CAPÍTULO VIII
*** EDUARDO ***
AS PALAVRAS DE JOÃO me fazem virar o rosto na direção da janela do carro, e, mesmo com a cabeça dolorida, o nariz meio entupido e com os olhos ardendo de tanto chorar, a visão me tira o fôlego. A casa enorme não tem um muro separando sua entrada da rua, devemos ter entrado em um condomínio fechado e eu nem me dei conta.
Diante de um extenso gramado, a fachada branca é complementada por um muro verde vivo e faz a enorme, realmente, imensa, porta larga, e alta, de acesso à casa, se destacar. Dois andares, enormes janelas de vidro no piso superior, e uma beleza inacreditável, erguem a construção de maneira soberana diante dos meus olhos, e eu nem percebo que minha boca está aberta, até sentir os dedos de João em meu queixo. Desvio meu olhar da casa para o seu rosto, mais do que impressionado, verdadeiramente chocado.
− Você mora aqui? -Preciso perguntar e ele sorri, me dando apenas um aceno positivo como resposta. Pisco algumas vezes, processando a informação, sem me mover, definitivamente, agora faz todo sentido do mundo que ele menosprezasse a minha casa. Diante de um lugar como esse, minha pequena quitinete fica parecendo um banheiro de botequim.
− A gente precisa entrar... -sussurra, muito perto do meu rosto, despertando-me e eu começo a me mover, descendo do seu colo e me ajeitando no banco. Ergo a mão na direção da maçaneta da porta, mas João me para no meio do caminho, me pedindo para esperar. Franzo as sobrancelhas e observo enquanto ele abre a outra porta e sai do carro, instantes depois, minha porta é aberta do lado de fora e ele estende a mão para me ajudar a descer. Levanto minhas sobrancelhas:
− Você não me deixou abrir a porta porque queria abrir você mesmo? - Questiono.
− Exatamente. -Deixa um beijo suave em minha testa. A resposta, junto com as ações desde que se deixou ser abraçado por mim com desespero, ainda na padaria de frente para aquela que foi minha casa até esta manhã, faz meu coração dar um pulo no peito. Eu não deveria me sentir assim, mas não consigo fazer ou pensar em nada para me impedir.
Talvez, porque tudo aconteceu inesperadamente, talvez, porque eu tenho tanto sobre o que pensar e me sentir mal, que é muito difícil dizer ao meu próprio coração para não se sentir feliz com as poucas coisas capazes de fazê-lo sentir algo bom nesse momento. Eu não tenho certeza de absolutamente nada, apenas de que, antes de qualquer coisa, eu não esperava por todos os acontecimentos que me trouxeram até esse instante. Sentado na mesa da padaria, com uma rua entre mim e minha bagagem, tudo o que eu conseguiria levar, pois era só o que era capaz de carregar comigo, eu encarava o celular, sabendo qual era a única opção, e, ainda assim, buscando uma maneira de fugir disso.
Eu não queria fazer aquela ligação, não queria precisar voltar para a casa da minha prima quatro anos depois de ter saído de lá. A ideia de dizer que não tinha para onde ir apertava meu estômago, mas a simples lembrança dos olhares lascivos que seu marido me dirigia anos atrás, quando eu cheguei à São Paulo como um menino cheia de sonhos e sem nenhuma noção de qual era a realidade, me causava ânsia de vômito.
O que ele faria agora? Comigo desesperado e sem nenhuma outra opção, a não ser me submeter à estadia em sua casa? Talvez minha aparência cansada e desgastada o afastasse, mas talvez não. Talvez ela o estimulasse, talvez fizesse com que ele acreditasse que, agora, sem saída, eu me submeteria a coisas muito piores que olhares, me tornando mil vezes pior do que aquilo que já estavam me acusando de ser. Ser prostituto me envergonharia, mas ceder aos avanços do marido da minha prima me enojaria. Eu teria nojo de mim mesmo.
