#3 – Problemas em Terras Estranhas

Um conto erótico de Nassau
Categoria: Lésbicas
Contém 8802 palavras
Data: 22/07/2023 20:38:08
Última revisão: 09/12/2023 16:13:06
Assuntos: Amor, Desejo, Lésbicas

Parte 03 da Série – Músicas Inesquecíveis

FAIXA 3: I'll Never Love This Way Again

Chegada de Doralice nos Estados Unidos

Claro que Joelma, diante do forte sentimento por Dora, mudou-se para a cidade onde ela residia e assumiram o relacionamento que surgiu entre elas. Mas esse amor tinha prazo de validade e elas não sabiam disso.

Enquanto as duas se amavam e Ricardo via naquele amor algo de bom, o garoto passou a sofrer outro tipo de preconceito na escola. Se antes ele era marcado pelos amigos como o menino filho de mãe solteira, agora era filho de uma sapatona. De novo ele não deixava por menos e resolvia as ofensas dos colegas no braço. Perdeu algumas, a turma do deixa disso evitou várias, mas no cômputo geral ele se achava um vencedor, já que entre seus oponentes tiveram vários que se viram às voltas com algum dentista para reparar os estragos.

Sua mãe, Dora, brigava com ele e até chegou a aplicar alguns castigos por causa dessas brigas, o que não adiantava muito, pois tendo Joelma como sua aliada, esses castigos quase sempre eram esquecidos logo depois de terem sido determinados.

O que não mudou na vida de Doralice foram os sonhos. A frequência com que sonhava com o grande amor de sua vida estava cada vez maior e sofria apenas duas variações. Em um desses sonhos ele demonstrava estar feliz com a decisão de Dora em se entregar aos carinhos de Joelma e o outro, bom, o outro ela não podia explicar porque também não entendia muito bem. Eram os pais do Richard que aparecia e, invariavelmente, o sonho começava com o casal aparecendo como se estivessem posando para uma foto de família e depois aparecia um menino entre ele que ia se tornando adulto até desaparecer. Então ela interpretava que aquele garoto era seu grande amor e o fato dele aparecer na foto era para mostrar o amor que os pais devotavam a ele e a falta que ele estava fazendo.

Ela comentava esses sonhos com Joelma que se divertia tentando encontrar uma interpretação, mas como nunca levava nada a sério, sempre acabava com a Dora brigando por ela por causa de alguns absurdos que acabava acrescentando em sua observação.

A vida seguia não tão normalmente, com alguns problemas que Ricardo causava na escola em suas brigas para defender a honra de sua mãe até que, passado quatro meses, aconteceram duas coisas relacionadas aos sonhos em que Richard aparecia. O sonho rotineiro que Dora sempre tinha sofreu uma pequena mudança. No início era tudo igual aos anteriores, mas em meio das cenas que desfilavam diante dela nesses sonhos, a imagem da mãe dele desapareceu. Se fosse apenas isso, já seria algo para ela se preocupar, porém, o fato da expressão do pai dele mudar radicalmente, passando de jovial para uma de quem estava sofrendo muito agravava tudo e, ficava ainda pior quando o sonho terminava com a imagem de seu filho ao lado do avô.

Além dessa alteração que deixou Dora muito preocupada tentando entender o que significava aquilo, Joelma, muito assustada, acordou no meio de uma noite sobressaltada, o que despertou Dora de seu sonho e, quando perguntou à outra o que tinha se passado, ela relatou que tinha tido um sonho com Richard.

Doralice fez de tudo para acalmar a parceira e com muito custo voltaram a dormir, o que fez com que acordassem tarde no dia seguinte e, quando procuraram por Ricardo, descobriram um bilhete dele informando que tinha ido treinar.

Ricardo não só gostava de jogar futebol, como revelava ser um jogador talentoso, o que fazia com que fosse requisitado para os treinos e, ainda com menos de doze anos, já compunha o time de futebol da escola cuja idade limite era a de quinze, o que quer dizer que ele jogava entre colegas e adversários mais velhos do que ele. Dora tentou impedir essa prática e chegou até a falar com o treinador, mas foi convencida a concordar quando, comparecendo a um dos jogos da escola contra a equipe de outro colégio, notou a importância que o garoto representava para aquele time. Ele era, segundo as palavras do técnico, um verdadeiro craque que, certamente, teria muito futuro caso se dedicasse a seguir a carreira de futebolista.

