CAPÍTULO NOVE
“NINGUÉM AGUENTA MAIS BEBUNS”
Eu estava meio demente enquanto entrava na sala de embarque, à procura do portão onde o avião me aguardava. Nem acreditava que já estava ali depois de tanto perrengue: surtar, fazer minha mãe compreender que eu viajaria depressa, surtar de novo, fazer as malas, descobrir que não tinha quinze cuecas boas, surtar mais uma vez, acalmar dona Délia para que não surtasse, reunir o material que precisaria levar, surtar, surtar e surtar.
Estava tão acabado que nem me importei com o mico que mamãe me fez passar ao me deixar na porta da alfândega. A bichinha chorou e fez tantas recomendações, aos prantos, que todo mundo dos voos internacionais devia estar com dó de mim naquele instante. Mas a verdadeira pena que eu nutria era pelo simples fato de ter que suportar horas dentro de um avião.
Detestava voar. Mesmo. Talvez por isso estivesse me sentindo aéreo, nervoso, prestes a surtar pela milionésima vez.
Atravessei um monte de portões até encontrar o meu, e logo vi que havia uma lanchonete por perto. Ótimo sinal. Estava na hora de ir atrás do meu querido remedinho. Fiquei olhando a lista de poucas opções, perguntando-me se valia a pena dar tanto dinheiro numa garrafinha tão pequena de uísque. Mas, no fim das contas, não era eu que pagaria. O cartão corporativo seria usado do jeito que quisesse e foda-se o senhor Thomas, que me obrigou a voar sem que me preparasse direito PELA SEGUNDA VEZ!
Sendo assim, foi sem piedade que fiz o meu pedido. A funcionária da lanchonete me olhou esquisito, afinal, mal eram nove da manhã e eu já estava dando um de bebum. Porém, sem tecer qualquer comentário, entregou-me o líquido dos deuses que me ajudaria a lidar com a situação de uma forma mais leve.
Eu me sentei à uma mesa perto da lanchonete, onde algumas pessoas lanchavam e outras aproveitavam para apoiar seus notebooks. Abri o frasco e tomei um gole bem generoso. A bebida desceu queimando, mexendo com todo o meu organismo instantaneamente. Precisava que aquela merda fizesse efeito logo, por isso dei mais outros três goles sem nem pestanejar.
Ouvi um barulho de alerta nos alto-falantes e meu coração se sobressaltou, mas era só o funcionário de outra companhia aérea alertando sobre o início do embarque. Faltava cerca de meia hora para o meu ainda. Tempo o suficiente para me embebedar e parar de sentir vontade de sair correndo, gritando feito um louco, berrando que era muito novo para morrer de queda de avião.
Só quem possuía essa fobia que sabia o desespero que era. Costumava falar que eu não tinha medo de voar, tinha era muita coragem, porque o que enfrentava dentro de mim para me colocar ali dentro não era brincadeira, não.
Como sempre, as pessoas ao meu redor pareciam despreocupadas, felizes ou entediadas, agindo como se tudo fosse lindo, banal. Sentia muita inveja daquele povo. Não entrava na minha cabeça que um troço tão grande e pesado pudesse simplesmente atravessar os céus. Sim, era física pura, mas... Enfim, não era um medo muito racional.
Dei mais alguns goles e, quando dei por mim, a garrafa diminuta fora esvaziada. Meio cambaleante, levantei-me e comprei outra. A funcionária, daquela vez, demorou-se um pouco mais em meu semblante e me limitei a sorrir como se eu não fosse nada anormal.
Voltei à minha mesa, abri o frasco e tomei outro gole.
— Não acha que está exagerando? — Quase larguei a bebida sobre a mesa quando ouvi aquela voz tão reconhecível. No pulo, virei-me de lado e vi que o próprio todo-poderoso estava lá, sentado da mesinha ao lado, pelo visto me acompanhando desde o princípio, meio escondido por trás do seu macbook de aparência cara.
Olhei ao redor, achando que estava vendo coisas, mas me deparei com os dois armários enormes de pé, um no canto, perto dos banheiros, e o outro mais atrás, observando a movimentação que acontecia ao nosso redor. Então percebi que não era miragem. Eu podia até sonhar acordado com Thomas Orsini, mas não com seus guarda-costas.
Abri a boca para perguntar há quanto tempo estava ali, mas então me lembrei de que ele era o culpado pela minha agonia e também que tinha estendido o vácuo até aquele momento. Por isso ele não merecia a minha resposta e muito menos minha atenção.
Desviei o rosto, ignorando-o totalmente, e dei mais um gole no uísque. Eu já estava me sentindo mais aquecido. Na verdade meu rosto estava em brasas e meus braços começavam a adormecer.