Eu não queria ligar. Eu não queria pedir. Eu não queria ir para lá. Mas eu não via nenhuma outra opção além de dormir embaixo de um dos muitos viadutos ou pontes de São Paulo. Talvez eu devesse fazer isso, pensava enquanto encarava o celular na palma das minhas mãos. Se Joana não tivesse viajado, eu poderia pedir ajuda, mas como eu faria isso sem ela estar por perto? Não podia simplesmente ligar para sua casa e pedir abrigo aos seus pais enquanto minha amiga nem mesmo estava lá. Eu já estava perdendo tanta coisa, deixando minhas poucas coisas para trás sem saber se um dia, poderia resgatá-las. Minha cama, minha geladeira, fogão e micro-ondas, eu não tive nem mesmo tempo de vendê-los.
Eu precisava de uma solução temporária. Somente até que minha amiga voltasse de viagem. Mas nenhuma outra, além da casa na zona leste de São Paulo, surgia em minha mente. Talvez eu ficasse bem por alguns dias lá. Talvez ele tivesse mudado, tanto tempo já havia se passado, ele poderia nem mesmo tentar nada..., pensei, apertando meus olhos, completamente submerso em meus próprios pensamentos e alheio a tudo o que acontecia ao meu redor. Foi quando ouvi a sua voz, e, mesmo sabendo que não havia a menor possibilidade de existir qualquer coisa entre nós no presente, ou no futuro, naquele momento, não havia nada que eu quisesse ou precisasse mais do que um abraço, nem mesmo uma solução para os meus problemas.
Me joguei em seu peito e o apertei. Seu cheiro inundou meus sentidos, me trazendo uma sensação de segurança e acolhimento que eu não sentia há anos, desde a infância, e eu chorei. Chorei porque eu precisava, chorei porque eu não pude me impedir, chorei porque me senti seguro quando seus braços circularam minha cintura e seus lábios beijaram meus cabelos. Eu não esperava a explosão de sensações e sentimentos que cada uma de suas ações desencadeariam em mim daquele momento em diante.
Não esperava me sentir cuidado em seus braços, não esperava me sentir guardado, ou que a crença de que havia alguém no mundo se preocupando comigo tomasse conta de mim ao ouvir suas perguntas, seu tom de voz, e enxergar em seus olhos azuis, tão cheios de complexidade, uma preocupação genuína. Eu não esperava que, ali, frágil, abalado, completamente sufocado pelos meus próprios sentimentos, eu desejaria estar em seus braços mais do que quando meu corpo estava queimando de desejo e tesão, implorando pelo seu toque, pelo calor da sua pele e da sua boca nas minhas. Eu não esperava e não pude fazer nada além de ser invadido pela avalanche sentimentalista que me dominou. Obrigando-me a sentir tudo, e a desejar mais, mesmo sabendo que eu não poderia ter.
Segurando minha mão dentro da sua, João me conduziu pelo caminho de pedras no gramado até os degraus de acesso à porta de sua casa, ao chegar lá, me dei conta de que não havia maçaneta na porta. Franzi minhas sobrancelhas, me perguntando como ela abria, minha pergunta foi respondida quando ele colocou o polegar sobre um pequeno círculo na lateral do portal, uma luz verde de ascendeu, e ele a empurrou para dentro, fazendo-a girar dentro do seu eixo e abrir passagens dos dois lados, criando dois corredores, um de cada lado da folha de madeira, que agora estava exatamente no meio do espaço delimitado pelo portal.
Olho para aquilo embasbacado. Essa, definitivamente, é a definição de porta de rico. Meu Deus! Eu nunca vi uma coisa dessas antes, talvez, se eu lesse revistas de decoração, teria visto, mas, definitivamente, até hoje, eu tinha certeza absoluta de que eram os únicos lugares em que eu veria. Ele estende o braço para que eu entre primeiro e eu o faço, estacando após dar apenas dois passos com a beleza do lugar.
As paredes laterais e o chão claros, junto com enormes janelas, deixam o ambiente muito iluminado. Percebo imediatamente que não existe divisão entre os cômodos, exceto pela mobília, as únicas paredes existentes são as que cercam o ambiente. Os móveis são sofisticados e enormes. Claros também, e há algumas poucas peças coloridas, como um abajour e banquetas azuis na cozinha cinza. Nos fundos, uma imensa porta de vidro deixa a vista uma área gramada, uma piscina, e sabe-se lá o que mais. À minha direita, uma escada, cujos degraus parecem flutuar, leva para o segundo andar, que pode ser visto de onde eu estou, como se fosse uma imensa sacada com um guarda-corpo de vidro. Nem mesmo nas novelas em que as famílias eram mais ricas, eu já havia visto um lugar como esses.