Despreocupada ao saber onde o filho estava Dora pediu para que Joelma relatasse seu sonho e foi atendida. Joelma lhe contou que, no sonho que teve, o Richard aparecia ao lado dela enquanto ela saía da casa de Doralice, depois de uma despedida muito dolorida.

Ficaram discutindo sobre isso e, pela primeira vez, Joelma levou o assunto a sério e não tentou fazer nenhuma brincadeira. O que Doralice não notou é que, durante todo esse tempo, ela demonstrava uma tristeza que não era comum da parte dela. Ao final, não chegaram a nenhuma conclusão sobre o significado do sonho de Joelma.

Tudo teria ficado normal se o sonho não persistisse. Tanto Dora continuava a sonha com o pai de Richard ficando sozinho na imagem e no final na companhia de Ricardo e Joelma sonhando com Richard acompanhando a ela em uma despedida de Doralice. Para piorar, quando falavam sobre os sonhos, não chegavam a nenhuma conclusão.

Isso até o dia em que Joelma, com uma voz triste, declarou:

– Olha aqui Dora. Desde que esses sonhos começaram que estou esperando você falar sobre o que ele quer dizer. Então, pode falar agora. Não se preocupe se eu vou ficar magoada ou não.

– Magoada eu? E por que eu ficaria? É bem capaz que eu ficaria com ciúme só por causa do meu grande amor aparecer no sonho de outra mulher.

– Seu o que? Repete isso.

– Desculpe Joelma. Não deveria falar desse jeito. Olha, não quis te magoar tá? Me desculpe.

– E quem te falou que estou magoada. Caso você não saiba, eu nunca tive esperança de ocupar o lugar do Richard no seu coração. Eu sei que isso é impossível.

– Você é realmente uma grande amiga. Nunca vou achar alguém que me apoie tanto quanto você.

– Eu acho que vai sim, Dora. E se você duvida disso, basta interpretar o seu sonho e o meu. Será que só eu que me dou conta do que o Richard está querendo dizer?

– O Richard morreu, Joelma. Esses sonhos que tenho são apenas frutos da minha imaginação e da falta que eu sinto dele.

– Está vendo só? Não tem nada que vai substituir isso. E eu até acho que você não devia guardar isso para você mesmo. Esse é um sentimento que merece ser gritado para todo mundo ouvir.

– Você acha mesmo? – Perguntou Dora indecisa.

– Acho sim. Lógico. Tanto acho que vou pedir para você falar isso em voz alta. E agora.

Doralice olhou então para a parede acima da cabeça de Joelma e foi como se, no branco vazio que avistava, uma sombra formasse a imagem do rosto de seu homem. Então ela falou sem vacilar:

– Eu nunca vou amar ninguém do jeito que te amei!

– I’ll never love this way again.

– O que você falou?

– Nada. Só repeti o que você disse. Mas não é uma frase minha. Isso é o título de uma música.

– Que música? Nunca ouvi antes.

Joelma não respondeu nada. Apenas esticou o braço e pegou seu celular que tinha largado sobre a mesa e começou a manuseá-lo. Não demorou e o som de uma música encheu o ambiente:

I'll Never Love This Way Again

Eu nunca vou amar dessa maneira de novo

You looked inside my fantasies

Você olha dentro das minhas fantasias

And made each one come true

E faz cada uma virar realidade

Something no one else had ever found a way to do

Algo que ninguém jamais descobriu como fazer

I kept the memories one by one

Eu guardei as memórias uma a uma

Since you took me in

Desde que você me enganou

I know I'll never love this way again

Eu sei, eu nunca vou amar dessa maneira de novo

I know I'll never love this way again

Eu sei, eu nunca vou amar dessa maneira de novo

So I keep holding on before the good is gone

Então, eu continuo me segurando antes que a bonança acabe

I know I'll never love this way again

Eu sei, eu nunca vou amar dessa maneira de novo

Hold on, hold on, hold on

Me segurando, me segurando, me segurando

Nesse ponto da música o rosto de Doralice já estava banhado de lágrimas. A voz emocionante de Jesuton, uma cantora inglesa que surgiu para o mundo da música cantando nas ruas do Rio de Janeiro enchia o ambiente, entrava em seus ouvidos, tomava seu cérebro enchendo-o de lembranças e fazia com que a adrenalina bombeada por seu coração tornasse seu corpo todo arrepiado.