— Não deve ser legal beber tão cedo — ele continuou e fiz cara de paisagem. A vontade que deu foi de dizer que odiava, com todas as forças, gente que era fiscal de prato e de copo dos outros. Mas me mantive controlado, acho que devido à sensação que a bebida me proporcionava.
Senti o seu cheiro primeiro. Pairou ao meu entorno daquele jeito sufocante, roubando-me o juízo de uma só vez. No instante seguinte percebi que Thomas estava na frente da minha mesa. Ficou me encarando enquanto eu continuava fazendo a egípcia.
— É assim? Vai me ignorar?
Soltei um riso debochado.
— Quem com vácuo fere com vácuo será ferido, querido — falei, mas não senti direito a minha boca. A voz saiu bem esquisita, como se não me pertencesse de verdade. Bom, acho que o uísque, apesar de caro, era bom em sua proposta de entorpecer os sentidos.
Até parei de ficar nervoso.
— Vácuo? Quando te deixei no vácuo? — Thomas ergueu a
sobrancelha. Não parecia nada contente. — O que me lembro da última vez que te vi é que foi bem ao contrário disso.
— Olha, Thomas, eu estou bêbado, mas não o bastante para te mandar à merda — soltei um risinho e ele continuou sério, encarando-me com visível irritação. — Portanto é melhor fingir que não estou aqui.
Mas Thomas não quis saber da minha provocação. Em vez de seguir para o raio que o parta, trouxe seu macbook para a mesa e se sentou ao meu lado. Voltei a ignorar a criatura e fiz o movimento de dar outro gole, mas o imbecil interceptou a garrafa no meio do caminho, fechou-a e a colocou dentro do bolso frontal de seu terno.
Quem usa terno domingo de manhã? Pelo amor de Deus.
Revirei os olhos, mas não objetei porque, no fundo, era melhor mesmo que eu parasse de beber, mas Thomas não precisava saber que concordava com ele. Até porque a decisão de parar tinha que vir de mim, não da sua mania cabulosa de controlar a porra DA MINHA VIDA!
Soltei mais um riso desdenhoso.
— Do que está rindo? — ele questionou, contrariado.
— De você. Você é uma enorme piada, Thomas Orsini.
— O que foi que te fiz dessa vez? — resmungou, fechando o macbook e o colocando dentro de uma pasta preta bem elegante. Continuei rindo e o olhando com ar divertido. O rosto dele me fazia graça por um motivo totalmente desconhecido pelo meu cérebro. — Não saia daqui, vou comprar um café forte pra você.
Então ele se levantou e, olhando-me de dois em dois segundos, conferindo se me manteria no lugar, foi comprar o tal café. Poucos minutos depois voltou com dois copos térmicos grandes em mãos, colocando um deles na minha frente.
— Tome, por favor.
Encarei-o. Depois, soltei um chiado, querendo controlar o riso, mas de nada adiantou.
— Ai, ai, meu Deus. Você é uma comédia. Sabe, às vezes eu não consigo te entender. — Peguei o copo de isopor e dei um gole porque não deu para resistir àquele cheiro. — É fissurado em controlar a vida dos outros. Olha, posso ter todos os defeitos do mundo, sou um bebum desgraçado no meio de um aeroporto, mas pelo menos não sou um doido varrido que dá vácuo nos outros e despacha o funcionário para fora do país só porque não aguentou um segundo de concorrência.
Ele prendeu os lábios com força.
— Eu não te dei vácuo, Bruno.
— Mas não aguentou um segundo de concorrência, não é? — argumentei, sorrindo de lado e inclinando a cabeça na sua direção. Ele ficou calado, com a mandíbula presa, e a sua expressão disse tudo. — Eu sabia. Você é um manipulador.
— A sua viagem já estava marcada e você sabia disso, Bruno — finalmente ele disse, com os olhos fixos em mim e uma seriedade de congelar os nervos. — Martha Simas vinha me pedindo autorização há um tempo, porém estive bastante ocupado e, para que ela parasse de me encher o saco, falei que resolveria tudo pessoalmente. Eu me atrasei e depois descobri que precisávamos estar em Los Angeles a partir de segunda. Não teve nada a ver com seu namoradinho chifrudo.
— Ele não é meu namorado — objetei, desviando a concentração para o café em minhas mãos.
Thomas deu de ombros.
— Se quer mesmo saber se senti ciúmes, eu falo agora a realidade: claro que senti. — Ergui a cabeça para olhá-lo, surpresa com a confissão. — Aliás, não foi só isso. Senti raiva, fiquei indignado, puto, possesso. E depois que te comi no banheiro achei que aliviaria, mas não resolveu. Ainda não quero nem pensar naquele sujeito te olhando e te tocando, queria não ter visto aquela porra de cena.
Continuei analisando a profundeza de seus olhos. Comecei a balançar a cabeça em negativa devagar, depois fui aumentando o ritmo.