− Vem, eu quero te apresentar a casa. -Ouço a voz de João e me obrigo a parar de olhar cada detalhe do lugar que meus olhos alcançam para olhar para ele, que sorri. Pisco e apenas aceno afirmativamente com a cabeça. Ainda sem soltar minha mão, ele me conduz por todo o espaço aberto, me apontando a sala de estar, de jantar, de tv, e fazendo com que eu me pergunte, por que, nesse mundo de meu Deus, alguém precisaria de três salas.
Mas João Pedro não parece perceber meu choque, porque continua caminhando, até que chegamos a uma porta de correr escondida na parede que eu não tinha percebido. Ele a desliza para o lado, revelando um cômodo grande, que grita conforto com seus sofás, tapetes, mantas, poltronas e estantes de livros. Há também uma mesa a frente de uma imensa janela coberta por persianas claras. Há, sobre alguns móveis, algumas miniaturas de aviões, e uma das estantes não possui livro algum, apenas vários aviõezinhos.
− São aeromodelos. -comenta, percebendo a direção do meu olhar.
− Você ainda brinca de carrinhos também? -pergunto, divertido.
− Talvez... -Seu sorriso parece querer dizer alguma coisa e me faz levantar a sobrancelha.
− Esse é o escritório e biblioteca.
− Aqui tem paredes... -Observo tudo o que meus olhos alcançam com curiosidade.
− É porque eu gosto de me esconder aqui... -Sua voz é suave, natural, fazendo eu me perguntar se ele está falando sério.
− Paredes são importantes pra se esconder... -É a única coisa que me vem à cabeça.
− Definitivamente! -Eu o encaro, franzindo minhas sobrancelhas.
− Quantas outras pessoas moram aqui, João?
− O quê? -responde com outra pergunta, espelhando minha expressão e franzindo as sobrancelhas também.
− Você mora com seus pais? Quantos irmãos você tem? Qual a idade deles? Tem crianças por aqui? -Solto várias perguntas de uma vez, com a curiosidade atiçada por tudo o que vi desde que entrei na casa. João dá um leve puxão no meu braço, aproximando seu corpo do meu e envolvendo minha cintura com seu braço livre. Uma de suas mãos sobe para o meu rosto e ele o segura no lugar, obrigando-me a manter meus olhos nos seus. Ele não sabe que tudo o que precisa fazer para isso é me olhar. Ele não sabe que seus olhos, de alguma forma, me aprisionam muito mais que seus braços.
− Eduardo, eu moro sozinho...
− Sozinho? Nessa casa imensa? -O interrompo, piscando os olhos rapidamente, sem conseguir acreditar em algo assim. Ele sorri largamente e balança a cabeça, confirmando, antes de voltar a falar.
− Eu sou filho único. E você acha essa casa grande porque vivia num lugar muito, muito pequeno, mas acredite, ela tem um tamanho normal. -Seus olhos faziam mais do que tragar os meus, eles diziam coisas, muitas que eu não conseguia entender, mas quando ele cola sua testa na minha, os fecho, incapaz de sustentar seu olhar tão próximo do meu. Ele gira o rosto alguns centímetros, acariciando minha pele com a sua, e depois volta à posição original. Sua boca roça na minha, um toque simples, sutil, rápido, mas que me faz querer mais, muito mais.
Levo minha boca à sua e o beijo. Devagar no começo, mas conforme nossas línguas se tocam e se envolvem, aquela atração impossível de deter vai fazendo com que nossos corpos se aproximem cada vez mais, até que estejam se pressionando um contra o outro e nossas bocas, literalmente, se devorem. As mãos de João deslizam pelo meu corpo e, enquanto uma se aloja em minha cintura, a outra se estabelece na minha nuca, ao mesmo tempo, acariciando, pressionando e puxando. Minhas próprias mãos passeiam por suas costas. Ora sentindo seus músculos fortes sob meus dedos, ora usando-os de apoio para atender ao chamado irrecusável da atração que me obrigava a chegar cada vez mais perto dele, até que não haja espaço para que nem mesmo um sopro de ar passe entre nossos corpos.