Sem dizer nada, Joelma foi até Dora, tomou-a nos braços carinhosamente e a levou até o sofá onde fez com que ela sentasse enquanto dizia:

– Chore querida. Pode chorar a vontade que a lágrima que você derrama é o maior tributo que se pode fazer ao amor.

Sentou-se então ao lado dela e ofereceu seu ombro, enquanto a música continuava a soar como se estivesse vindo de outro mundo.

Só depois de muito tempo, tempo esse em que as duas permaneceram em silêncio, foi que Joelma perguntou:

– E aí? Quando você vai?

– Vai aonde? Do que é que você está falando?

– Pare com isso Dora. Pode parar. Nós duas sabemos exatamente o que significam os sonhos de estamos tendo com o Richard.

– Tem algum significado para você? Estranho isso. Logo você que sempre debochou quando eu lhe contava sobre esses sonhos. – Dora falava sem ressentimento, mas estava muito séria ao falar.

– Pois é. Olha só como são as coisas. Eu debochava até ter o mesmo sonho. Hoje não tenho mais nenhuma dúvida de que o Richard está sempre ao seu lado e se comunica com você desse jeito.

– Então tá. Considerando que você acredita, o que você acha que ele está querendo dizer?

– Ele está dizendo que o nosso relacionamento precisa acabar. Não porque isso o incomoda de alguma forma ou por causa dos problemas que está causando ao Ricardo. Eu acho que o verdadeiro motivo é que você e seu filho precisam ir aos Estados Unidos conhecer os pais dele.

– E como vou fazer isso. Pego um avião, chego lá na casa de pessoas que nunca me viram e digo a eles “oi, eu fui namorada do filho de vocês e esse aqui é o filho dele e estou aqui porque, em sonho, ele pediu para que eu os visitasse”. Provavelmente, o melhor que pode acontecer é que eles fechem a porta na minha cara. Não é isso que você acha que vai acontecer?

– Não. Não acho porque, se fosse isso, o Richard não estaria pedindo para você ir. Deve ter algum motivo muito importante para que sua presença seja necessária lá.

– Pare de exagerar as coisas Joelma. Isso é coisa de cinema e pode até ficar bem legal em alguns filmes, mas aqui nós estamos falando do mundo real. Acorda pra vida.

Joelma não insistiu e elas passaram o dia normal até dormirem. Então tudo se repetiu e, dessa vez, o sonho de Dora teve o acréscimo das cenas que a amiga tinha sonhado na noite anterior, ou seja, dela saindo de casa e o Richard a acompanhando.

Sem querer dar a entender à sua parceira que ela estava certa em sua conclusão, Doralice evitou o assunto. Só que isso não a livrou de ter que enfrentar o assunto e novamente a conversa terminou com Dora se mostrando descrente e Joelma insistindo em sua teoria sobre o significado daqueles sonhos. Para piorar a situação, os sonhos voltavam a se repetirem todas as noites e se tornavam cada vez mais nítidos. Até que Dora entregou os pontos e deu razão à Joelma.

Mas o fato de concordar que a parceira estava errada não queria dizer que Dora ia fazer as coisas do jeito que a outra entendia que deveriam ser feitas. Ela não ia arrastar seu filho de um hemisfério a outro, chegar a um país estrangeiro só para que o filho sofresse uma rejeição.

Novas discussões, sempre em tom compreensivo onde Joelma procurava apenas dar conselhos e nunca forçar nada. Para ela aquilo era duplamente difícil, pois, ao contrário de Doralice, Joelma a amava com todas as suas forças e seu coração sangrava todas as vezes que ela tinha que insistir que a outra devia partir. Assim era Joelma. Ela faria tudo por Dora, até mesmo abrir mão dela se isso fosse uma condição para que ela cumprisse sua missão, porque, para ela, todos aqueles sonhos de Richard eram um pedido para que Dora se aproximasse dos pais dele.

Até que chegou o momento que Dora não mais resistiu. Nos sonhos que tinha com seu grande amor ele se tornava cada vez mais incisivo em mostrar seu pai e a ausência da mãe e ela já temia pelo pior, pois aquilo significava que, por um motivo ou por outro, o pai dele se encontrava sozinho, o que devia significar sem ter mais ninguém com quem contar, pois no caso de existir algum irmão ou irmã, certamente ele revelaria isso nos sonhos.

