e o choro voltar rolar solto pelo meu rosto. Não sei por quanto tempo fico no chão, se minutos ou horas, mas quando me sinto seco, sem mais uma lágrima sequer para derramar, finalmente me levanto. O celular bloqueado sobre a cama chama a minha atenção e apenas uma coisa me vem à mente.
Pego-o depois de desbloqueá-lo, aperto o 3 por vários segundos, acionando a discagem rápida para Joana, a ligação chama várias vezes antes de cair na caixa postal. Tento muitas outras vezes, até que o telefone descarrega e desliga sozinho, obrigando-me a conectá-lo à tomada e a aceitar o fato de que ela não vai me atender.
Giro ao meu próprio redor, pensando no que fazer, perdido, completamente perdido. Meus olhos ardem de sono e pelo choro abundante, minha cabeça dói de maneira alucinante e não tem nada que eu possa fazer, porque não tenho nem uma dipirona em casa. Penso em ligar para a farmácia e pedir para entregar, mas as palavras de seu Josias se piscam em meus pensamentos como um letreiro em neon: “A rua inteira está comentando...”
Todo mundo acha que eu sou um prostituto..., todo mundo..., as pessoas que trabalham na farmácia moram por aqui, elas também devem achar isso. Sento em minha cama, escondendo meu rosto nas mãos e meu corpo vai cedendo à exaustão causada pelos últimos acontecimentos, inclinando-se até que eu estou deitada. Puxo minhas pernas até altura do peito, abraço-as e descubro que eu estava enganado, eu não estou seco, ainda tenho lágrimas, porque elas voltam a escorrer pelas minhas bochechas. Fecho os olhos, tentando fugir da claridade, da realidade, do mundo, da minha vida, e, por algumas horas, eu consigo. Sonho com ele.
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O toque do celular vai me arrancando aos poucos do sonho. Tento resistir, mas o barulho insistente me desperta. Com os olhos ainda fechados, tateio o telefone, quando o alcanço, ele para de tocar. Um peso no meu peito me diz que há algo errado, mas eu não consigo me lembrar do que é, ainda de olhos fechados, fico quietinho na cama, pra ver se o sono volta, mas o que acontece é outra coisa.
São as lembranças que voltam como flexas certeiras em minha mente. A conversa com Joana, a decisão que tomei, o fato de eu ter chegado tão perto de ligar, até que seu Josias chegou. Respiro fundo, sentindo a vontade chorar voltar com tudo, mas me recuso a ceder a ela. Abro os olhos, a vergonha e o sentimento de humilhação me esmagam inteiro. Olho para o teto podre, para as paredes ao meu redor, me viro na cama e deixo que meu olhar deslize por todo o espaço que eu chamo de casa há quase três anos.
Foram tantos momentos aqui. Tantas noites sozinho, sentindo-me só, tantas conversas com Joana e dias e noites de filme, festas do pijama. Pode parecer o pior lugar do mundo aos olhos de outras pessoas, mas é o meu lugar. Ou, pelo menos, foi. Agora é só de onde eu estou sendo expulso por algo que eu não fiz, por uma pessoa que não sabe nada sobre mim ou sobre a minha vida. O pensamento é um sopro de força dentro de mim. Um rápido olhar para a tela do telefone me diz que a ligação perdida era mais uma das muitas de cobrança que recebo, afinal, o ddd era do Pará.
Levanto da cama e planto os pés no chão frio. O banheiro é meu primeiro destino e eu tomo um banho gelado longo. Debaixo do jato de água, deixo que minha cabeça vasculhe todos os seus cantos mais escuros atrás de uma solução, de possibilidades, e deixo também que ela lamente pelo que não vai ser. João Pedro... Chegamos tão perto... Mas, agora, não há a menor possibilidade de qualquer coisa entre nós acontecer, se antes, quando eu tinha a minha casa, precisei lutar contra o sentimento de que ele estava me pagando por sexo, agora, quando eu dependeria do seu dinheiro para ter um teto sobre a cabeça, não existe a menor possibilidade de isso acontecer.
