CAPÍTULO SEIS
“NINGUÉM AGUENTA MAIS IMPREVISTOS”
Parecia que eu estava aconchegado dentro de uma nuvem bem fofinha e cheirosa, que me acomodava do melhor jeito possível, como se fosse feita só para mim. Mas foi ao abrir os olhos que me dei conta de que a nuvem, na verdade, era o colchão maravilhoso e os travesseiros macios da cama de Thomas Orsini.
Claro que pulei de susto.
Virei para trás com o coração agitado, constatando que ele não estava comigo. Peguei o celular sobre a cabeceira ao lado e o susto se intensificou: quase 10h da manhã. Fazia um tempo que eu não dormia tanto e tão bem. Pena que era sexta-feira e eu, teoricamente, tinha que estar na InterOrsini.
Respondi a uma mensagem da minha mãe, avisando que tudo continuava bem, e verifiquei um e-mail diretamente da Martha Simas. Com palavras rebuscadas e uma maneira superformal de se comunicar, ela dizia que a nossa reunião com o pessoal de Los Angeles, por motivos de força maior, tinha sido remarcada para a próxima segunda-feira.
Eu sabia muito bem quais motivos eram aqueles.
Assim que removi o pesado edredom descobri que fazia muito frio, ainda que o ar-condicionado já estivesse desligado. E eu usava apenas um cueca.
— Droga...
Só queria estar em casa, ou pelo menos no trabalho, fingindo que nada tinha acontecido e voltado à minha normalidade meio entediante. Bom, estava perto. Mais algumas horas e eu me livraria de vez de tudo o que me perturbava, ou seja, das garras do CEO. Precisava ter um pouquinho mais de paciência.
Encontrei um conjunto de moletom cinza-claro sobre uma poltrona. Certamente não era para mim, mas eu sentia tanto frio que vesti a parte de cima. A de baixo desisti após constatar que sequer passaria pelas minhas coxas grossas, menos ainda pela bunda. Fiquei de cueca mesmo e fui para o banheiro, a fim de fazer a higiene matinal.
Eu queria as minhas roupas e não ter que lidar com o pós-foda. A noite tinha sido ótima e a transa, bastante satisfatória, mas creio que o fato de saber que seria apenas aquilo estava me deixando estranha, incomodado com tudo. No geral eu não curtia transar sem qualquer intenção de prosseguir com o flerte.
Saí de fininho pelo corredor, com medo de topar com algum funcionário do Thomas. Seria muito vergonhoso dar de cara com um de seus guarda-costas musculosos. A ideia era alcançar a área de serviço, pois era mais provável que meu vestido estivesse lá, porém, tive que estacionar antes de atravessar uma porta aberta.
Era a de um escritório.
Expiei com calma, silenciosamente, e vi o todo-poderoso de pé em frente a uma janela fechada, com o celular em mãos e trajando um conjunto bem parecido com o que eu tinha pegado emprestado. Ele observava as gotas de chuva que molhavam o vidro e foi então que entendi por que estava tão frio: o tempo havia virado drasticamente.
— Sim, é verdade. Não se preocupe. Bia já comeu? — Thomas falava baixo ao telefone, num tom compenetrado que me deixou curiosa. Sobretudo para saber quem era a tal de Bia. — Obrigado por ficar com ela. Creio que nessa conjuntura só estarei em casa amanhã. Espero que ela se comporte e não te dê muito trabalho — ele riu um pouco e eu me aproximei mais para continuar ouvindo.
Será que Thomas Orsini tinha uma filha chamada Bia? Era possível. Será que estava falando com a mãe da garota? Muito provavelmente. Apesar de eu não ter encontrado nada a respeito de uma criança em minhas pesquisas, sabia que ele era muito discreto e não curtia exposição.
Enfim, a vida era dele e eu nada tinha a ver com aquilo.
Dei de ombros, fazendo certo esforço para me distanciar, mas falhando miseravelmente. Qual é? Eu era um homem curioso e nada que descobrisse sobre o chefe faria diferença na minha vida, então o que tinha de mais abelhudar um pouco?
No entanto, fiquei pensando em suas palavras e mais dúvidas me vieram à mente. Primeiro: aquela realmente não era a casa dele? Thomas deixara claro que só estaria em casa no dia seguinte, então... Já tinha uma resposta. Segundo, por que raios ele não retornaria naquele mesmo dia? Eu queria estar em casa em poucas horas!