Quando interrompemos o beijo, ofegantes, mantenho meus olhos fechados, aproveitando sua presença por tanto tempo quanto posso, até a lembrança de que tudo isso está muito perto de acabar me atingir como um raio, e eu me afastar tão subitamente, que João nem mesmo tem tempo de tentar me impedir. Agora, com os olhos bem abertos, encaro a expressão interrogativa no rosto de João, mas finjo não a perceber.
Ele não diz nada, apenas volta a me estender a mão e, pela primeira vez, desde que nos encontramos hoje, tenho medo de atender ao pedido silencioso. Olho para sua mão e mordo meu lábio inferior, não quero pegá-la, não quero me apegar à sensação que pegá-la desperta em mim.
− Eu só quero te mostrar a razão de você estar aqui. Você pode conhecer o resto da casa depois, se quiser, ou não... Eu posso te deixar no lugar pra onde você quer ir... -diz, parecendo ler meus pensamentos e inseguranças. Eu gostaria de saber como é que ele faz isso, porque ele sempre acerta, percebo que se eu não perguntar agora, é provável que eu nunca descubra, não vai haver tempo para descobrir.
− Como você faz isso? -Ele não precisa de mais explicações para saber exatamente do que eu estou falando.
− Seus olhos. -diz, com simplicidade, e eu inclino minha cabeça para o lado, tentando descobrir se acredito ou não nessa resposta. Mais uma vez, compreendendo tudo o que não é dito pelo meu silêncio, ele complementa:
− Eles são transparentes não só na cor. Eu posso te ver inteiro pelo seu olhar. Isso é raro...
− Isso é perigoso... -murmuro, e ele sorri.
− Depende de quem você deixa que aprenda a ler você.
− É perigoso que você tenha aprendido. -As palavras saem, e só então me dou conta de que disse em voz alta, ele sorri.
− Provavelmente é... Vamos? -Refaz o convite, e, apesar de temeroso, seguro sua mão.
Ele nos conduz até o segundo andar pelas escadas, lá em cima, um largo corredor revela quatro portas, duas de cada lado. Passamos pelas primeiras e, quando chegamos às segundas, uma de frente para a outra, João abre a do lado direito, fazendo sinal para que eu entre primeiro. É um quarto lindo.
Absolutamente lindo. No centro dele, uma cama enorme, baixa e coberta por roupas de cama brancas e fofas, domina o ambiente cercado por paredes e móveis claros, e que tem um tapete enorme e felpudo no chão, combinando perfeitamente com a cabeceira estofada. As enormes cortinas brancas me sugerem o que encontrarei atrás delas, provavelmente, algumas das janelas que vi quando ainda estava do lado de fora da casa.
É tudo tão luxuoso, tão absurdamente bonito, mas, ao mesmo tempo, tão delicado.
− É o seu quarto? -questiono, absorvendo cada pedacinho do ambiente, querendo esticar os dedos e tocar os móveis, as paredes, os objetos, tudo para ter certeza de que eu não estou em algum tipo de sonho de filmes da Disney.
− Não, Eduardo. É o seu. -Levo um tempo até ter certeza de que entendi certo e me viro tão rápido na direção de João, que continua parado na porta, enquanto eu fui entrando sem perceber cada vez mais no quarto, que chego a me sentir tonto.
− Quê? -Ele finalmente se move, desgrudando-se do batente da porta e caminhando para o interior do cômodo. João passa por mim e caminha em direção à parede atrás da cama, mais uma vez, fazendo-me notar uma porta antes não vista. Ele passa por ela, e eu acredito que queira que eu faça o mesmo, então o sigo, e o que encontro do outro lado, leva meu queixo ao chão:
um closet cheio de roupas penduradas.
Ternos, bermudas, calças e camisas estão pendurados em cabides e, até mesmo eles, parecem caros. Os cabides parecem caros. Mordo o lábio, confusa.