Não quando pensarem isso ao meu respeito foi justamente o que me colocou na situação em que encontro, despejado. Com a pele vermelha e os dedos das mãos e pés enrugados, saio do banheiro enrolado numa toalha. Nas caixas, encontro uma calça jeans velha e uma camiseta sem mangas, depois de vestido, começo a juntar as coisas importantes para mim no pequeno espaço. Aproveito as malas há muito tempo não usadas para guardar minhas poucas roupas, esvaziando as caixas de papelão.
Em algumas bolsas, reúno meus livros e objetos pequenos. Aproveitando as sacolas reutilizáveis em que as compras de João Pedro vieram, guardo todos os meus objetos pessoais de decoração e sapatos. Mas, quando chego ao armário em que guardo mantimentos, e me deparo com ele cheio, é impossível não sofrer por ter que deixar tudo isso para trás. Afinal, eu não tenho como carregar ou, para onde levar, nem o que estou reunindo, quem dirá toda essa quantidade de comida. Enquanto olho para tudo aquilo com os olhos queimando por uma necessidade enorme de chorar, tomo uma decisão.
Separo todos os mantimentos que estavam no armário e na geladeira em três sacos de lixo pretos, eles ficam pesados, mas as bolsas são resistentes, então eu só preciso conseguir carregá-los por alguns minutos. Depois de calçar chinelos, saio de casa com eles pendurados sobre os ombros. Minha primeira parada é uma quitinete tão pequena quanto a minha que fica separada de minha quase ex-casa por outras duas residências maiores.
Bato na porta e espero. Ouço vozes infantis lá dentro e passos, antes de um “Já vai” soar alto em meus ouvidos. Segundos depois, uma mulher alta, muito magra, com a pele escura suada, e o corpo esquelético, aparece na porta, me olhando desconfiada e quase amedrontada. Atrás dela, três crianças estão sentadas no chão, dentro de casa, olhando, vidradas, para uma televisão minúscula posicionada sobre uma mesa velha e enferrujada, colocada na frente de um berço.
− Oi, Jaqueline, tudo bem?
− Oi, Eduardo. Tudo sim! E você? Balanço a cabeça, sutilmente, porque não quero mentir dizendo que também estou bem.
− Olha, eu to me mudando hoje e não consigo levar tudo o que eu tinha, então queria saber se você aceita alguns mantimentos. Tem arroz, feijão, leite, biscoito pras crianças, tem algumas carnes também. -Ao ouvir minhas palavras, os olhos da mulher brilham e se arregalam.
− Sério? -pergunta, precisando de uma confirmação. Sua reação me faz sorrir, porque eu reconheço o desespero da fome quando vejo, afinal, eu estava nele até poucos dias atrás, e, voltarei para ele muito em breve, talvez ainda hoje.
− Sério! Você aceita?
− Aceito! Aceito sim! Claro! Valeu, Eduardo! Valeu mesmo!
Entrego para ela um dos sacos pretos e me despeço com um aceno antes de me virar para sair, mas antes que eu me afaste muito, ela chama meu nome e eu me viro.
− Eu sinto muito por aquele velho ter colocado você pra fora. Eles não sabem o que é passar fome, Eduardo. Esse povo, que fala, não entende que quando o estômago dói, fazer a coisa certa não faz a dor parar...
Seu olhar é, ao mesmo tempo, solidário e penalizado. Pisco os olhos, sentindo as lágrimas se acumularem neles e só balanço a cabeça para cima e para baixo. Não consigo falar nada, o que eu diria? Me defenderia? Diria que estão todos enganados? Mesmo que eu não tenha feito o que estão dizendo que eu fiz, ela não está errada, eu só não precisei chegar a esse ponto em que meu senso de moral, de certo e errado, é abandonado em função das minhas necessidades básicas, pelo menos não ainda...
Minha próxima parada é algumas casas depois, do outro lado da rua.
Juliana atende a porta com seu bebê chorando nos braços. A mulher tem os cabelos loiros sujos e presos de qualquer jeito no alto da cabeça, olheiras profundas embaixo dos olhos e roupas sujas e largas vestindo seu corpo. O cheiro de azedo que atinge meu nariz assim que um vento o traz da parte de dentro da casa, embrulha meu estômago, mas eu me esforço para colar no rosto um sorriso gentil, mesmo que a expressão no rosto da mulher seja exausta e irritada.
