Amor em alguns atos - Cartão Postal

Um conto erótico de João Fayol
Categoria: Homossexual
Contém 2837 palavras
Data: 19/05/2023 19:32:15

A vida continua. E indo muito além do sentido positivo, de pensar que apesar das dores continuaremos vivendo, há o lado negativo dessa sentença. A vida continua. Tudo dentro de você mudou, todo o seu universo de possibilidades e sonhos foi chacoalhado e está destruído, tudo dentro de você está quebrado; nada dentro de você é igual, nem mesmo você é o mesmo. Mas a vida continua. O quão cruel é relegar a alguém em sofrimento a certeza que a vida continua.

Na manhã que sucedeu aquele dia terrível, o sol nasceu lindo. Tão logo, as pessoas estavam andando na rua, a caminho de seus destinos. O trânsito logo engarrafou e as buzinas começaram a soar; a cidade começava a fazer barulho e a despertar para um novo dia. Tudo estava normal, mas dentro daquele quarto de hospital, em Copacabana, nada estava normal.

Se o Benjamin saiu do centro cirúrgico arrasado, Carol, ao sair do choque e perceber que o aumento no volume do seu ventre não lhe entregou criança alguma, entrou em profundo desespero. Foi, infelizmente, necessário sedá-la. Naquela manhã em que ninguém dormiu, quando ela novamente despertou, ainda sob algum efeito dos sedativos, havia somente dor. Eu conhecia a Carol há muitos anos, já a vi triste em diversos momentos, já a vi machucada - e inclusive tive participação em alguns momentos, mas nunca a vi tão dilacerada como naquele dia.

O luto é sempre difícil, mas o luto de uma mãe é ainda pior. Naquele dia e nos dias seguintes àquele me esforcei para equilibrar os pratinhos. Minha melhor amiga e meu namorado estavam destruídos. Por uma decisão de ambos, o destino do feto não ficaria a cargo de uma decisão hospitalar. O termo “descarte do feto” foi imediatamente descartado por ambos. Tanto Carol quanto Ben optaram por realizar um velório e um enterro àquele bebê. A equipe de apoio psicológico do hospital entendeu que aquilo seria importante no processo de luto e apoiou a decisão de ambos.

Não cabe a mim falar sobre o velório e enterro, não porque achei mórbido, mas porque achei duro. A vida se mostra terrivelmente dura quando se observa o descer à cova de um caixão branco menor que uma caixinha de brinquedo. Quando o ciclo vida-morte se rompe não nos resta nada além de aceitar o saldo final: a dor.

***

Em um desses dias pós-enterro, acordei de madrugada num sobressalto. Não houve pesadelo algum, acho que nem sonho, mas meu corpo despertou assustado. Não foi sequer necessário tatear a cama naquele quarto escuro para saber que o Benjamin não estava lá. Tateei meu celular na cama para me dar um panorama do horário e uma luz, neste caso, literalmente. O relógio marcava 03:30 da manhã. Me levantei no modo automático e me dirigi até a sala, na expectativa de que ele estivesse na varanda. Não estava.

Eu estava vestido com roupas simples, um short e uma camisa branca, que na verdade era dele e não minha. O apartamento estava razoavelmente aquecido, mas eu já estava ciente que precisaria ir à rua e que lá fora a temperatura definitivamente não estaria tão agradável, especialmente levando em consideração que estávamos em um bairro posicionado entre 3 praias. Coloquei um casaco por cima, catei a chave do carro e saí de casa.

O bairro estava deserto e havia um silêncio inquietante em cada esquina que era quebrado pelo som do carro. Não foi preciso rodar muito para encontrá-lo. Assim que cheguei na altura da Praia Vermelha, ao final da Avenida Pasteur, vislumbrei uma pessoa sentada em um banco da praça General Tibúrcio. Estava escuro e poderia ser qualquer pessoa, mas eu seria capaz de reconhecer o Benjamin no meio de qualquer multidão, independentemente do tempo e espaço. Estacionei o carro próximo à Escola de Guerra Naval, onde havia um oficial de guarida - importante pensar minimamente na segurança, o Rio é lindo, mas não é um morango - e caminhei até a praça. Fui me aproximando devagar e deslizei minha mão sobre suas costas, tentando não assustá-lo.