— Sabe o que tive que escutar dele aquela noite? — soltei, porque estava entalado com aquilo e nem sabia se era o momento de mencionar o que vinha me perturbando há dias. Mas a bebida ajuda qualquer ser humano a dizer a maior das tolices sem nem perceber. — Quando mencionei que havia sido promovido Márcio logo perguntou com quem eu tinha dormido pra conseguir essa proeza.
Thomas bufou, indignado.
— Quem é esse cara?
— Um pau amigo aleatório que não pretendo encontrar nunca mais.
O homem resmungou. A contrariedade estava evidente no rosto desenhado, bem como o ciúme.
— Otário.
— Não, Thomas, o otário sou eu — ri, mas sem sentir muita graça. — Sempre achei ridículo as pessoas toda vez precisarem provar seu valor e ficar se reafirmando o tempo todo, para quando conseguirem alguma coisa legal isso logo ser associado a outros fatores, principalmente a outra pessoa.
Mas sabe o que é pior? É que no meu caso o fato é esse.
— Você não devia dar ouvidos a esse infeliz.
— A ele e a quem mais? Não acha que os outros funcionários consideraram estranha a promoção? Às vezes noto os olhares. Estão sempre ali, implícitos, mas estão lá.
— Você é competente, Bruno.
— Sim, sim, não há dúvida. Eu sou competente. — Olhei-o de forma vidrada, ainda sob o efeito do álcool. — Mas só estou aqui, embarcando para Los Angeles, porque o chefe me comeu — apontei para o portão de embarque. Depois, peguei o cartão do meu bolso e o apontei em sua direção. — Só tenho um cartão corporativo com saldo de dez mil dólares porque você me comeu. — Soltei outra risada. — Dez mil dólares. Que porra é essa, Thomas? Aliás, você está pagando o uísque.
Ele segurou a minha mão sobre a mesa. O gesto simples e delicado me fez paralisar e encará-lo. O meu coração passou a bater com toda força e a respiração ficou errática. Sim, com um simples toque. O homem conseguiu tudo aquilo apenas ao encostar levemente a sua pele na minha. Filho de uma égua.
— Acha que não merece tudo isso? Depois, quando você estiver sóbrio, eu te mostro em números muito claros o retorno que suas últimas ideias darão para a InterOrsini — ele disse, passando a alisar o polegar sobre meus dedos, ternamente. — O que você recebe como funcionário é pouco diante do montante que posso lucrar com seu trabalho.
Soltei um resmungo, bufando. Pensei em me distanciar dele, mas não consegui. Sua pequena carícia estava boa demais, bem-vinda demais.
— Desde os dez anos meu pai me prepara para comandar as empresas da família — ele começou em tom baixo. Aproximou-se um pouco mais e passou a me tocar com as duas mãos, acariciando-me como se fôssemos íntimos. — Foram muitos cursos, estudos, treinamentos, pressões... Desde cedo que mostro meu valor inúmeras vezes e tenho que me reafirmar o tempo todo. Não estou comparando nossas vidas, muito menos sua realidade como gay, sei que tive muitas oportunidades e condições que me fizeram chegar aqui. Mas eu trabalhei e trabalho pra caralho, Bruno. Faz cinco anos que não tiro férias. Não faço quase nada sem me dopar de ansiolítico. — Pisquei os olhos muitas vezes, mas ele mal piscava. Olhava-me fixamente e, em meu âmago, senti que Thomas jamais tinha falado algo da espécie para ninguém, a tirar pelo timbre baixo e pela expressão vulnerável. — Não vivi direito a adolescência e nem estou vivendo a adultez. Meu pai ainda acha que sou incapaz, despreparado. Tive que brigar pela InterOrsini e só a tirei do papel porque as empresas dele estavam gastando demais com publicidade. Basicamente, fiz uma empresa só para satisfazê-lo e hoje somos a melhor do Brasil. Ano retrasado conquistei o meu primeiro milhão, fruto direto do meu trabalho, sem nenhuma intervenção dele.
— Por que está me dizendo essas coisas?
— Porque você é o tipo de pessoa que só precisa de uma chance para ir além, bem como precisei — fez uma pequena pausa, observando meus lábios, depois voltou a me encarar nos olhos. — Eu te vejo em menos de um ano comandando todos os coordenadores. E em menos de cinco te vejo conquistando um cargo na direção. E aí você vai perceber que sua mente é valiosa demais para trabalhar pra mim, então vai pedir suas contas e abrir sua própria empresa. — Enquanto ele falava o meu queixo ia caindo gradativamente. — Não duvido nada de que a InterOrsini vá ficar para trás quando você voar, Bruno. Por isso vou te prender ao máximo na minha equipe.
— Como tem tanta certeza disso? — perguntei em um sussurro errático.
Ele sorriu.
— Porque você é foda.