Doralice se lamentava por nunca ter falado com o Richard sobre a família dele. Na época ela entendeu que, por ele não tocar nesse assunto, talvez tivesse algum motivo que o levava a evitar isso. Agora ela sabia que, independente do tipo de relacionamento que ele tivera com os pais, de outro lugar, ele velava não só por ela, mas também por seus parentes.

Pensando sobre isso dessa forma, decidiu que estava na hora de atender ao pedido de Richard e, quando comunicou esse fato de Joelma, viu a parceira receber a notícia sem nenhuma alegria, porém, demonstrando até mesmo certo alívio por ela ter finalmente resolvido fazer alguma coisa. A primeira coisa que Joelma perguntou já dava a entender que ela estava concordando com a partida de Dora:

– Isso aí. Até que enfim. E como é que você vai fazer isso?

– Sei lá Joelma! Acabei de pensar na possibilidade de ir, como vou saber o que fazer? Não tenho a mínima ideia e nem sei nem por onde começar.

– Para uma ótima advogada você é péssima quando se trata de você mesma. – E sem dar tempo para que Dora rebatesse seu comentário, já emendou: – A primeira coisa que você tem a fazer é tirar um passaporte, a segunda é conseguir um visto e depois comprar a passagem.

– Não, primeiro comprar a passagem e depois conseguir o visto. Sem uma passagem de ida e volta dificilmente se consegue um visto para entrar nos Estados Unidos.

– Muito bem. A advogada começou a agir. Então, mãos às obras.

– Mas, quando eu vou? – Essa pergunta demonstrava que, embora resolvesse ir, Dora ainda não se convencera totalmente.

– A única coisa que te segura aqui são os estudos do Ricardo. Estamos próximos do mês de julho. Então, essa é uma boa época para você ir, mesmo porque, lá vai ser verão e você não vai precisar se preocupar com roupas de frio para você e para o Ricardo.

– Estava aqui pensando Joelma. Será que é uma boa levar ele?

– Para vai! Nem acredito que você está pensando em não levar o Ricardo com você! Será que você não entendeu que a presença dele lá é até mais importante que a sua?

– Não sei não. Ele pode sofrer algum tipo de rejeição por parte dos avós dele. Além do mais, eu não preciso me preocupar porque tem você para cuidar dele enquanto eu viajo.

– Isso não vai ser possível. Estou pensando em viajar para minha cidade, Visitar meu pessoal que está lá e matar a saudade.

– Você leva o Ricardo com você, oras. – Disse Dora em tom de súplica.

– Vai se catar Doralice. Você não é tão burra assim. Porra cara, o que vai ser preciso para que você entenda que o seu filho tem que ir com você?

– Hei. Calma aí mulher. Não precisa se estressar só porque eu pedi para você cuidar do meu filho. Desculpe aí viu!

– Vai se foder Doralice. – Disse Joelma saindo apressada de onde estavam e se dirigindo ao quarto que ambas dividiam.

Não se passaram dez minutos e Doralice entrava no quarto, toda carinhosa e se desculpando para uma Joelma que, perdida de amor, não conseguia sentir raiva dela:

– Desculpe meu amor. Eu não falei por mal. Afinal de contas, você não tem nenhuma obrigação de cuidar do meu filho. Você me perdoa?

Joelma olhou prendeu seu olhar ao de Dora que, surpresa, viu duas lágrimas escorrendo dos olhos dela. Bastou isso para que ela se sentisse ainda mais culpada e tentou remediar:

– Por favor. Não fique assim. Você sabe que sou muito grata por tudo o que você fez por mim.

Controlando o choro, Joelma falou:

– Não estou assim por causa da nossa discussão, Dora. Essas lágrimas aqui são motivadas pela certeza de que eu vou te perder.

– Não fala assim. Você não vai me perder.

– Vou sim. Tenho certeza de que a nossa história está chegando ao fim. – Disse Joelma antes de se entregar de vez ao desespero e deixar seu pranto mostrar toda a amargura que estava vivendo.

Doralice ficou ao lado de Joelma alternando carinhos e beijos em seu rosto molhado pelas lágrimas que não paravam de cair por mais de meia hora. Quando Joelma finalmente conseguiu falar, ela disse algo que pegou a amante de surpresa, pois não esperava aquela pergunta:

– Você me ama, Dora? – Diante do olhar surpreso da outra, ela explicou: – Quero dizer, você tem mesmo certeza de que o que você sente por mim é amor?