Ele estava olhando o mar - as ondas da Praia Vermelha, diferente das ondas da Praia da Urca, são mais fortes - e mesmo com o meu toque permaneceu imerso naquele movimento. Eu sabia que ele estava vivendo e processando toda aquela dor, e que somente encarando a imensidão do mar ele conseguiria fazer isso - obviamente, associado a um tratamento com psicólogo e psiquiatra. Não era a primeira vez que ele saía de casa na madrugada. Em nenhuma das ocasiões anteriores ele me chamou, mas eu sempre acordava e sabia que ele estava me esperando na beira da praia. Começou na Praia da Urca, mas à medida em que ele ia processando a dor, para mais longe ele ia, até que ele se estabeleceu na Praia Vermelha. Era a terceira noite seguida que eu o encontrava lá, e como em todas as outras, eu apenas me sentava ao seu lado e assistia. Não, eu não conseguia ver o mesmo que ele, mas queria que ele soubesse que eu estava lá.

- Me desculpa. Eu não quis te acordar, também não queria te preocupar. - ele quebrou o silêncio após vários minutos.

- Não pede desculpa. Você não fez nada de errado. - o vento que vinha do mar era forte e frio, mas eu não tinha pretensão de deixá-lo ali.

- Você acha que uma hora isso vai passar? - ele indagou

- Isso o quê, Ben? - apertei o casaco contra o meu corpo

- Tudo. - ainda estávamos olhando o mar, e ele parecia pouco ou nada incomodado com o vento. Anestesiado, essa é a palavra.

- Não. Não acho, Ben.

- Por que?

- Porque o amor tem dessas coisas, Benjamin. A gente ama até quando dói, e dói até quando ama. Nunca vai deixar de doer porque você nunca vai deixar de amar ele e o universo de possibilidades do que poderia ter sido… - respirei fundo - Mas tem tanto amor aí dentro, que cara, eu acho que você vai entender como lidar com isso.

- Como fazer com que a alegria encontre espaço pra coexistir com a dor de perder um filho. Sinceramente, eu não sei se um dia eu vou conseguir voltar a ser como antes. Antes de ver meu bebê ser enterrado. Porra, não foi só cruel, foi injusto, João. Injusto comigo, com a Carol e com toda a vida que ele nem viveu. Qual o sentido?

- Eu queria te dizer, Benja… mas eu não sei. - o vento frio deixou de ser um grande problema.

- Eu também não sei… é tudo tão absurdo, tão injusto, tão merda, que eu tenho a sensação que nada nunca vai ser como antes. Que eu nunca sequer vou conseguir rir de novo. - ele encostou a cabeça no meu ombro.

- Um dia por vez, Benjaleco. Um dia por vez - o abracei - Vai devagar, vamos devagar. Eu sou quase um groupie teu, não te largo por nada.

- Você vale ouro… e tá congelando. Vamo. Tá muito frio aqui.

Nos levantamos e seguimos abraçados até o carro. Naquele dia, chegamos em casa às 5 da manhã. Passamos 1h30 na praia. O tempo corre diferente na escala da dor, e mesmo sem ter muitas certezas sobre a vida, eu sabia que as coisas iriam se acertar. Não como antes, nada seria como antes e aquele momento e aquela dor jamais seriam superados, mas estaríamos juntos. Não compensaria tudo, jamais. Mas valeria algo.

***

Um ano e meio se passou, e novamente éramos somente eu e Benjamin na Urca. Eu ainda mantinha a ilusão de que morava no Flamengo, mas a realidade é que eu estava morando novamente com ele no nosso querido antigo apartamento. Carol, em contrapartida, já não vivia mais na Urca e já estava com seu bebê nos braços. Não, você não leu errado. 1 mês e meio após o aborto, Carol retomou o contato com um antigo namorado. Depois de muito discutir com sua psicóloga se estava envolvida ou se estava carente e de luto, ela chegou a conclusão que estava envolvida, carente e de luto, e que nenhum desses sentimentos anulava o anterior.

Ela abriu essa porta, e quando se deram conta, estavam apaixonados. O namoro se iniciou dali a algumas semanas. Foi lindo vê-la florescer novamente após tudo que ocorreu no último ano. Mas a vida tem dessas reviravoltas pouco avisadas, e ele, que era sênior na multinacional em que trabalhava, foi convidado a chefiar os escritórios da empresa na América Latina, diretamente de Miami. Ele topou o convite da empresa, e ela topou o convite dele. Em 3 meses, já estavam vivendo felizes em Miami. Dali a mais um mês, mais uma dessas surpresas: um arco-íris brilhou. Grávida. Êxtase, medo e muita, mas muita expectativa. Pude visitá-la alguns meses antes do parto, ela estava brilhando, radiante, reluzente. Não entendia o porquê de tudo aquilo ter ocorrido, mas estava feliz e grata pelo presente.