Sorri de volta e acho que foi o primeiro sorriso que o ofereci genuinamente. Thomas ergueu uma mão para colocar uma mexa do meu cabelo atrás da orelha. Olhava-me com um encantamento tão grande que me senti bem. Eu me senti vivo, radiante, preparado para fazer tudo aquilo o que ele falou e muito mais.
— Nunca te fiz nenhum favor — prosseguiu, murmurante. — É você que está me fazendo. Eu só tento ser justo te oferecendo conforto, segurança e a atenção que merece. Infelizmente, só enxerguei essa joia rara naquela festa. — Tocou o meu ombro e foi descendo a mão pelo meu braço, deixando um rastro daquela eletricidade doida que eu achava não existir no planeta. — Mas felizmente te encontrei e, porra, eu quis matar aquele cara, sim. Se sou asqueroso, controlador e ciumento por causa disso, ok, admito, mas não muda as coisas.
— Quais... coisas? — sussurrei num sopro de voz.
— O fato de você não ser meu e eu querer tanto que fosse.
Nós nos encaramos, em silêncio, por muito tempo. Ainda tentava discernir se todo aquele papo fazia parte da minha embriaguez, mas me parecia algo sério e real. Portanto, precisava agir com cautela.
— Você me assusta, Thomas — admiti, balançando a cabeça positivamente. Soltei um suspiro enquanto ele ainda me acariciava. — Há coisas que você diz e faz que... — Fiz uma pausa e continuei o encarando. Ele parecia ansioso pelas minhas palavras. — Me deixam confuso.
— Eu sei — riu um pouco, meio sem graça, mas fiquei hipnotizado por aquele sorriso e tive que admitir a mim mesmo que não dava mais para fugir do que ele me fazia sentir, ainda que fossem sentimentos controversos.
— Também estou confuso e apavorado, mas fui sincero.
E parecia mesmo.
— Eu quero te fazer um pedido importante, Thomas — falei, tomando coragem. Os meus pensamentos estavam enroscados e parecia que aquele homem, sentado àquela mesa, na companhia aquele cara, não era eu.
Precisava me manter em ordem e equilibrado.
— O que você quiser, lindo — sussurrou, e um arrepio indiscreto cruzou meu corpo. Droga.
— Essa viagem é a trabalho. Eu quero levar a sério — defini, segurando a sua mão de volta, com firmeza e convicção. — Vou precisar estudar, me adaptar, fazer as coisas certas. Não quero errar. Preciso de espaço, tempo e que me respeite.
Thomas assentiu devagar, parecendo me compreender.
— Nada de sexo louco em banheiro público?
Nós dois rimos.
— Por favor, não. Essa viagem não é uma lua de mel.
— Mas depois podemos ter uma lua de mel?
Prendi meus lábios, encarando-o. Por fim, sorri. Chega de fugir daquela vontade doida de lambê-lo até onde o sol não batia.
— Quem sabe?
— Cacete, Bruno. Esse seu “quem sabe” me encheu de esperança. Bem melhor do que aquele adeus. Eu só espero que não seja fruto do uísque.
— Minha mente bêbada funciona bem melhor — sorrimos, mas completei seriamente em seguida: — No fundo eu queria ter ficado, Thomas, e acho que naquele banheiro do restaurante você entendeu isso. Só que estava com medo e inseguro. No fim das contas foi um adeus estúpido.
O homem assentiu devagar.
— E torturante. Foi uma tortura te ver indo embora e não poder te procurar.
— Mas foi menos dolorido que seu vácuo — ironizei, empurrando-o com um ombro.
— Eu não te dei vácuo, de onde tirou isso?
— Como não, senhor Orsini? Mandei mensagem no seu celular!
— No meu? — ele pegou o aparelho do bolso da calça social e ficou olhando as atualizações, até que soltou um arquejo e riu. — Droga, já sei o que foi. Você me bloqueou no número pessoal e usei outro chip pra falar contigo. Aquele eu nem trouxe, quase não uso.
— Tá de zoação, né?
— Não, eu juro — fez uma pequena brincadeira no meu nariz. — Que tal se me desbloquear?
— Não sei se você merece. Ainda estou puto por ter que voar sem me sentir preparado. De novo você me obrigando a sair do chão.
— Não se preocupe, não vamos morrer hoje — ele disse, todo galante, e seu sorriso soou tão genuíno que, pela primeira vez, Thomas me pareceu um menino.
— Como sabe? Não vai me dizer que você comprou a lista da morte!
— Não comprei, mas ela não é louca de te tirar de mim assim, depois de tantos perregues. Você não é nada fácil, sabia?
— Obrigado pelo elogio! — pisquei um olho, divertido, e ele riu do meu jeito meio doido.
— Então vá na paz, a gente tem muito o que viver ainda, Bu.