− Oi, Juliana. Tudo bem?
− Eu pareço bem? -responde sem meias palavras, e eu abro a boca, mas desisto da abordagem gentil.
− Ok! Eu to me mudando hoje e não posso levar tudo. Quero saber se você aceita alguns mantimentos. -Ela inclina a cabeça para o lado e estreita os olhos para mim, depois, tirando um dos braços de baixo do bebê, estende-o para mim, eu coloco em sua mão a sacola preta e pesada e ela balança a cabeça em um agradecimento silencioso, ou, pelo menos, no que eu acredito que tenha sido um, antes de fechar a porta praticamente na minha cara.
No meu último destino antes de voltar para casa não há adultos. A moradora mais velha da casa, que não deve ter mais de dezesseis anos, abre a porta para mim e eu posso ver o espaço praticamente vazio de móveis atrás delas. Os irmãos Silva ficaram órfãos há alguns meses, quando depois de muitas surras, seu pai finalmente foi assassinado pelos traficantes locais, ele era um viciado que estava sempre devendo, e, provavelmente, a casa vazia ficou assim depois de ele vender tudo o que tinha dentro para comprar drogas.
São três irmãos, duas meninas e um menino. Já fazia tempo que a menina mais velha tinha largado a escola para cuidar dos irmãos, ela faz faxinas aqui e no Morumbi. Esse tipo de coisa faz eu me perguntar como é possível que ninguém esteja vendo isso, uma criança que se tornou responsável por outras duas crianças.
− É Juliette, não é? -pergunto, a menina balança a cabeça, afirmativamente.
− Juliette, eu moro na quitinete do seu Josias e to me mudando hoje, mas eu não posso levar tudo o que tinha lá em casa, então queria saber se vocês aceitam alguns mantimentos. Tem o básico, arroz, sal, açúcar, óleo, tem uns biscoitos, iogurtes e pães também.
A expressão da menina se torna surpresa e, mais uma vez, a sensação de reconhecimento me atinge. Eu conheço esse olhar, ninguém nunca cuidou dela também. De novo, não ouço sua voz, a resposta que recebo é uma confirmação com o balançar de sua cabeça. Sorrio para ela e estendo o braço, entregando o último saco com tudo o que tinha na minha despensa e geladeira. Diferente do que pensei que aconteceria, não me dói, na verdade, saber que estou, de alguma forma, sendo responsável para que ela e os irmãos sintam o alívio de saberem que terão o que comer nos próximos dias, assim como eu senti, dias atrás, faz com que a minha dor por tudo o que está acontecendo seja amenizada, pelo menos um pouco.
A menina de pele morena e cabelos escuros me olha nos olhos e sustenta o olhar por vários minutos, até finalmente dizer algo, e algo completamente inesperado.
− Eu sinto muito.
− Está tudo bem. -respondo, dando de ombros.
− Não, não tá. Eu sei que você não fez o que tão dizendo por aí... e não é justo...
Olho para a garota, absorvendo suas palavras, absorvendo o conhecimento de que alguém acredita em mim. A
sensação de alívio me preenche de uma forma indescritível, porque eu me importo. Eu realmente me importo, não em ter uma casa, comida, ou uma cama. Eu me importo com quem eu sou, e, por mais que seja odiável, a forma como as pessoas me veem acaba se tornando grande parte do que realmente sou. Porque é o que elas acreditam sobre mim que moldam minhas oportunidades, não o que eu faço ou deixo de fazer.
− Como você sabe? -Ela dá de ombros.
− Eu só sei... -É o suficiente para mim. Me despeço, e, silenciosamente, volto para minha casa.
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*** JOÃO PEDRO ***
MALAS E SACOLAS estão organizadas sobre a calçada na frente da espelunca que Eduardo chama de casa, do outro lado da rua, sentado em uma cadeira de plástico vermelho, diante uma mesa com o nome de uma cerveja estampada, o pequeno encrenqueiro olha para o celular na palma das mãos com um semblante desnorteado. Ainda dentro do carro, o observo por vários minutos, tentando decidir qual é a melhor abordagem. Minha vontade é exigir que ele me diga imediatamente o que está acontecendo aqui, mas seja lá o que for, está mais do que claro de que o está consumindo.