A gestação avançou o primeiro trimestre, passou o temível segundo trimestre, e ao final do terceiro ela obteve sua recompensa: Bernardo estava entre nós. Um forte e lindo bebê, que tinha como padrinhos Benjamin e eu. Ela estava feliz, estava vivendo tudo aquilo que sabia que merecia e lutou para ter.

Quanto ao Ben, as coisas correram mais devagar, ele estava feliz pela Carol, mas não conseguia esconder a tristeza - e nem deveria escondê-la. Mas um dia, que não vou me lembrar quando, nem onde e menos ainda o motivo, ele gargalhou. Uma gargalhada que há muito não ecoava pela nossa casa, de repente ecoou por todos os cômodos. Naquela noite não houve praia na madrugada, e tenho certeza que da Urca até Botafogo todos dormiram tranquilamente, inclusive nós.

Aos poucos, aquela gargalhada voltou, ele concluiu a faculdade, voltou a sair com os amigos e falar daquele bebê com alegria e saudade, havia tristeza, mas havia conforto no que ele dizia. O bebê ganhou um nome, mas permaneceu sendo chamado por ele e Carol de britadeira. Diziam não entender como um serzinho daquele tamanho foi capaz de quebrar e reconstruir tanta coisa na vida deles. Uma revolução. Um ato de amor.

A vida continua.

***

Quando o mundo desabou sobre nós, eu não pensei duas vezes na hora de desistir de tudo para ficar aqui no Rio, mas depois de tanto tempo e de vislumbrar as coisas melhorarem, decidi reiniciar o processo, agora, em um país de língua inglesa. Por uma questão de facilidade e de reconhecimento territorial, optei por tentar uma bolsa de mestrado em jornalismo - pouca influência do meu respectivo - na New York University. Após um processo partilhado com ele, de muita apreensão, medo e expectativa, fui notificado, em uma quarta de um ano que seria inesquecível para toda a humanidade, que meu processo havia sido encerrado e eu aprovado.

Fui ao céu e voltei. Naquele dia saímos para comemorar e eu tomei um dos maiores porres da minha vida, ao lado do grande amor da minha vida. Foi também nesse mesmo dia que eu tive uma das melhores e mais loucas transas da minha vida, mas isso pode ser papo para um outro momento.

Tive pouco tempo para resolver todos os trâmites da viagem, mas em pouco mais de um mês, tudo se resolveu e eu estava de malas prontas para viajar. Benja não poderia ir comigo para passar as primeiras semanas. Tudo foi tão de supetão que não haveria como ele solicitar férias na empresa para me acompanhar. E tendo em vista que aquele era o ano que se iniciava um novo governo no Brasil e ele era jornalista político, havia zero possibilidade de deslocamento.

Nos despedimos no Galeão, em uma tarde estranhamente fria de janeiro. O vôo teria algumas conexões e eu encontraria meus pais em Guarulhos. Quase todos os nossos amigos estavam no aeroporto, e eu consegui me despedir razoavelmente bem de todos, sem muito choro, mas como era de se esperar, na vez dele, eu desabei. Não tinha nenhuma pretensão de que fosse fácil deixá-lo, ainda que por pouco mais de 6 meses, mas eu não sabia que seria tão difícil assim.

- Promete que vai fazer facetime comigo todos os dias à noite. - estávamos abraçados e eu estava chorando em seu peito.

- Você vai tá 2 horas atrás de mim, bebê. - ele me acariciava.

- Promete, caralho. - ele riu

- Tudo bem, amor. Prometo. Facetime toda noite até tu dormir. Certo? - ele se afastou um pouco para que nossos olhares se encontrassem.

- Certo. - dei-lhe um beijo rápido.

- Te amo, Joãozinho. - ele me devolveu o beijo.

- Te amo, Benjaleco.

Demos um último beijo e então eu avancei para o saguão de embarque.

E pra quê sofrer se quem partir não leva nem o sol e nem as trevas, e quem fica não esquece tudo que sonhou?

Pra quê querer ensinar a vida? Pra quê sofrer?

***

Como o bom carioca que era, a adaptação em Nova York se resumiu a: “é legal, mas no Rio é melhor”. Que saudade da minha casa, da minha vista, dos meus amigos e, principalmente, do meu amor.