− De quem eram?
− As roupas? -responde minha pergunta com outra, atraindo minha atenção para o seu rosto, que tem uma sobrancelha arqueada que eu não entendo.
− Isso. -Passo meus dedos por uma roupa sem conseguir me impedir. O tecido rosé é claro e parecia tão suave e macio, que precisei tocá-lo. Ouço um risinho baixo e dou um passo para trás, me sentindo envergonhado por estar tocando roupas alheias, sinto meu rosto esquentar e tenho certeza de que fiquei vermelho sem nem mesmo precisar olhar para um dos muitos espelhos espalhados pelo cômodo, penso em pedir desculpas, mas ele é mais rápido que eu.
− São suas Eduardo. São todas suas. -A simplicidade em sua voz faz com que, novamente, eu duvide de que tenha ouvido corretamente, mas seus olhos me encaram com firmeza, deixando claro que está falando sério.
− Eu não entendo...
− Eu pedi no dia seguinte ao que te visitei, e elas chegaram no fim de semana. Estavam só esperando a sua ligação. E a arquiteta que vai decorar o quarto exatamente como você quiser também, só está me esperando ligar e dizer que você chegou. -Sua resposta me confunde mais do que esclarece, abro e fecho a boca várias vezes, antes de finalmente conseguir organizar meus pensamentos e transformá-los em algo que faça sentido.
− Mas por que você faria algo assim? -Consigo dizer, e ele sorri, caminhando na minha direção.
− Eu te disse antes de te deixar naquela noite... Porque você já era meu. Eu sabia, você sabia, só não tinha admitido ainda, mas era só uma questão de tempo. Eu disse que o que eu precisava de você exigiria sua disponibilidade vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, você não poderia continuar morando em
Paraisópolis. Tirar você de lá sempre fez parte do plano, e, além disso, você vai precisar me acompanhar em almoços, jantares, eventos, vai precisar de roupas adequadas. Essas são só para as primeiras semanas, assim que você estiver adaptado, vai poder escolher você mesmo o que quiser.
Ouço suas palavras, mas custo a acreditar que realmente as estou entendendo. “Me mudar sempre foi o plano”? “Vou precisar acompanha-lo”? e “Essas roupas são só para a primeira semana”? Meu Deus! Tem mais peças de roupas aqui do que eu tive a minha vida inteira! Olho fixamente para João sem ter ideia do que dizer e ele entende isso.
− Eu não quero que você decida nada agora. Você teve um dia de merda, tá exausto, com fome, eu tenho certeza, e, provavelmente, um pouco confuso. Nós vamos fazer o seguinte, você vai tomar um banho, comer e, depois, deitar pra dormir e descansar. Quando você acordar, tira um tempo pra pensar sobre tudo, e aí nós voltamos a conversar. O que você acha?
− João, eu não posso simplesmente ficar na sua casa, eu..., eu... -Busco as palavras, mas como elas não vem, ele volta a falar.
− Pode, e vai. Sua preocupação era depender de mim para ter onde morar, mas mesmo antes do despejo, se aceitasse minha proposta, como planejava, essa já seria a realidade. Você não vai ter tempo para trabalhar em outro lugar. O que significa que qualquer lugar que você tivesse, dependeria do salário que eu te pagaria, e ele ficaria vazio, porque você não morar aqui nunca foi uma opção. Mas, se você, ainda assim, quiser uma casa pra chamar de sua, tá tudo bem, use o seu salário e tenha uma, eu não recomendo, afinal, você vai estar jogando dinheiro fora, mas é uma escolha sua e eu não vou te impedir se você quiser. Você vai ter muito tempo pra pensar sobre isso.
− João...
− Eduardo, eu disse e repito, se você quiser ir embora, eu mesmo levo você pra qualquer que seja o lugar, mas, antes de decidir qualquer coisa, essas são as minhas condições, que você coma e descanse... e isso não é...
− Negociável. -falo junto com ele, o que nos faz sorrir: − Tudo bem. Eu posso fazer isso.