Com uma expiração profunda, abro a porta e salto para a calçada. Eduardo está tão distraído que não se deu conta do carro enorme ao seu lado, e nem mesmo se importou com os sons da minha aproximação. Da última vez que estive aqui, vim de Uber, quando Luiz esteve aqui, veio dirigindo seu próprio carro, porque chamaria muito menos atenção, mas, hoje, depois da ligação que recebi, não houve tempo para esse tipo de esquema, eu apenas entrei no carro e ordenei que Luiz viesse até aqui, sem me importar com o tipo de situação que entrar em Paraisópolis com uma Land Rover poderia causar.
A verdade é que quando o vizinho de Eduardo me disse que ele estava saindo de casa com malas e bolsas, meu primeiro pensamento foi que ele estava fugindo de mim, e depois de dar seis dias para que ele pensasse sozinho, era chegado o momento de mostrar para ele que o que lhe dei foi a sensação de uma escolha, e não uma escolha propriamente dita. Mas, então, eu chego e me deparo com essa imagem.
A coisinha teimosa está vestindo suas habituais roupas surradas, tem os cabelos presos em um coque mal feito no alto da cabeça e uma expressão tão desesperançosa no rosto, que é difícil acreditar que ele não esteja caminhando para a morte ou algo do tipo. Paro ao seu lado e espero que ele reconheça minha presença, mas depois de vários minutos, percebo que isso não vai acontecer. Eduardo, nesse momento, é a perfeita definição de corpo presente, alma ausente.
− Eu vou querer saber o que está acontecendo aqui? -Minha voz parece despertá-lo de seu estado de torpor. Ele vira o rosto devagar em minha direção e pisca os olhos azuis e cheios de dor e de medo, percebo, para mim. Então, ele faz o que faz de melhor, me surpreende, saltando da cadeira em que estava sentado e se jogando no meu peito. Mais rápido do que sou capaz de processar, seu choro audível começa e, atordoado, tudo o que eu posso fazer é envolver meus braços ao seu redor e deixar que ela chore.
Beijo suavemente seus cabelos, Eduardo me aperta com força, com um desespero palpável e eu sinto meu peito apertar, porque seja lá o que esteja acontecendo, é sério, se o deixou nesse estado, e porra! Eu quero acabar com ele, mais do que tudo, eu só quero acabar com ele.
− Shiii, vai ficar tudo bem... Sussurro do alto de sua cabeça, mas a única resposta que tenho é mais choro. Permanecemos assim por vários minutos, ele chora e eu a abraço, beijo sua cabeça, deslizo minhas mãos por suas costas, tentando confortá-lo. Não há para onde correr, constato. O tempo que ele tinha para chegar à conclusão de que é meu sozinho acabou, e eu vou me certificar de que ele entenda isso.
Levo minhas mãos até suas bochechas e levanto seu rosto, o obrigando a olhar para mim. Seus olhos e a ponta de seu nariz estão vermelhos e inchados, passo os dedos suavemente por suas bochechas e não resisto à vontade. Deixo que meus lábios toquem os seus com cuidado, precisando desse contato para saber que ele vai ficar bem, que eu posso fazer com que ele fique bem, porque, de repente, isso se tornou uma necessidade.
Com o rosto colado ao seu, o vejo fechar os olhos, não para fugir dos meus, como sempre faz, mas como se estivesse aproveitando o momento, como se precisasse dele. Toco nossos narizes pacientemente, ignorando os olhares das outras pessoas na padaria que nos observam como se fôssemos uma novela, alguns passantes até pararam seu caminho para nos observarem e, em vários portões, portas e janelas, pessoas se juntam para ver o desenrolar do que, aparentemente, é um show muito esperado, nós dois.
− Eu preciso saber o que houve. sussurro em seu rosto, e ele balança a cabeça negativamente.
− O que você está fazendo aqui? pergunta, ainda com os olhos fechados.
− Resposta errada, Eduardo... -aviso, e beijo a ponta de seu nariz, isso o faz abrir os olhos.
− Eu estou me mudando. -Sua voz é baixa, sussurrante. E não, como eu, para manter os ouvidos alheios longe da nossa conversa, mas porque ele parece sem forças para fazer qualquer coisa além disso. A resposta faz eu levantar minhas sobrancelhas, Eduardo estava extremamente orgulhoso da sua espelunca, ele não decidiria sair daqui assim, repentinamente, então...