Talvez Thomas tivesse um compromisso à noite, depois do trabalho. Mas onde poderia ser? E com quem? Fiquei pensando a respeito como se fosse um protagonista de alguma série policial. CSI perdia pra mim.
Por isso que estava mais do que claro, diante de tanta curiosidade nutrida, que não era prudente me aproximar mais da vida dele.
Os meus pensamentos me deixaram tão distraído que não notei quando Thomas encerrou a ligação e virou o rosto para a porta, encontrando-me vulnerável. Seu olhar ficou paralisado em mim enquanto eu ainda brigava comigo mesmo por motivos óbvios.
Quando finalmente me dei conta, tentei disfarçar a vergonha e busquei algum comentário para fazer, mas foi impossível. Tudo porque ele começou a andar em minha direção como se fosse um leão cercando o cordeirinho indefeso.
O que era aquele olhar sério, quase cruel, e sedento?
Nada precisou ser dito. Foi com muita sede ao pote que Thomas se aproximou e logo me puxou pela cintura, afundando uma mão em minha nuca para me beijar com possessividade. Retornamos àquele nosso conhecido estado de pressa, como se houvesse pouquíssimo tempo disponível e precisássemos um do outro urgentemente.
Ele me agarrou para dentro do escritório, sem desgrudar nossos lábios, e abriu espaço sobre a mesa para que eu me sentasse e envolvesse as pernas ao redor de seu tronco. Apesar de ainda estar meio sonolento – visto que eu só acordava de verdade após uma xícara de café – o tesão dominou o meu corpo e eu já não sentia mais tanto frio.
Nós nos ajudamos a retirar nossas camisas de moletom, meio desajeitadamente. Faminto, ele grudou seu peitoral largo e forte em meus seios, agarrando os meus cabelos e me fazendo gemer diante daquela loucura matinal.
— Gostoso... Não me canso dessa boca — Thomas murmurou entre arquejos e beijos malucos, aleatórios.
Uma mão mais afoita desceu pelas minhas carnes e puxou a cueca.
Entretanto, Thomas estava disposto a se ver livre da peça, por isso a puxou mais uma vez e ouvi novo estalo, até que desistiu de seu intento e afastou o tecido para o lado. Em seguida desceu um pouco a calça de moletom, colocando todo aquele pauzão suculento para fora.
Fiquei meio paralisado, esperando para ver se tentaria me penetrar sem preservativo – e claro que não permitiria que prosseguisse sem proteção –, porém ele acabou abrindo uma gaveta ao lado e pegando um pacote.
Suspirei de alívio, mas também fiquei intrigado.
Por que ele guardaria camisinhas na gaveta da mesa do escritório?
Só não faria sentido se eu não levasse em conta que aquele era o apartamento onde Thomas levava as suas fodas. Ele devia comer os caras que caíam em sua rede por todos os cômodos. Errado não estava.
Sem qualquer demora, abriu o pacote com os dentes e se vestiu antes de meter com força, de uma maneira tão gostosa que o meu corpo pendeu para trás, sendo aparado pelas suas mãos firmes. Thomas não foi nadinha delicado ao começar a foder na maior velocidade, investindo pesado enquanto beijava a minha boca, meu pescoço, ombros. Eu o sentia por toda parte, preenchendo-me daquele jeito perfeito que havia conhecido na noite passada.
Suas arremetidas se tornaram tão intensas que o ouvia resmungar palavrões e xingamentos que eu, particularmente, adorava e fazia com que me sentisse o maior dos putos – de uma forma positiva, claro. Suas mãos me envolveram o pescoço, pressionando-me de forma calculada, mas mostrando toda a selvageria do nosso sexo.
Entre arquejos, suor e uma foda incrível, eu mesmo passei a atiçar o meu pau até que o orgasmo intenso surgiu e me deixei levar loucamente, gemendo e berrando o nome dele sem o menor constrangimento.
— Bruno... — Thomas soltou e o meu corpo, automaticamente, arrepiou-se da cabeça aos pés. Sério, não sobrou um pelinho que não tenha ficado eriçado diante de um timbre de voz tão lindo.
Quando afundou o pau dentro de mim com força, deixando-se ficar encaixado, senti que estava gozando também. E a tirar pela expressão que fazia, devia ter sido um orgasmo tão bom e revigorante quanto o meu.
Thomas me deu um selinho rápido e, ainda ofegante, murmurou:
— Bom dia — abriu um sorriso de comercial de creme dental.