− Ótimo! Vou pedir pra te trazerem algo pra comer. Toma um banho, explore as gavetas, tem roupas de dormir em alguma delas e, quando você estiver se sentindo bem, nós voltamos a conversar.
Confirmo com a cabeça, ele deixa um beijo suave nos meus lábios e caminha para fora do quarto, deixando-me no meio do closet, tonta com tantas informações, cansado, com fome e confuso. Aceito que ele está certo, preciso mesmo de um banho, comida e cama, quando eu acordar, talvez, tudo isso comece a fazer sentido, ou, pior, eu me dê conta de que as coisas são ainda mais absurdas do que pensei.
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*** JOÃO PEDRO ***
O LÍQUIDO ÂMBAR, girando no copo, não faz nada para clarear meus pensamentos. Da varanda do meu quarto olho para a piscina no andar de baixo, mas não a vejo. Que porra de dia! Definitivamente, bem diferente do que planejei quando acordei, hoje de manhã. Seu fim foi aquele pelo qual eu venho esperando há dias... A criaturinha encrenqueira debaixo do mesmo teto que eu, e longe daquela pocilga em que morava... Sim. Mas nada além disso saiu como o planejado. A começar pelo fato de que ele está aqui há mais de seis horas e eu mal o toquei, quando o propósito de tudo isso é tê-lo completamente a disposição do meu pau, e terminando com a minha total falta de compreensão sobre o meu próprio comportamento diante dos últimos acontecimentos.
O plano era fácil! Chegar, jogá-lo sobre os ombros e deixar claro que fugir não era uma opção, não havia dificuldades, não tinha o que dar errado... Até ele se lançar no meu peito, me abraçar, e começar a chorar. Mas que caralho! Porra! Em um único gole, viro o restante do conteúdo que havia no copo na boca. O Whisky rasga meu paladar, o gosto forte domina minha boca, mas minha mente continua completamente ocupada pela imagem de um Eduardo aos prantos, envergonhado e diminuído.
Aperto os olhos e levo os dedos à ponte do nariz, tentando controlar o fluxo de sentimentos que me arrebatam. Eu quero matar a porra do senhorio que o deixou desse jeito, mas também quero matar todos os vizinhos que fizeram a porra da fofoca. Eu quero matar qualquer um que chegue perto de deixá-lo naquele estado de novo. Mas, por quê? Por que caralhos a fragilidade do garoto me incomoda tanto a ponto de eu me sentir homicida? Não sei, não faço ideia. Mas é um fato incontestável. O bem-estar de Eduardo está me enlouquecendo.
Me preocupa que isso esteja acontecendo agora, quando nos conhecemos há apenas uma semana. O que fará comigo em meses? Minha mente levanta uma placa vermelha piscante com a palavra perigo, e, logo abaixo, a pergunta: “Por que caralhos você está pensando em MESES?” Mas a verdade é que o alerta nem mesmo é necessário. Eu sei que tem algo de muito errado acontecendo, porque se preocupar tanto com alguém não pode ser algo bom.
Girando o pulso, confiro o relógio e o horário me faz balançar a cabeça em negação, 20:30h e nenhum sinal do belo adormecido. Ou ele está muito cansado e ainda não acordou, ou não quer sair do quarto. Mas se eu tivesse que apostar, apostaria na primeira opção. Eduardo não sabe o que é uma cama há meses, além disso, existe a grande possibilidade de que ele tenha tido uma péssima noite de sono de ontem para hoje.
Imagino que ter uma ameaça de despejo sobre a cabeça não seja o melhor dos soníferos. Expiro com força e esfrego as mãos no rosto. Um vento frio passa, arrepiando os pelos dos meus braços e meu peito nu. Olho para o notebook diante de mim, para as planilhas e documentos abertos nos quais não consigo me concentrar. Como se ter saído do escritório no meio-dia já não tivesse sido suficiente. Mais uma expiração pesada deixa meus pulmões enquanto eu tento, inutilmente, organizar meus pensamentos, porque eles estão determinados a seguir seu próprio ritmo e vontade.