− Você não conseguiu pagar o aluguel, não foi? -Sua pele, antes avermelhada por causa do choro intenso, ganha uma nova coloração, ainda mais forte. Ele demora mais tempo do que o necessário para me responder, escolhendo o que me dizer, percebo, e, por fim, só balança a cabeça afirmativamente, confirmando minhas suspeitas de que estava escolhendo me esconder alguma coisa, mas eu não seria o homem que sou se não soubesse quando avançar e quando recuar, então, por hora, aceito o que ele me dá.
− Bem, isso facilita as coisas... -Ele franze as sobrancelhas. Acaricio seu rosto com as mãos e volto a beijar seus lábios levemente, percebo os curiosos cochichando ao nosso redor e me pergunto que caralhos está acontecendo aqui.
− Facilita o quê? -Finalmente diz, e eu seguro seu rosto, mantendo seu olhar na altura do meu.
− Você está indo morar comigo, Eduardo. Ia acontecer de qualquer maneira, mas isso tornou tudo mais fácil. -Seus olhos se arregalam e piscam. Ele afrouxa seu abraço ao meu redor, mas eu não solto seu rosto, sua expressão começa a mudar, e o fato de que ele está prestes a discordar é evidente, então alerto.
− Tem certeza de que você quer fazer isso aqui, Eduardo? Quer brigar bem aqui? -questiono, passeando meu olhar ao nosso redor e ele me acompanha, só então se dando conta da quantidade de pessoas acompanhando nossa interação. Ele se move, tentando se desfazer do meu toque.
− Eu não vou te soltar. sussurro baixinho, em seu rosto, apenas para que ele ouça, antes de deslizar meus braços de volta a sua cintura: − O que você acha de entrar no carro pra gente conversar?
− Eu não vou morar com você! sibila em um sopro de voz, e eu sorrio antes de grudar minha testa na sua.
− Vem, Eduardo. Vamos brigar dentro do carro... -Solto seu corpo do meu abraço e estendendo minha mão para ele. Eduardo sacode a cabeça negativamente e esfrega o rosto com as mãos, deixando-o ainda mais vermelho, depois, olha para os lados, estudando nossa plateia e, por fim, aceira minha mão estendida. Seu toque é macio e sua mão pequena dentro da minha desperta uma sensação até então desconhecida, e da qual eu não sei dizer se gosto ou não.
Abro a porta do carro, mas ele abre a boca para protestar.
− Eduardo, o Luiz vai colocar as suas coisas na mala do carro. Fica tranquilo. Agora, entra, por favor. -Seus olhos se movem entre meu rosto, o interior do carro e o outro lado da calçada, onde seus pertences estão, em dúvida do que fazer.
− Você quer continuar alimentando a curiosidade do público? Porque nós podemos fazer isso... -As palavras são suficientes, ele finalmente se dá por vencido, fazendo o que eu peço. Fecho a porta, dou a volta no carro e entro do outro lado, deixando os olhares curiosos atrás dos vidros escuros.
− Luiz, você pode recolher as coisas do Eduardo, por favor? Tudo o que está ali na calçada.
− Claro, senhor Govêa. -responde, já abrindo a porta e se dirigindo aos pertences indicados, finalmente deixando Eduardo e eu sozinhos. Subo o vidro da divisória para que não sejamos interrompidos quando Luiz retornar e me viro para ele, ansioso para satisfazer a vontade que me atormenta há dias, beijá-lo.
Aproximo meu rosto do seu, cheiro sua pele e ele fecha os olhos, afetado pela nossa proximidade.
− Sentiu minha falta? -sussurro em sua boca, e seu corpo estremece ao lado do meu. Passo meu braço ao seu redor e deixo que minha mão livre deslize por sua bochecha. Ele permanece em silêncio, recebendo o carinho como se precisasse dele, e precisa mesmo, constato. Com meu cariz encaixado no seu, deslizo minha língua sobre seus lábios, depois, chupo seu lábio inferior, me embriagando com seu gosto. Eduardo abre a boca, encaixando nossos lábios e eu enfio minha língua neles. Sua boca se aproxima, não com sutileza ou timidez, mas tão faminta quanto a minha.