— Bom dia, bonitão. Café da manhã de hoje: salsichão e dois ovos cozidos — apalpei as suas bolas com um olhar malicioso.
Thomas soltou uma gargalhada tão espontânea que os meus pensamentos paralisaram só para vê-lo com admiração. Às vezes ele não me parecia real, mas uma pintura de muito bom gosto.
— Espero que tenha gostado do menu — completou, ainda rindo da piada.
— Adorei! Mas confesso que preciso de café.
Ele assentiu e nos desencaixou com cuidado. Com o corpo mais calmo, o frio retornou e ele percebeu os meus arrepios, por isso, depois de retirar o preservativo e guardar o pau dentro da calça, pegou de volta as camisas que tínhamos jogado no chão.
— Você fica lindo de cueca e moletom. Não resisti — comentou e me deu mais um selinho depois que nos vestimos. Limitei-me a sorrir.
Em seguida ele me levou para a sala, onde miraculosamente uma mesa farta de café da manhã fora montada.
— Você não quer que eu acredite que preparou isso tudo sozinho, não é?
Ele riu com suavidade. Eu não fazia ideia de que espécie de clima era aquele em que nos enfiamos: e eu nem estava falando da chuva. Thomas estava sorridente, galante e parecia bastante à vontade, de um jeito impensável. Enquanto eu nutria vergonha e desconforto, por ainda estar ao seu lado até então, o homem parecia apenas satisfeito com isso.
— É para situações assim que existe o delivery.
— Você pediu café pelo Ifood? — apontei para a garrafa térmica, fazendo uma careta.
— Não, ele veio da cafeteira, que por acaso sei usar sozinho.
— Impressionante — desdenhei e ele fingiu estar ofendido, mas riu logo depois. — E os ovos mexidos? — analisei o prato todo articulado, como se não tratasse simplesmente de... ovos mexidos, oras!
Thomas deu de ombros.
— Os meus que não são! — e riu alto, intensificando quando lhe ofereci um pequeno tapa na cabeça. — Vieram no combo do delivery. Bruno, sei que está faminto, então se sente e pare de questionar — ele não pareceu chateado ao dizer aquilo, muito pelo contrário, divertia-se horrores às minhas custas.
Nós nos sentamos à mesa e começamos a nos servir. Já me senti melhor depois de alguns goles do café. Havia tanta comida disponível que me perguntei se aquela era uma manhã normal na vida de Thomas Orsini. Sem querer fazer perguntas a respeito, apenas me servi e passei a comer em silêncio, ainda que muitos questionamentos se formassem em minha cabeça o tempo todo.
Quem era Bia?
Quantos caras já vieram àquele apartamento?
Quando retornaríamos?
— Eu... — comecei, mas ele falou junto comigo:
— Tenho...
Nós rimos e Thomas acenou para que eu prosseguisse.
— Pode falar. Era bobagem — expliquei, mesmo que no fundo não fosse. Comentaria sobre o fato de ele ter adiado a minha reunião e ter, mais uma vez, mexido os pauzinhos para me beneficiar sem me perguntar o que eu achava daquilo.
— Bom... Eu ia dizer que tenho duas notícias boas e duas ruins para te dar.
— Hum... — terminei de engolir um pedaço de torrada multigrãos, com geleia e queijo. Havia tantas coisas na mesa que eu já estava misturando doce com salgado. — Desembucha.
Fiquei olhando atentamente, esperando a bomba explodir. Pensei em um monte de besteira em tão pouco que até me deu dor de cabeça. Algo me dizia que as notícias boas eram ruins e as ruins, péssimas.
— Por qual começo?
— Uma boa e uma ruim, depois uma boa e uma ruim de novo — defini logo, para que ele não se demorasse mais.
— Certo. Mas... Hum... Acho que vou ter que começar com uma ruim, senão vai ser difícil fazer sentido.
— Fala de uma vez, Thomas. Você está me matando.
— Ok — clareou a garganta e se aprumou teatralmente. — A tempestade que caiu nessa madrugada, e que, como você pode ver, ainda não cessou — apontou para a porta de vidro fechada da varanda —, fez com que acontecessem alguns deslizamentos que, por sua vez, fecharam a principal via da cidade.
Meus olhos se arregalaram diante da notícia.
— Está de brincadeira comigo... — balancei a cabeça em negativa, sem acreditar no imprevisto.
— Não, é sério. Recebi a notícia cedo e desmarquei todas as reuniões que eu tinha na InterOrsini no dia de hoje.