Sorri diante daquele apelido novo e me senti aquecido por dentro. Não sei se foi a bebida, o cheiro dele ou toda a situação louca que se desenrolava diante do portão de embarque, só sei que, de fato, me senti em paz.
***************
“NINGUÉM AGUENTA MAIS CLICHÊS”
Abri os olhos diante de um leve chacoalhar, ainda sem entender o que estava acontecendo ao meu redor. Limpei o filete de saliva que escorria no canto da boca e, só então, visualizei a janela arredondada que me fez dar de cara com o manto azul que cobria céu. Estávamos bem acima das nuvens. Meu coração começou a bater depressa, anunciando o pavor por estar a milhares de pés do chão, e me desvencilhei da coisa quente e aconchegante que estava me abraçando.
Olhei para o lado e o Thomas estava dormindo de um jeito sereno, mas numa posição meio estranha que com certeza lhe daria dor de coluna mais tarde. Na sua frente, a pequena mesa estava aberta e o macbook mostrava alguns gráficos de difícil compreensão. Instantaneamente fiquei com pena dele. Devia ter trabalhado um bocado comigo em sua cola, até se render ao cansaço.
Afastei a coberta, provavelmente oferecida pela companhia aérea, e peguei o meu celular para saber por quanto tempo dormi. Infelizmente, apenas três horas se passaram. Resmunguei, já impaciente. Eram dezesseis horas de voo ao total, com uma escala em Miami. Eu não sabia o que faria por tanto tempo trancado naquela joça enorme e pesada, que cortava os céus com suavidade, como se fosse bastante natural.
Tentei não ficar muito apreensivo e até que consegui ao observar o rosto bonito do Thomas. As sobrancelhas pretinhas combinavam com os cílios cheios. Sorri feito um bobo, relembrando suas palavras no aeroporto. Recordei-me também do modo carinhoso como ele me guiou até aquele assento e de como segurou a minha mão, entrelaçando nossos dedos, na decolagem. Eu nem imaginava que viajaríamos juntos, lado a lado, como se fôssemos um casal.
O seu cheiro bom estava por toda parte e isso me acalmava. Eu poderia estar bem mais nervoso e até dado chilique em vários momentos, mas simplesmente adormeci, o que quase nunca acontecia quando viajava de avião. Era sempre muito difícil de relaxar. Bem que justifiquei toda aquela relativa tranquilidade na bebida e nos calmantes que tinha tomado mais cedo, porém a verdade era que aquele homem teve muita culpa nisso tudo.
E eu ainda não sabia o que pensar a respeito das emoções que me causava.
Tomei a iniciativa de fechar o macbook e de guardá-lo em sua pasta preta. Fechei a mesinha, buscando mais espaço, e puxei aquele homão para mim. Ele veio, meio mole, mas acabou abrindo os olhos no susto, desorientado.
— O que está fazendo? — perguntou, rindo um pouco e objetando em vir, mas depois que percebeu que estava tudo bem, deixou-se apoiar. Sua cabeça terminou sobre meu peitoral e nos esgueiramos para o lado.
— Cuidando de você — respondi com carinho e beijei o topo de sua testa. Aninhei-o em um abraço por trás e comecei a alisar seus cabelos macios. Respirei profundamente o cheiro incrível que continuava emanando. Meu Deus do céu. Eu podia me viciar fácil.
Percebi que Thomas fez uma careta esquisita. Curvou-se um pouco, buscando o meu olhar, até que estacionou em meu rosto e ficou. A expressão estava confusa, contrariada, e seus olhos piscavam mais do que o normal. Ele abriu a boca linda, que eu estava louco para beijar, porém a fechou novamente.
— Pode falar, Thomas... — sorri. Ele parecia querer dizer algo importante, mas que não encontrava uma forma boa de fazer.
— Nada, é que... Não estou muito acostumado com isso.
Ele jogou as pernas compridas para a terceira cadeira, a que dava para o corredor e que estava vazia, sem qualquer outro passageiro. Mais adiante a fileira do meio estava lotada, bem como a do lado oposto. Seus seguranças ocupavam os assentos na frente e atrás da gente. O voo viera bem cheio, mas inacreditavelmente não tínhamos companhia. Foi então que pensei que talvez ele tivesse comprado uma passagem a mais só para garantir um pouco de privacidade.
— Com o quê? Ser cuidado e mimado? — o meu estômago se apertou ao perceber a careta que ele fez. Eu tinha na minha cabeça que aquele homem possuía uma vida fácil e que era mimado pra cacete, mas pelo visto o buraco era mais embaixo.
Será que lhe faltava carinho?
Ele assentiu, confirmando minhas suspeitas. Tomado pela empatia, beijei-o novamente na testa e intensifiquei as carícias. No fundo todo mundo era meio quebrado, não importavam as circunstâncias.