Nos envolvemos em um beijo urgente e delicioso, quente, sedutor e cuidadoso, tudo ao mesmo tempo. Seu sabor se espalha pela minha língua, me incitando a buscar cada vez mais dele, me desafiando a abandoná-lo, só para me ver perdendo o desafio. Inspiro com força, dividido entre deixar seus lábios para respirar ou me afogar neles. Mas é a necessidade dele por ar quem vence a batalha, e interrompe o beijo consumidor ao qual nos entregávamos.
− Acho que isso é um sim. -digo, antes de beijar as maçãs do seu rosto, bem ao lado do seu nariz e sua espiração me faz procurar seus olhos, tristes, tão fodidamente tristes, que eu quero matar quem quer que tenha sido o responsável por ter colocado essa tristeza neles
− Eu não posso ir morar com você. afirma em voz baixa.
− Eu não acho que você tenha entendido, Eduardo. -Afasto meu rosto do seu, pego sua mão e levanto até meus lábios, para depositar beijos em suas costas: − Isso não é negociável.
− Nada que seja contra a sua vontade é negociável pra você... -comenta, balançando a cabeça em negação.
− Parece que eu estava errado, você entendeu! -Sorrio, antes de piscar um olho para ele, que revira os olhos vermelhos para mim.
− É sério, João. Eu não posso morar com você...
− E onde você vai morar?
− É exatamente essa a questão, João! Eu não posso depender de você pra ter um teto sobre a minha cabeça! Se antes, pensar em você me pagando era ruim, agora, só faz com o que o que as pessoas pensam seja verdade...
− O que você disse? -Franzo as sobrancelhas: − De que pessoas você está falando?
Eduardo arregala os olhos, só então se dando conta do que disse. Abre a boca algumas vezes e a fecha, antes de conseguir formar uma frase coerente.
− Eu quis dizer o que as pessoas vão pensar, vão pensar que eu sou seu prostituto se eu depender de você até pra ter um lugar pra morar. E, além disso, e quando isso acabar? Quando você decidir que cansou de mim, que não quer mais o que está me propondo que a gente faça? Eu não posso, João. Eu podia antes, eu queria, mas, agora, eu não posso mais, não posso.
Estreito meus olhos para ele, absorvendo suas palavras e procurando, entre tudo o que foi dito, aquilo que não foi. Luiz entra no carro e sua voz soa pelos alto-falantes no banco de trás, assustando Eduardo com a interrupção súbita do silêncio que se instalou entre nós.
− Para onde senhor Govêa?
− Para casa, Luiz. -Aperto o botão de comunicação e Eduardo se prepara para protestar, mas ergo minha mão para ele, pedindo que espere.
− Tudo bem, senhor. -Solto o botão e volto minha atenção para o homem pequeno e de expressão irritada ao meu lado.
− Eu quero te mostrar uma coisa. Só isso. -Ao me ouvir, a desconfiança toma conta do seu rosto.
− E depois eu vou poder ir embora?
− Eu te deixo onde você quiser, até em São Roque, se for o caso. -Apenas ouvir o nome da cidade faz seu rosto se contorcer em desgosto. O que só me prova que minhas certezas estão certas, ele não quer voltar para casa.
− O que aconteceu?
− Eu já disse. Não consegui pagar o aluguel. -responde rápido demais, e eu balanço minha cabeça em negativa.
− Isso não é tudo. Que eu me lembre, você não estava planejando se mudar na semana passada, e se o senhorio te desse uma ordem de despejo, você não sairia de lá tão rápido. Pra onde você planeja ir? -Ele engole em seco e seus olhos claros me dizem que ele não gosta nem um pouco de seu próximo destino.
− Passar uns dias na casa de uma prima, ela mora na zona leste. -O desgosto fica evidente em sua fala, antes de ele continuar: − É só essa semana, depois eu vou passar um tempo na casa da Joana até eu ter pra onde ir. Não posso ir hoje, porque ela viajou hoje de manhã e eu não consegui falar com ela antes disso, como ela só chega no fim de semana, preciso esperar que ela volte.