— É mentira, né? — questionei em tom mais aflorado, indignado. — Diz que isso não é um plano maluco seu para me deixar preso com você o dia todo!
Thomas fez uma careta grotesca, realmente ofendido. Pegou o seu celular e, digitando ferozmente, ainda sem me responder, mostrou-me a tela de seu aparelho caro, com a notícia dos deslizamentos e do estado de calamidade em que a cidade se enfiou em questão de horas de fortes chuvas.
Observei quando ele deixou o celular ao lado do meu prato, com a página aberta só para me confrontar, e pisquei muitas vezes, atônita.
— Puta que pariu.
— Se quiser posso ligar a TV também. Não sei que tipo de pessoa você acha que sou, mas jamais inventaria situações que te obrigassem a qualquer coisa.
Prendi os lábios com força.
— Sei.
A provocação foi respondida com um resmungo irritado.
— A boa notícia era que, sem poder deixar a cidade, ganhamos um dia de folga e podíamos ficar aqui, mas pelo visto essa notícia não é boa pra você.
— Thomas...
— Tudo bem, Bruno — falou entre dentes, visivelmente possesso. — Vou pedir ao Lineu para que te leve a um hotel aqui perto, onde possa esperar a situação ser resolvida até que seja seguro voltar pra casa.
— Não precisa disso — cortei-o, mas ele prosseguiu, feroz:
— Não vou impor a minha companhia para quem claramente não me quer por perto. — Abri a boca, a fim de tentar me explicar, mas ele estava meio descontrolado. — Sabia que tenho mais o que fazer? Podia me enfiar em algum trabalho pelo notebook, mas não... — balançou a cabeça em pleno nervosismo. — Sabia que há um monte de cara querendo estar no seu lugar?
Parei com a boca aberta, daquela vez ofendido num nível estratosférico. Tão logo percebeu a merda que falou, e que me deixou num estado de putice tão grande que sequer me movi, ele finalmente se acalmou e murmurou:
— Desculpa. Mas no fundo é tudo verdade — soltou o ar com força. — Assim como também é verdade que, de todos os homens do mundo, eu queria ficar com você, e de todos os afazeres que pudesse arranjar no dia de hoje, estava disposto a abrir mão para estar contigo.
— E eu devo me sentir muito honrado por ter a sua digníssima atenção, não é, ó, ser supremo? — o questionamento deveria sair de forma arrogante e desdenhosa, mas minha voz era apenas um sopro entristecido.
— Esquece, Bruno — ele disse com seriedade. A mandíbula presa só o deixava mais belo e atraente, porém tentei parar de pensar em besteira num momento tão tenso. — Termine de comer e vista suas roupas. Lineu te levará ao hotel e, depois, quando der, para casa.
Ele se levantou da cadeira e eu me levantei junto. Todo o meu corpo tremia de raiva, medo e de algo ruim, que me fazia ter uma tremenda vontade de chorar, a qual segurava ao máximo.
— Tudo isso só prova o meu ponto — falei, porque era aquilo ou morrer entalada com as palavras. — Você não passa de um metidinho que se acha a última bolacha do pacote.
— Eu não vou me justificar pra você — balançou a cabeça, passando a mão pelos cabelos macios. — O que pensa ao meu respeito não muda quem sou.
— Certo — emendei, aquiescendo. — Fui injusto ao acusá-lo de planejar um modo ridículo de me segurar aqui, por isso, e apenas por isso, peço desculpas.
Ele assentiu, impaciente, e ficou calado e imóvel, como se não fizesse a menor ideia de como proceder. Vi a confusão nítida em seus olhos, bem como a raiva e o ressentimento. Deveria ser mesmo difícil não ser o fodão da relação uma vez na vida.
— Quais eram as outras notícias? — questionei, amenalo, porque a curiosidade veio antes da minha capacidade de correr para me vestir e dar o fora dali.
— Não importam mais.
Assenti novamente. Entretanto, puxei ar para os pulmões e decidi agir de uma forma mais correta:
— Odeio meias palavras e mal-entendidos — pausei, tentando tomar coragem para um encerramento menos desastroso e mais maduro. — O problema nunca foi a sua companhia, Thomas Orsini.
— E qual é o grande problema, então, Bruno Mendes?