— A minha mãe é meio fria e meu pai, pior ainda — ele disse em tom baixo, como uma confissão de extremo sigilo. Novamente tive a sensação de que Thomas não conversava sobre aquele assunto com muita gente. — Tive que ser adulto muito cedo, mostrar que podia cuidar de mim e de todas as coisas.
— Você não precisa cuidar de tudo o tempo todo.
— Não? — riu, sem graça, de forma irônica. — Não estou sabendo disso.
— Ninguém precisa, eu acho. E todo mundo também merece ser cuidado.
Ele me olhou de esguelha, depois virou o rosto para frente. Eu o
ajudei a arrumar o cobertor sobre nós, assim ficamos mais quentinhos e aconchegantes.
— Você é carinhoso — concluiu, por fim. Não foi uma pergunta ou mesmo havia dúvida em seu timbre.
Sorri um pouco.
— Merda. Fui descoberto.
Ele riu de leve e o som que provocou foi capaz de fazer o meu coração dar um solavanco. Não teve nada a ver com o voo, com o medo, com nada... Foi exclusivamente seu riso que me fez perder as estribeiras por um mísero segundo.
A porcaria da minha guarda estava abaixada completamente. E eu não sabia se queria vestir a armadura de deboche e agressividade, porque Thomas Orsini, deitado lindamente em meus braços, parecia totalmente transparente, sem resistências. Seria injusto me proteger sozinhalo e deixá-lo tão vulnerável, aberto.
— Você não se considera carinhoso? — resolvi perguntar, mesmo que não precisasse de respostas. Desde o nosso papo na sala de embarque ele vinha demonstrando um carinho surpreendente.
— Estou meio confuso agora — admitiu, fazendo careta. — Sempre me achei frio. Meus ex-namorados sempre reclamaram disso e nunca soube o que fazer a respeito. Acho que ser carinhoso não tem nada a ver com dar presentes caros ou levar para jantar, não é? — ele olhou para mim, piscando, buscando orientação. Parecia um garoto inexperiente, o que me fez sorrir.
— Nem sempre. Carinho é feito uma energia. Não tem bem uma atitude ou um gesto certo para definir, depende de todo um contexto.
Ele assentiu de novo.
— Eu sinto isso de você agora — murmurou.
— Que bom porque também sinto de você.
Thomas abriu um sorriso tão maravilhoso que, novamente, tive vontade de beijá-lo até não existir mais o amanhã. Só que me segurei. Precisava ter cautela, ir devagar, não agir como um gado emocionadi. Era o mínimo de controle e proteção que devia a mim mesmo naquele instante.
— Seus pais são carinhosos contigo? — a sua pergunta veio depois de alguns segundos em silêncio.
— A minha mãe é bastante carinhosa, já meu pai, nem tanto. Ele se separou e casou de novo, acabou ficando mais distante do que era.
— Que pena.
— Pois é — assoprei, um tanto irritado com o comportamento do meu pai. Ele só soube que eu iria viajar porque minha mãe ligou para avisar. Falou comigo uns dois minutos, desejou boa viagem e pronto. Não pareceu se importar muito.
— A única pessoa da família que demonstra se preocupar comigo é a minha tia, irmã do meu pai.
— Deborah Orsini — deixei escapar. Thomas voltou a me olhar, desconfiado. — Ei, não me julgue, você também pesquisou sobre mim.
Rimos juntos.
— Você a conhece?
— Não. Só vi umas fotos e que ela tem uma ONG em defesa dos animais.
— Sim. Temos uma boa relação. É ela quem pergunta se estou me alimentando direito, se estou com algum namorado, enfim. É uma espécie de segunda mãe.
— Isso é ótimo. É bom ter alguém que dê esse tipo de apoio.
— Eu nunca soube retribuir com o mesmo carinho. Sinto que sou frio com ela, mas é o meu jeito, sempre fechado e na minha. Não consigo ser meloso ou romântico.
— Não fique se martirizando por isso. Todo mundo tem seu jeito de amar. O que importa é que a outra pessoa saiba que você a ama.
Ele ficou reflexivo por um tempo. Prendeu os lábios e fiquei o admirando enquanto raciocinava. Aquele homem era hipnotizante. Havia uma energia ao redor dele que me puxava feito um ímã. A conexão que tanto mencionou que existia estava ali, podia senti-la de maneira palpável, vibrante. Era uma energia fantástica e me trazia muito, muito medo. Eu estava apavorado com aquela conversa, mas, ao mesmo tempo, aliviado, tranquilo. Até esqueci a porcaria do voo, e olha que o avião dava uma remexida de vez em quando. Eu odiava qualquer nível de turbulência.
— Sinto que preciso mudar o meu jeito — ele disse em algum momento, evitando me olhar. — Te conhecer me fez repensar umas coisas. Esses quinze dias longe de você foram esclarecedores.