− Não conseguiu falar com ela desde a semana passada? -pergunto, com naturalidade, disfarçando a verdadeira importância da resposta para essa pergunta.
− Não, desde ontem, depois que ela saiu lá de casa, o celular dela deve ter descarregado e, hoje, quando eu
acordei, já não adiantaria, ela já está longe e falar com ela só a deixaria preocupada.
Suas palavras se juntam em minha cabeça, completando o quebra-cabeças. Mas que porra!
− Então você está me dizendo que só ontem soube que precisaria sair da casa? -Ao perceber que me falou mais do que gostaria, Eduardo fica pálido e pisca os olhos rapidamente. Deixando claro que ele está, deliberadamente, escondendo informações de mim.
− Eduardo, eu vou perguntar só mais uma vez, e, se você não me responder o que eu quero saber, eu vou procurar alguém que me responda, e você sabe que eu vou encontrar! -Começo a dizer com uma voz enganosamente calma, mas perco a postura no final e acabo silabando as últimas palavras: − Que por-ra a-con-te-ceu?
Ele esconde o rosto sob as mãos e puxa o ar com força para dentro dos pulmões. Alguns segundos depois, quando abaixa as mãos, seu rosto está molhado pelo rastro de algumas lágrimas, a imagem me aperta o peito, mas eu não me movo nem um centímetro, porque se eu fizer qualquer movimento, não saberei o que caralhos causou essa merda toda.
− Eu estava devendo três meses de aluguel... mas não foi por isso que fui expulso... -Aguardo que ele continue a contar, mas não é o que acontece, assim, me vejo obrigado a perguntar:
− Você foi expulso? -Balança a cabeça, confirmando.
− Por que? -Olhos brilhantes e molhados por lágrimas não derramadas me encaram, ele lambe os lábios devagar e eu espero, mas ao invés de falar, Eduardo balança a cabeça em negação, me pedindo para não o obrigar a dizer, o que só me enlouquece ainda mais.
− Por-que? -Ele fecha os olhos e deixa que as palavras escapem, baixas, de sua boca, ainda com eles fechados.
− Os vizinhos disseram pro meu senhorio que eu estava recebendo... homens... em casa, e... e aí... ele... ele... me expulsou. Falaram... falaram que um homem foi lá, e..., e saiu com a blusa aaberta, e que... que no dia seguinte, no dia seguinte, um carro caro foi lá..., me deixar compras... -Finalmente revela, entre gaguejos e pausas e eu o encaro atônito, sem saber ao certo se entendi direito.
− Disseram pro seu senhorio que você estava fazendo programas? Pergunto para confirmar minha interpretação, e só quando vejo todo o seu rosto perder a cor, me dou conta de que foi uma péssima escolha de palavras e abordagem. Expiro com força e desvio meu olhar do dele, passo as mãos pelos cabelos, olho para as janelas, para o teto do carro, abaixo a cabeça e com os dedos indicador e polegar, aperto a ponte do meu nariz, puta que pariu! Mas que caralho! Quando volto a encarar ele, tem os olhos baixos e os ombros encolhidos, claramente envergonhado.
− Por que você não me ligou? Questiono, e ele levanta o olhar, encontrando o meu.
− Eu ia, eu estava com o telefone na mão quando o seu Josias chegou lá e me disse que eu tinha até o meio dia de hoje pra sair da casa.
− Depois disso! Por que caralhos você não me ligou depois disso? -questiono em um tom de voz mais alto do que pretendia, irritado, fazendo-o se encolher no banco, colocando um espaço ainda maior entre nós. Me arrependo imediatamente e volto a buscar suas mãos com as minhas, antes de repetir a pergunta, dessa vez, mais suavemente: − Por que você não me ligou?
− E dizer o quê? Que eu estava sendo expulso da minha casa porque todos os vizinhos estavam comentando que eu estava fazendo exatamente o que você me pediu pra fazer? - Eduardo tem os ombros retraídos e, apesar das palavras duras, sua postura não demonstra raiva, ou enfrentamento, só vergonha.
− Eu nunca te pedi pra se prostituir, Eduardo. Eu nunca faria isso com você. Ele balança a cabeça, negando.