— Eu não quero me machucar — confessei, honesto, me desdobrando em milhões para manter meus olhos nos seus. Não agiria feito um idiota que se esconde pelos cantos. Ninguém aguenta mais gente que reprime o que sente e nunca chega a um nível real de sinceridade e transparência. — Prefiro não ficar com você a ficar e, de repente, me envolver mais do que posso suportar. Conheço os meus limites e pretendo respeitá-los, pelo meu bem. Pode parecer covardia, mas é apenas amor-próprio.
Thomas Orsini não disse nada. Como já tinha falado tudo o que deveria, dei as costas e me perdi na área de serviço. A minha roupa, assim como a calcinha, estava pendurado em um varal super hight tech.
Eu me vesti e respirei fundo, pronto para dar adeus àquela merda toda.
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“NINGUÉM AGUENTA MAIS AGIR POR CARÊNCIA”
Eu me apoiei com os cotovelos na máquina de lavar e me permiti ficar, covardemente, por um tempo. Repensava as palavras ditas e tentava encontrar lógica ao que eu estava sentindo diante da ideia de deixá-lo.
O que falei para Thomas começou a soar um pouco fora de tom, porque, querendo ou não, acabei admitindo uma possível chance de realmente gostar dele, e não prosseguir seria evitar essa suposta paixão iminente. Sendo que antes eu achava que não existia a menor possibilidade de algo assim acontecer.
Entrei em um confuso paradoxo emocional e resolvi pensar melhor antes de encará-lo de novo, ainda que fosse apenas para me despedir.
— Já que não gosta de meias palavras ou de mal-entendidos, acho que também preciso me expressar — sua voz surgiu, toda séria, atrás de mim. Quando me virei, pulando de surpresa, tive o vislumbre de sua figura parada à porta, com os braços cruzados em frente ao tronco. O seu olhar estava no modo hipnotizante. — Eu nunca me apaixonei de verdade e nem nunca tive interesse em namorar ninguém.
Ao ouvir suas palavras, ergui as sobrancelhas e fiz uma careta confusa, para logo em seguida simplesmente rir. Não consegui segurar a gargalhada e não me orgulho disso. Thomas ficou apenas me olhando, parecendo aborrecido, e eu, ainda que tentasse me controlar, demorei certo tempo para voltar ao normal.
Ainda ofegante, falei:
— Ai, ai... Me desculpa. Alguma parte meio maluca do meu cérebro
achou isso engraçado. — Ele se manteve sério, talvez analisando se eu podia ser considerada alguém sã. — Sei que não é, eu... Só não consigo imaginar como alguém com vinte e nove anos nunca se apaixonou ou vivenciou um relacionamento. — Thomas continuou mudo. — Bom, continue. Perdão. Às vezes caio na risada fora de hora.
Olhei-o com certo constrangimento e percebi quando sua expressão anuviou. Um meio sorriso brotou de seus lábios, deixando-me um tanto aliviada por ele não me odiar completamente.
— Eu gosto da sua espontaneidade. Gosto do fato de você ser real e profundo, de falar o que pensa sem se preocupar com as aparências.
— Qual é o seu ponto, Thomas? — perguntei, para mudar de assunto. Não queria que eu fosse o foco daquela conversa esquisita, realizada no meio da espaçosa área de serviço.
— Eu tive todos homens que quis e, sim, tive alguns relacionamentos curtos, a maioria porque eles queriam e exigiam que eu os assumisse. A verdade é que não me senti conectado o suficiente com nenhum deles.
O meu corpo sofreu certo abalo, mas fiz o possível para manter a cabeça erguida.
— E...? — meneei a cabeça, incitando-o a prosseguir porque eu ainda não tinha entendido onde ele estava querendo chegar com aquela história inimaginável.
— Eu sou muito fechado, é difícil deixar que alguém... entre de verdade. Sempre penso que serei usado, fico desconfiado e acaba que nunca dá certo. Ontem você me fez entender que eu estava prestes a fazer a mesma coisa de novo, como um ciclo que não tem fim nunca.
— Entendo — murmurei, encarando-o com mais precisão. Ele parecia muito sincero e nem um pouco contente em se expor daquela forma para uma desconhecida.
— E isso significa que também sinto medo — falou, desviando o rosto em desconcerto. Deu para notar que se esforçou para me olhar de novo. Thomas odiava se deixar vulnerável, mas eu podia entender aquele sentimento, pois era devidamente compartilhado por mim. — Na verdade eu estou apavorado.
Pisquei os olhos em sua direção, mantendo-me calada porque não sabia o que dizer. Então, ele prosseguiu:
— Pela primeira vez não sei o que fazer e tudo o que faço parece
inútil.