Quando imaginei estar em casa às 14h de uma quarta-feira? Nunca, nem sei há quanto tempo algo como isso não acontecia. Deixar o trabalho de lado por causa de Eduardo de vez em quando não seria nada mal, se o tempo em questão fosse gasto com nós dois na mesma cama, e não com ele em outro quarto enquanto eu me preocupo se ele está suficientemente confortável. Puta que pariu!
Cansado do rumo do meu debate interno, e certo de que não vou conseguir trabalhar hoje, pego o celular sobre a mesa e, depois de alguns toques na tela, com a ligação já sendo feita, o levo ao ouvido. A vadia atende quase imediatamente.
− Me fala, o mundo vai acabar amanhã? Porque, primeiro, você sai do escritório no meio do dia, depois, você me liga... Que porra tá acontecendo com o universo? -A voz de Marcos soa alta e eu sorrio ao ouvir que a Maria fofoqueira já sabe da minha vida.
− E eu posso saber como, exatamente, você ficou sabendo que eu saí do escritório no meio do dia? Tá me monitorando, porra? Não tenho homem não, em!
− Claramente, meu amigo! Se você tivesse, teria coisas muito mais interessantes pra fazer tarde da noite do que analisar contratos. -Meus olhos, imediatamente, se desviam para a porta aberta do meu quarto, pela qual eu posso ver a porta do quarto de Eduardo, fechada.
− Unhum, Maria fofoqueira. Mas como é que você sabe da minha vida?
− Tá com a cabeça aonde, João Pedro? Eu era uma das reuniões que você desmarcou, porra! Achei que era pra falar disso que tinha me ligado... -A resposta me faz erguer as sobrancelhas, porque ele está certo. Eu nem mesmo pensei sobre a agenda que precisou ser reorganizada e, geralmente, sei exatamente tudo o que tenho que fazer ao longo do dia. Ah, Eduardo! É melhor você dormir por uma semana, porque é o tempo que eu planejo te manter acordado para me recompensar por essa merda toda.
− Tive uns imprevistos, e, na verdade, é sobre eles que eu quero falar com você. Onde você tá?
− O quê? Não me diz que foi processado?
− Não, porra! Não tem nada a ver com o Govêa. To precisando distrair a cabeça...
O silêncio na linha dura tanto que afasto o telefone da orelha para ter certeza de que a ligação não caiu. Ao confirmar, sou obrigado a chamar outra vez.
− Marcos?
− Desculpa, eu to tentando descobrir se entendi certo. Você quer sair pra beber? Puta que pariu! Finalmente devolveram meu amigo! Você mandou os aliens que te abduziram meses atrás tomarem no cu? Porra! Por favor! Me diz que mandou! -Marcos começa a gargalhar assim que para de falar e eu reviro meus olhos para o nada.
− Às vezes, você parece nunca ter saído da puberdade, Marcos...
− Ah, Joãozinho! Você não pode me ligar me chamando pra beber numa quarta-feira à noite, depois de recusar dezenas de convites meus, porque estava ocupado até nos fins de semana, e esperar que eu deixe isso passar.
− Joãozinho é o cu! E eu não posso sair, Marcos. Mas se você puder vir até aqui, o bar tá abastecido.
− Sabia que tava bom demais pra ser verdade. Eu não quero beber, João! To precisando comer, porra!
− Então, quando sair daqui, passa num puteiro, caralho! Ou, foda-se! Vai direto pra lá!
− Você sempre foi sentimental assim,
João? Ou foi o período com os extraterrestres que te deixou sensível? Fizeram experimentos hormonais em você? Aumentaram seu nível de estrogênio e diminuíram o de testosterona, foi? -Com esse último comentário, eu desisto e desligo o telefone. Menos de um minuto depois, o celular vibra na minha mão com a chegada de uma nova mensagem.
“Chego em 20 minutos”
− Puta que pariu! -Marcos exclama quando termino de contar toda a história com Eduardo enquanto colecionamos algumas garrafas de long neck vazias no deck da piscina.
− Pois é! -Bufo, levando a garrafa de cerveja à boca.
− Então não era um puto, nem uma piada, mas um engano! Que porra, em? Balanço a cabeça, confirmando. Ele nem faz ideia.
− Ele tá lá em cima agora? Entendi certo?