− Não importa as palavras que você vai usar, João. Você queria me pagar para que eu fizesse sexo com você, não importa quantos nomes você use, as pessoas só conhecem um, prostituição!
− Eduardo, o que as pessoas pensam não importa! Importa o que você pensa, o que você quer, e você disse que estava me ligando!
− Porque eu fui estupido o suficiente pra acreditar nisso, João! Pra acreditar que a forma como as pessoas me enxergam não importa, só que importa! Importa muito! Porque foi o fato de elas me verem como um puto, mesmo que eu ainda não fosse um, que me fez ser expulso da minha casa! Você não tem ideia das coisas que ele me disse, João... -Começa a falar alto, mas sua voz vai abaixando conforme chega às últimas palavras, deixando de ser enraivecidas e passando a chorosas. Seus olhos se tornam mais vermelhos e lágrimas começam a escorrer pelo seu rosto, seus lábios e ombros tremem e suas pálpebras se movem tão arrastadamente, que é impossível não ver a dor que a simples lembrança causa a ele: − Você não faz ideia do quão horrível foi ficar lá e saber que ele estava certo ao dizer que minha mãe se envergonharia de mim! Porque eu poderia não ser um garoto de programa naquele dia, mas se ele tivesse me feito a maldita visita um dia depois, eu já seria! Seu puto, não foi disso que você me chamou? -sussurra as palavras: − Eu seria seu puto...
Vê-lo dessa maneira me desestabiliza completamente e eu o puxo, encaixando-o no meu colo, Eduardo enfia o rosto no meu pescoço e chora. Agarro a raiz de seus cabelos e inspiro com força, tomado de ódio por quem quer que o tenha feito se sentir dessa maneira, que o tenha colocado nessa posição. Aperto seu corpo em um abraço, beijo seu pescoço, esfrego suas costas, a toco de todas as maneiras que consigo, tentando acalmá-lo, desesperado para que dê certo.
Seu tremor vai diminuindo aos poucos, assim como os sons do choro que são substituídos por pequenos soluços. Ele respira profundamente, tentando se acalmar, controlar a entrada e a saída de ar, inspirando pelo nariz e expirando pela boca. Quando levanta o rosto, minhas mãos se movem automaticamente na direção dele e seco suas lágrimas com os dedos. Ele fecha os olhos inchados e eu espero até que ele se sinta pronta para abri-los novamente antes de falar.
− Presta muita atenção no que eu vou te dizer. Você não é a porra de um prostituto! E eu te dizer que você vai ser meu puto, não tem absolutamente nada a ver com a venda do seu corpo, porque se eu não fui claro o suficiente antes, eu vou ser agora: eu não quero e nem vou comprar sexo com você! -Seus olhos, vermelhos de choro, me encaram sérios, e ele funga o nariz. Sua fragilidade me assusta de um jeito muito diferente do que eu gostaria.
Porque, ao invés de querer colocar um oceano de distância entre nós depois dessa demonstração de vulnerabilidade, eu quero abraçá-lo, protegê-lo, e, por Deus! Quero acabar com a vida de quem o tocou! Como eu quero...
Os soluços de Eduardo, cada vez mais baixos, são os únicos sons ouvidos no banco de trás do carro por vários minutos. Depois de parecer processar minhas palavras por algum tempo, ele finalmente me responde.
− Mas...
− Mas nada! -O interrompo: − Eu não vou admitir que você questione isso! Ser meu puto na cama é algo que nós vamos fazer porque nós dois queremos, se você quer uma explicação formal, que tal isso: tem a ver com a forma como vamos conduzir nossas interações sexuais, sem pudores, sem frescuras, sem limites convencionais, apenas os nossos! Se você quiser gritar, você vai gritar, se eu quiser te falar um dicionário inteiro de sacanagens, eu vou falar, se a gente quiser experimentar todas as posições do Kama sutra, nós vamos experimentar, e porra! Se a gente quiser ir a uma casa de swing transar em público, nós vamos! Mas nenhuma dessas coisas chega nem fodidamente perto de definir como prostituto. E não porque é errado, mas porque você não quer ser um, então você não vai ser, caralho! Você me entendeu? -Pergunto, sério, e ele me olha por alguns segundos, antes de balançar a cabeça, afirmativamente.
− Ótimo, porque nós chegamos.