Fiquei surpreso com aquela informação. Ajeitei-o melhor em meus braços e o encarei, mesmo que ele ainda estivesse um pouco tímido, sei lá, envergonhado com o rumo daquela conversa. Ficou claro que não era mesmo de se abrir. Eu duvidava até que tivesse amigos. Thomas me parecia muito solitário.
— Quais coisas?
Ele sorriu de lado e vi quando a coloração de seu rosto ganhou uma pigmentação mais avermelhada. Achei aquilo tão lindo que o beijei novamente na testa. Ele fechou os olhos e demorou um pouco mais para reabri-los, como se tivesse absorvido ao máximo aquele carinho. Senti-me muito bem por poder proporcionar a ele um momento leve.
— Você me abriu os olhos — começou, murmurante, observando o teto do avião como se estivesse em um divã. — Percebi que começamos errado por minha culpa. Eu tentei te comprar, como tanto me acusou. Tentei te manipular para te ter, porque lá no fundo uma voz irritante me diz que as pessoas só me querem se eu puder oferecer algo em troca, algo que o meu dinheiro pode comprar. — Ele me olhou, mas continuei mudo, petrificado diante de suas palavras. Não sabia nem o que sentir. — Fiz isso sem enxergar que estou acostumado a tratar as pessoas como coisas, como números. Estou acostumado a comprar, não a conquistar ou a me dar o trabalho de ser alguém melhor para obter o agrado dos outros. Jamais pensei em questões de consentimento e poder numa relação. Acho que por isso todos os meus casos deram errado. No fim das contas você, para mim, está sendo um enorme aprendizado.
Sorri para ele, embora não tivesse me visto. Thomas ainda estava encarando o além, com o rosto avermelhado e a expressão dura feito uma roxa. O fato de estar se abrindo, por si só, já era impressionante, porém mais incríveis eram as palavras ditas. Muito me agradava saber que ele tinha reconhecido seus erros. E, principalmente, que estava disposto a aprender e melhorar.
— Fico feliz, Thom. Você também andou me abrindo os olhos.
— Mesmo? — ergueu uma sobrancelha.
— Percebi que grande parte de minhas atitudes foram baseadas na mais pura insegurança. A mesma voz que te fala esses absurdos me diz que eu não mereço estar com alguém como você. Essa voz me coloca para baixo, aponta o dedo na minha cara e me mostra que sou um incapaz, que sou inferior. Que não sou o suficiente.
Ele bufou, parecendo revoltado.
— Eu não te acho inferior a nada. Essa voz está completamente equivocada, Bu, você é suficiente e merece o mundo.
— A sua também está — completei, alisando o seu rosto devagarzinho. Ele fechou os olhos um pouco, demorando-se como um gato manhoso. — O seu dinheiro é só algo que você tem. Não é o que você é.
— Aí que está o problema. Acho que não sei direito quem sou porque não tenho tempo de ser e nem de pensar sobre mim.
Assenti, entristecido com tudo aquilo. Enfim, estava começando a compreender mais a dinâmica de Thomas como ser humano. Feito eu, ele também tinha muitos problemas e inseguranças. Na verdade, nós éramos mais parecidos do que pude imaginar. E mais uma vez levei um tapa na cara por ter me equivocado e agido com tanto preconceito. Contudo, não estava arrependido, porque só estávamos ali tendo aquela conversa devido ao modo torto como agimos no princípio.
— Você precisa começar a comprar coisas que importam, como por exemplo, o tempo. Se é dele que necessita, compre-o. Delegue seus serviços e se dê espaço. Repito, você não precisa dar conta de tudo.
— A minha família precisa de mim — resmungou, visivelmente decepcionado.
— Thomas, seus pais são idosos e bilionários. Já, já eles partirão deste mundo e não vão levar nada na cova. Será se viveram em plenitude? Se aproveitaram tanta grana como deveriam?
Ele bufou, sorrindo em desdém.
— Posso garantir que não.
— Você quer isso pra si mesmo? O que quer da própria vida?
— Bom, você já disse em nossa última conversa que todo mundo só quer ser feliz e amado.
Eu me lembrei instantaneamente do nosso jantar no topo daquele prédio de luxo. Parecia ter acontecido em uma vida passada. Eu não era aquele mesmo Bruno e tinha certeza de que o Thomas em meus braços também era outra pessoa.
— Então vá atrás. Ser feliz às vezes significa abrir mão de um monte de coisa.
— Prometo pensar nisso — Thomas ergueu a cabeça e me encarou, sorrindo. — E você? Já sabe o que quer ou o que fazer?
— Talvez.
— Pelo menos você parece saber quem é.
— Demorei muito a me descobrir e ainda estou nesse processo lento e doloroso de autoconhecimento.
— Continue assim, porque está valendo a pena. Eu te admiro demais e tenho certeza de que não sou o único.