— Thomas... — fechei os olhos, respirei fundo e os reabri. — Deixa disso. Eu não sou o cu milagroso que vai te fazer largar a vida de relações superficiais. Isso é algo que precisa ser trabalhado dentro de você. Talvez só precise sair da sua bolha e conhecer mais gente, outras realidades, homens mais reais.
Ele aquiesceu devagar, ainda muito sério.
— Eu realmente não sei se você é a pessoa que sempre procurei, Bruno. O que esperei que fosse mexer comigo como nenhum outro. Está cedo demais pra essas coisas — Thomas me pareceu franco ao admitir. — Mas bastou um beijo e eu perdi o juízo, então não poupei esforços para descobrir se a conexão era sincera.
Neguei com a cabeça, sorrindo porque aquilo tudo parecia muito surreal, porém o meu corpo inteiro tremia e bem que tentei culpar o frio, por isso me abracei e continuei negando, incapaz de conceber os rumos da conversa. Qual é? Estávamos falando de uma possibilidade concreta de relacionamento, não somente de uma foda, como achei, desde o princípio, que seria.
Thomas puxou o terno dele do varal e veio me cobrir assim que percebeu o tremular frenético que atravessava os meus nervos. Aceitei o gesto de bom grado, vestindo a peça. Ele não se afastou depois de me ajudar; manteve-se perigosamente próximo.
— Eu entendi tudo errado? — questionou, por fim, com a voz baixa. — Achei que não tivesse sido o único a sentir essa conexão diferente.
— Isso é química, Thomas, e de fato a gente tem. Muita — respondi, convicto, olhando além do seu rosto para não me perder naqueles olhos brilhantes tão fixos nos meus. — Mas essa coisa de corrente elétrica inexplicável e amor à primeira vista não existe. É bobagem fantasiar um acontecimento sobrenatural e usar isso como justificativa para alicerçar um relacionamento.
Novamente, ele assentiu.
— O que sei é que me sinto à vontade contigo. E que não quero que vá embora. — Fiz uma careta para ele, que arquejou diante da minha expressão controversa. — Não sei o que fazer ou o que falar para que mude de ideia e isso está me enlouquecendo.
— Vamos deixar as coisas como estão — defini, saindo de perto dele antes de ceder à vontade de me atracar ao seu pescoço. — Você vai superar essa parada de conexão logo, logo. Talvez seja alguma carência... Ou solidão. A solidão mexe com a gente de um jeito muito doido.
— Bruno... — Thomas fez uma careta linda, passando as mãos pelos cabelos nervosamente. — Você tem outra pessoa? É isso? Está comprometido?
Arregalei os olhos, surpreso e ofendido.
— Não! Claro que não, jamais trairia ninguém, não sou esse tipo de pessoa!
— Só quero entender por que não dar uma chance. Estou aqui sem resistências — abriu os braços —, disposto a deixar que entre na minha vida como jamais permiti que outra pessoa fizesse, mesmo estando apavorado.
Abri a boca, estupefato, e então neguei com a cabeça. Tudo aquilo me soava como uma espécie de manipulação desconexa. Thomas Orsini falava coisas bonitinhas para conquistar o que tanto queria: que eu ficasse. Ele mesmo já tinha dito que não desistia fácil, que era persistente.
— É tão difícil assim compreender que não quero nada contigo? — soltei rispidamente, no calor da irritação diante das minhas conclusões.
Nenhuma pessoa precisa estar com alguém ou dar milhões de justificativas para fazer um cara respeitar suas negativas. O não deveria bastar. A sociedade precisava normalizar o NÃO QUERO com urgência. Afinal, eu tinha os meus motivos para não cair naquela ladainha.
— Pare de insistir, Thomas, só está piorando as coisas — completei, chateado e com uma terrível vontade de chorar. Eu devia ser mais forte que aquilo.
— Tudo bem. Desculpa. Vou ligar para o Lineu — falou de forma mecânica, como se a alma tivesse sido removida do corpo, e me deixou sozinho na área de serviço.
Soltei uma arfada carregada de angústia. Droga. Droga, droga...
Enxuguei algumas lágrimas, que escorreram sabe-se lá por que e eu nem queria saber. Ajeitei os cabelos e endireitei os ombros. Passei pela cozinha e, na tentativa de enrolar um pouco mais, bebi um copo d’água bem devagar. Depois, ignorei o Thomas ao telefone na varanda, calcei os meus sapatos.