Que saudade de dormir agarradinho com ele, de sentir o cheiro do perfume dele espalhado pela casa quando eu chegava mais cedo que ele do trabalho. Que saudade das nossas conversas longas e profundas, longas e efêmeras; curtas e profundas, curtas e efêmeras. Saudade do toque, do beijo e de sentir o gosto dele.

- Tô morrendo de saudade de você. - a voz ecoou metálica pelo sistema viva-voz do meu celular.

- Benjaleco, eu também. Você não tem ideia do inferno que é dormir sem você do lado. - eu estava terminando de me arrumar, aquele seria meu primeiro dia de aulas e eu já estava atrasado. Pedir desculpas em outro idioma já é complexo. Agora, pedir desculpas por chegar no final da aula já é um desacato. A perigo de causar uma crise diplomática - o que não seria lá um grande desafio tendo em vista os governos nefastos que assolavam o Brasil e os Estados Unidos, bastaria ser um pouco mais progressista para causar um caos.

- João, papo reto: essa tua voz embargada de manhã me deixa com um tesão do caralho.

- Benjamin! São 8 da manhã. - não aguentei e comecei a rir enquanto terminava de arrumar o meu cabelo.

- E são 10 da manhã pra mim. O que significa que mais 3 minutos dessa voz no meu ouvido e eu boto meu pau pra fora e começo a bater uma punheta. Posso fazer isso com você falando até do valor do quilo do patinho. Duvida?

- Não meu amor, não duvido. Eu também tô morrendo de saudade da tua voz, do teu cheiro e do teu corpo em cima do meu, mas agora eu preciso ir. Te amo e te ligo no final do dia.

Não deu nem tempo dele dizer que me amava. Eu precisava sair ou iria realmente entrar numa sessão de camsex com ele; não seria um problema, mas eu não planejava ter que me atrasar mais e ainda ter que escolher outra combinação de roupa porque me gozei todo.

Além disso, era inverno, eu estava o mais básico possível de jeans, all star, uma camisa branca e um casacão. Estava aquecido e confortável, nada me tiraria daquela roupa.

De onde eu estava, no Upper East Side, até o campus da universidade demorava menos de 30 minutos de metrô. Assim o fiz. Cheguei lá pouco após às 08:30. As aulas estavam marcadas para começar às 08:30; estaria alguns minutos atrasados na sala, mas nada absurdo. Ainda assim, decidi apertar o passo, já que eu ainda precisava me localizar em relação ao andar, e nesse passo apertado, esbarrei em algo ou alguém e ouvi o som de livros caindo no chão.

Sem pensar muito, me abaixei e comecei a ajudar a pessoa a recolher o material, e antes que eu pudesse falar “i’m sorry”, ouvi um sonoro “não olha por onde anda, não?”.

Paralisei, e antes fosse por reconhecer o meu bom e velho português brasileiro carioca sendo pronunciado, mas sim porque eu reconhecia aquela voz e não a ouvia há muitos anos.

Ergui meu rosto e confirmei a informação.

- João?! Mentira, quanto tempo, cara! - não consegui sequer levantar direito e ele já estava me abraçando.

- O…oi. Oi, André.

André. O mesmo com quem eu fiquei antes de voltar com o Benjamin e dispensei pouco antes de viajar para Europa para ficar com o mesmo Benjamin. Tudo o que não precisava me ocorrer era estar estudando, em outro país, na mesma instituição do único homem que despertou uma crise de ciúmes mortal no Benjamin 3 anos antes. E eu definitivamente não queria testar e descobrir como o Ben reagiria.

- Sala 20B. Segundo andar. Vem comigo, é a mesma que a minha. Vem comigo. - ele disse enquanto me puxava pelo braço em direção ao elevador.

Rita Lee não mentiu, alguém quando parte é porque outro alguém vai chegar, num raio de lua, na esquina no vento ou no mar. Mas eu realmente não estava disposto a viver qualquer remember e estragar minha história de amor na outra ponta do continente… independentemente do que acontecesse dali pra frente.

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Comentários

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Queria saber mais sobre esse sexo louco aí!! Heheeh

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porque as pessoas procuram de fuder nmo mau sentido da palavra???

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Eu adorei que tanto a Carol quanto o Ben conseguiram superar. Agora é só aguardar esse desenvolvimento do rolo com o André.

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