Parei em silêncio, sem saber o que responder e me sentindo literalmente nas nuvens. Virei o rosto para a janela e sorri feito um bobo.
— Você não aceita bem elogios, não é? — Thomas chamou a minha atenção e precisei voltar a encará-lo.
— Ainda não — confessei.
Ele ficou calado, apenas me olhando por alguns instantes, até que prosseguiu:
— Uma das empresas do meu pai vai precisar cortar custos, reduzir pessoal e, com muita sorte, voltará ao normal. Em meu ponto de vista, é melhor fechar de vez. Ele ainda não sabe disso e estou o evitando por não saber como lhe dar a notícia — Thomas falava tão baixo que tive que me esgueirar toda para continuar o ouvindo, atentamente. — Não é a primeira empresa do grupo que vai à falência, mas é a primeira que precisa de cortes e que sou eu que administro. Encará-lo vai ser como enfrentar essa voz terrível que repete o quanto sou despreparado e incompetente.
— Você não é nada disso. São tantas variáveis que fazem uma empresa fechar...
— Eu sei, Bu, eu sei. A culpa nem foi minha. — deu de ombros, visivelmente irritado. — Ele provavelmente nem vai me julgar, mas eu me julgo. O autojulgamento me paralisa e acabo buscando incessantemente a perfeição em tudo que faço, pra não ter que encarar nenhuma derrota.
— Sei como é...
— Isso significa que também sou inseguro. Orgulhoso, controlador, ansioso, impaciente. Enfim, tenho muitos defeitos e finalmente concluo a minha resposta à sua pergunta.
— Que pergunta? — pisquei os olhos, sem entender. O cérebro até deu um nó e me perguntei se não estava ficando doida.
— A que me fez naquela noite, no nosso jantar. Você queria saber quais eram os meus problemas, não é?
Um sentimento maluco me fez rir e prender seu rosto em minhas mãos. Beijei a ponta de seu nariz, sem conseguir me livrar daquela emoção que me deixava satisfeito, feliz, bem. Conhecer os defeitos e problemas das pessoas sempre nos mostram quem elas são e, naquele momento, compreendi o que ele estava fazendo ao se deixar tão sem máscaras na minha frente.
Ele queria que eu o conhecesse.
— E você? — questionou num murmúrio, encarando a minha boca brevemente.
— Inseguro, impaciente, nervoso, agressivo, sem papas na língua, meio maluco.
Nós dois rimos.
— Engraçado que me pareceram qualidades.
— Seus defeitos também muito me agradaram, Senhor Orsini.
— Bu, me promete uma coisa?
Fazendo uma careta, olhei-o de cima, fingindo desconfiança.
— Se eu puder...
Thomas se levantou completamente, sentando-se aprumado em seu assento. No entanto, segurou as minhas mãos e fez nossos dedos se entrelaçarem em cumplicidade. Manteve o corpo e o rosto perto, deixando-me sufocado e vidrado naquele olhar eletrizante apontado em mim.
— Se eu falar ou fizer alguma merda, algo que te deixe puto comigo, por favor, promete que vai conversar e me fazer entender seu ponto?
Pisquei bastante os olhos. O meu coração estava batendo na maior velocidade e quase não conseguia respirar. A emoção me atingiu em cheio e tive quase certeza de que não haveria mais jeito. Todo o afastamento e autoproteção foram banais. Eu estava muito caidinho por ele e precisava lidar com aqueles sentimentos de forma madura e justa.
— Prometo — sussurrei. — Se me prometer fazer o mesmo e, principalmente, me perguntar antes de tomar uma atitude que influencie a minha vida.
Ele apertou nossas mãos, sem desviar o rosto do meu.
— Eu prometo.
Sorri e Thomas me devolveu o sorriso na mesma medida. Eu sentia que alguma coisa estava surgindo ali. Algo importante nascia e eu estava muito, muito feliz.
— Posso te beijar? — perguntou baixinho, parecendo ansioso pela minha resposta.
— Ainda não estamos em Los Angeles.
— Isso é um sim?
— Isso é um com certeza.
E então, devagar, Thomas diminuiu a distância entre nós e juntou nossos lábios sem pressa. O gesto começou lento, feito uma carícia muito bem-vinda, e aquela emoção nova se espalhou por todas as minhas terminações nervosas. Rapidamente me vi enlaçado naquela conexão só nossa, presa de corpo e alma em um beijo que eu poderia considerar, facilmente, o melhor de todos.
Foi assim que o clichê, enfim, se fez. Eu, o funcionário inseguro, com probleminhas mentais, caí de vez nas garras do CEO bonitão, rico e pintudo. No entanto, não éramos apenas isso. Íamos além de uma história que ninguém aguenta mais.
Nós éramos dois homens, com seus defeitos e qualidades, buscando o que as pessoas tanto almejam: serem felizes e amadas.