Olhei para mesa, sentindo verdadeira pena de deixar tanta comida boa para trás. Lembrei as novelas em que o povo rico sempre se sentava à mesa farta e saíam depois de uns diálogos rápidos, sem comer nada. Lamentável.
Um pequeno toque ressoou e percebi que viera do celular do Thomas, que ainda repousava ao lado do que fora o meu prato. Olhei para trás, constatando que ele usava o telefone fixo e se mantinha de costas para a sala.
Juro que tentei não olhar, mas outra mensagem surgiu na tela e, disfarçadamente, comecei a ler:
Deborah Orsini:
Você vai vir hoje, né?
A chuva não pode nos impedir!
Meu coração congelou, sofreu um enorme abalo, diante do nome feminino, porém busquei alívio no sobrenome: só podia ser alguém da família e não um contatinho aleatório marcando rolê.
Outras mensagens piscaram na tela, seguidamente:
Deborah Orsini:
Ele vem com você?
Diz que sim!
Quero conhecer o cara que finalmente te fez pirar!
Recuei um passo, atônito, levando uma mão à boca. O que diabos estava acontecendo? Thomas falara sobre mim para alguém da família? Por quê? Pra quê?
— Meu Deus do céu... — murmurei, angustiado, tentando manter o coração no lugar correto, pois batia tão forte que a impressão que dava era a de que sairia a qualquer momento pela minha boca.
Ele estava falando sério.
Acho que uma parte de mim não quis acreditar que ele estivesse, de fato, falando sério. Qual era o meu problema, porra?
— Lineu chega dentro de dez minutos. Vou me trocar e levá-lo ao estacionamento do prédio. — Virei de frente para ele e o olhei como se o homem fosse um fantasma. — Você está bem?
— S-Sim.
Thomas apenas seguiu para o quarto e eu fiquei à espera de mais mensagens, no entanto, o celular não acendeu novamente. Ele voltou pouco tempo depois, usando jeans escuros, camisa verde e um casaco preto de moletom. Eu nunca o tinha visto em um visual mais esportivo, porém algo me dizia que a surpresa ao olhá-lo não tinha nada a ver com o que vestia.
— Vamos? — Dava para ver o tamanho de seu descontentamento estampado no semblante agravado.
Assenti como um animal acuado que não sabe se sai correndo ou se aceita o próprio fim.
Saímos do apartamento e entramos, lado a lado, no elevador. Tentei não sentir o seu perfume, mas claro que não podia ficar sem respirar. Ele me olhava, conseguia sentir, por isso ergui a cabeça e passei a observá-lo de volta, utilizando-me da mesma intensidade que acendia os seus olhos muito claros.
Não dissemos nada.
Ele não desviou o rosto.
Eu também não.
Ficamos simplesmente nos encarando da forma mais constrangedora possível. Eu queria entendê-lo. Queria saber o que se passava em sua cabeça e por que me mencionara, um homem que sequer conhecia e que tinha descoberto a existência há poucos dias, para alguém da família. E pelo visto confessado que havia sido remexido por dentro de uma maneira diferenciada. Será que Thomas Orsini era doido?
Não descartava a possibilidade. Porque as coisas que me falou não podiam ser consideradas normais. Contudo, enquanto analisava aqueles olhos hipnotizantes fixos em mim, ele me parecia alguém que... me trazia certa calma.
Podia parecer loucura, e era, mas a troca de olhares foi ficando menos desconfortável com o passar do tempo.
— Não vai me contar quais eram as outras notícias? — quebrei o silêncio com a voz murmurante, culpando o trajeto do elevador pelo rebuliço que comecei a sentir no estômago.
— Só tenho uma muito ruim acontecendo agora — ele disse, apenas, e depois voltou a se manter em profundo silêncio.
Ouvi um apito e as portas se abriram, então tomei a frente e saí de uma vez, ainda sem compreender o que de fato aconteceu naquele elevador. O seu olhar me sugou todas as energias, mas, ao mesmo tempo, encheu-me de uma coisa nova e inexplicável. Algo que não era ruim.
Um carro preto já estava estacionado adiante e o Seu Lineu aguardava, com as mãos nos bolsos e a porta traseira já aberta, pronta para me receber.
Parei a alguns metros do veículo e me virei para trás, em busca de Thomas Orsini. Achei que ele estivesse às minhas costas, porém estacionou perto da porta do elevador e lá ficou. Ao ver que parei, ele se aproximou a passos largos, parecendo bastante ansioso. O coitado jurava que eu desistiria de partir.