− Perfeitamente... dormindo desde duas horas da tarde... -murmuro, mais para mim do que para ele, mas Marcos ouve e levanta uma sobrancelha.
− Já tá com saudades, Joãozinho?
− Saudades do que a gente não viveu, só se for, porra! -Ele gargalha com a minha resposta e passa alguns minutos em silêncio, bebendo a cerveja e olhando para o nada.
− E o que você vai fazer agora?
− O que eu disse que faria. Contratá-lo. Inclusive, isso é trabalho pra você. Quero um contrato e um acordo de confidencialidade... -Marcos ergue as sobrancelhas para mim.
− O acordo ok, mas, o que eu deveria colocar no contrato? Você sabe que essa porra não vai ter validade legal e que isso ainda pode ser uma prova contra você mesmo, certo? Você é uma figura pública João Pedro, se essa merda vaza...
− E não é pra isso que serve o acordo de confidencialidade? -questiono o óbvio: − Justamente pra que não haja possibilidade de vazar? E quanto ao que colocar no contrato, você tem uma boa base, o e-mail que ele mesmo me mandou e que eu te encaminhei. É exatamente isso que eu quero dele, assistência pessoal..., mas faz a coisa ficar menos explícita, e acrescenta os termos, moradia, salário, essas porras... Você foi à faculdade, deve ter aprendido pelo menos isso entre as festas, né?
− Vai se foder, João Pedro! Que eu me lembre, você estava nas mesmas festas que eu! Enfim, eu só não entendo pra que toda essa merda... -Com os cotovelos apoiados sobre os joelhos, Marcos espelha minha posição. Sentado ao meu lado em uma das espreguiçadeiras, ele tem os primeiros botões da camisa abertos, e suas mangas dobradas até os braços, além dos cabelos loiros completamente desalinhados. Parece que hoje o filho da puta lembrou de como se trabalha: − Por que não simplesmente foder o garoto e depois ir cada um pro seu lado?
− Porque eu não posso foder um cara que está passando fome e depois fingir que não aconteceu nada até a próxima foda, Marcos. E o Eduardo é orgulhoso demais, ele não aceitaria meu dinheiro em outras circunstâncias... Ele não aceitaria ser sustentado por mim enquanto esse caso durasse.
− E por que foder um cara que tá passando fome, pra começo de conversa? É algum tipo pervertido de assistência social? Caridade? -Parece genuinamente curioso e, ao tentar formular uma resposta, acabo sorrindo. Porque passando fome ou não, o homem é genioso que só a porra, e gostoso como eu ainda não encontrei por aí. E é isso que eu respondo.
− Porque igual o Eduardo não tem... Percebo que minhas palavras causam espanto em Marcos, ele segura meu olhar por alguns segundos, porém, quando fala, não é sobre isso.
− Mas por quê trazê-lo pra sua casa? Por que não o colocar num flat ou num apartamento?
− Você mesmo respondeu essa pergunta, eu não tenho hora pra parar de trabalhar. A última coisa que eu preciso é ter que ficar me deslocando por causa de uma transa garantida. Se é pra ser uma foda fixa, que seja na minha cama, porra.
Marcos balança a cabeça em concordância.
− Você decidiu arrumar um puto, afinal... -Comenta, desviando seu olhar de mim para a piscina e suas palavras me fazem ver vermelho.
− Não! -respondo sério e imediatamente: − Ele não é um puto! – Marcos volta a cabeça em minha direção e franze as sobrancelhas, eu o encaro por vários minutos, mas nenhum de nós fala nada, até que ele ergue as mãos em uma declaração silenciosa de rendição.
− Devo colocar monogamia no contrato? -Depois de algum tempo sem dizer nada, faz a pergunta armadilha, despretensiosamente.
− Com certeza, eu quero que fique muito claro que ele não pode nem olhar pra quem quer que seja!
− Eu tava falando de você...
− Eu sei, mas não vou legitimar essa pergunta respondendo... -Imediatamente, um sorriso de canto aparece em seu rosto e ele faz um som dramático de alívio.
− Graças a Deus! Eu tava começando a ficar preocupado!
− Vai se foder, Marcos!