A esperança estampada em seu semblante me comoveu profundamente.
— Eu ainda tenho o meu emprego? — perguntei, trêmulo, mas só porque precisava falar alguma coisa e não sabia o quê. Tão logo as palavras saíram de minha boca, me arrependi. Não era o momento para aquilo.
Thomas prendeu os lábios com força.
— Claro — definiu rigidamente.
— Bom... Desculpa por... Hum... ter te... magoado. — Eu não sabia bem se deveria me desculpar por não fazer o que ele queria. Talvez eu devesse aquele pedido a mim mesmo, por estar agindo de forma contrária ao desejo do meu corpo. Ou talvez devesse apenas me sentir grato por me manter na racionalidade em um instante tão complicado. — A gente se vê por aí.
Ele assentiu.
Coloquei uma mão para frente, disposto a um cumprimento formal, mas logo percebi que a ideia foi idiota. Thomas ficou apenas olhando para a mão erguida, até que a abaixei.
— T-Tchau... F-Foi... bom. É, foi bom. — Eu me sentia tão patético. Deveria ter entrado no carro sem olhar para trás. Melhor do que tentar uma despedida feiosa como aquela.
Thomas deu um passo à frente e ergueu uma mão para tocar o meu rosto.
— Eu não volto atrás, Bruno — murmurou. — Se você ir será pra valer. Isso aqui não é um jogo. Não vou te procurar nunca mais.
Ele soou tão sério e frio que tentei me afastar, pronto para rebater, mas então o homem se curvou e grudou os nossos lábios com calma. Eu já não estava entendendo mais nada. Apesar de saber que eu havia atingido o meu intento, ou seja, sair do cerco fechado do meu chefe definitivamente, ainda assim correspondi àquele beijo derradeiro, lento e excitante.
A sua língua se encaixou entre os meus lábios e os movimentos pareceram ensaiados de tão perfeitos. Quando acabou, senti o mundo girar e me perguntei de que maneira não tinha reparado antes em como éramos tão bons naquilo. Quer dizer, eu sabia bem, só não imaginava que era tanto.
Por isso que eu precisava me afastar rápido. Não haveria saídas para mim, caso ficasse.
— Adeus, Thomas Orsini — sussurrei e, delicadamente, fui me afastando e logo virando as costas. Não queria correr o risco de olhá-lo e sequer precisei avisar que aquilo, de fato, não era um jogo. O meu adeus falou por si só.
Sentia que um leve sopro poderia ser o bastante para me fazer ficar. Mal encarei o Seu Lineu ao saudá-lo, apenas entrei no veículo e ele fechou a porta em seguida.
Mantive a cabeça abaixada e me abracei, exausto, só então reparando que eu havia ficado com o terno de Thomas e ele, certamente, deixou que isso acontecesse. Aquela peça ao meu redor explicava o perfume constante, enlouquecendo-me.
Não ousei olhar para trás.
Chegava um momento da nossa vida em que não dava mais pra ficar fantasiando, sonhando acordado com caras travestidos de solução para todos os nossos problemas. A maioria deles só era a fonte.
Mas, sim, eu tinha um problema sério e estava partindo, sobretudo, por causa disso. Porque levei um tapa de realidade na cara. Precisava entender melhor por que acreditava piamente que Thomas Orsini não podia ter falado sério ao dizer que eu realmente o havia tocado.
E de quebra verificaria se o meu NÃO, para ele, possuía algum valor, ainda que depois eu apenas quebrasse a cara.
De qualquer forma, há um tempo deixei de acreditar em conto de fadas e em paixões inevitáveis. O desejo se mostrou ser algo substituível e direcionável. Além do mais, o que vinha por trás dele era um monte de complicação exaustiva. Eu já tinha me acostumado a esquecer pessoas que achei serem inesquecíveis. Lidei, ao longo da vida, com o fato de nada ser eterno, com todas as finitudes.
Sendo assim, quebrar a cara já não significava muita coisa.
Talvez Thomas não soubesse, mas eu sabia muito bem que
relacionamento era mais que dinheiro, sexo ou rostinho bonito. Ao se deparar com alguém de verdade, distante de sua bolha, ele levou um choque. Só que eu nem sabia se queria ser de verdade. A realidade dói. E já tinha doído tanto em mim que, no fim das contas, restara-me apenas uma carcaça racional.
O que costumava existir dentro dela foi deixado pelo caminho; cada ilusão em uma mão errada diferente.