– Lógico que te amo, Joelma. Amo sim. Te amo desde o momento que percebi que o fato de ficarmos juntas tinha a aprovação do Richard. Foi isso que ele mostrou para nós dois no sonho, não foi?

– Então. Aí que está. O que acontece com a gente, e vai acontecer enquanto estivermos juntos, é que sempre vai existir um Richard entre nós duas. Você nunca vai se entregar a mim por inteiro.

Diante dessa afirmação, Doralice baixou a cabeça e ficou pensativa. Não havia como negar que Joelma estava certa. Como ela não disse nada, foi a outra que insistiu no assunto:

– Olha. Eu vou te falar uma coisa que é a mais pura verdade. Pode acontecer seja lá o que for no futuro, mas de uma coisa eu estou certa. Eu nunca amarei ninguém do jeito que eu amo você.

Ao ouvir isso Doralice levantou a cabeça e encarou a amiga que, sem dar tempo para ela dizer nada, perguntou:

– E você?

– O que tem eu?

– Você pode dizer a mesma coisa?

Novamente Doralice ficou cabisbaixa e Joelma insistiu:

– Pode falar querida. Eu não vou brigar com você por causa disso. Afinal de contas, eu já sei a resposta e, se insisto em que você a pronuncie em voz alta, é mais para que você assuma isso. Você não vai poder fugir disso nunca. Então fale. Você pode dize a mesma coisa em relação a mim?

Doralice levou as duas mãos ao rosto e com voz chorosa, falou sussurrando:

– Isso não é justo. Você sabe que eu não posso.

– Ótimo. Isso já foi um começo. Agora, para que você se livre desse seu sentimento de culpa por achar que está me magoando, fale a frase.

– Que frase? Pra que você tem que ouvir que sinto um amor maior por alguém?

– Não precisa ser essa frase. Diga apenas por quem você sentiu um amor assim.

Doralice retirou as mãos do rosto e Joelma percebeu que ela também chorava. Controlando o choro e com voz entrecortada, a voz de Dora foi ouvida:

– Eu nunca vou amar ninguém do jeito que amei ao Richard.

Quando Dora acabou a frase, Joelma foi se aproximando dela e segurou sua nuca com firmeza, ficando ambas com as testas encostadas e disse com os olhos grudados ao dela:

– Viu só? Isso não é novidade nenhuma. Eu nunca esperei por isso porque sempre soube. – Dora pareceu ficar mais tranquila com a reação de Joelma, o que fez com que a loira continuasse: – Nunca se culpe por isso querida. O amor que você me deu já foi o suficiente para me fazer sentir uma felicidade que nunca tinha sentido na vida.

– Você deve estar me odiando agora.

– Eu nunca vou te odiar. Como poderia odiar alguém a quem só tenho que agradecer. Você na minha vida representou algo que eu jamais conseguiria com outro alguém. Se hoje sou uma pessoa melhor, devo isso a você.

Depois de dizer isso, Joelma ficou calada ainda na mesma posição, com seus rostos quase colados e os olhos sem desgrudarem. Teriam ficado assim por horas, se não fosse Doralice ter falado em um fio de voz:

– Joelma,

– Sim querida. – Disse Joelma também baixinho.

– Faz amor comigo. Eu quero.

Aquele pedido foi como se um interruptor liberando uma energia carregada de amor, entrega e desejo fosse acionado. Suas bocas se colaram e, sem desgrudar a boca, as duas se despiram e entraram em uma disputa sobre qual ia conseguir dar mais prazer à outra. Não houve perdedor naquela contenda, pois ambas se sentiram vitoriosas no final.

Quando, depois de sucessivos orgasmos, as duas se deixaram ficar deitadas de costas na cama, com o olhar perdido no infinito, surgiu um ar de melancolia que era a demonstração que as duas davam que aquela tinha sido a última vez entre elas.

Mas não foi. Durante todo o período de preparação para a viagem, elas se entregavam uma à outra em tórridas noites de amor e muito prazer,

Ainda naquele mesmo dia, voltaram a conversar sobre a viagem de Doralice aos Estados Unidos e os argumentos de Joelma sobre a Doralice levar o filho junto com ela ganhou destaque, Mas logo o assunto foi decidido a favor dos argumentos de Joelma que, quando lembrou à sua amada que o ida de Ricardo junto com ela era algo que estava implícito nos pedidos que Richard fazia nos sonhos delas.

Também, a partir desse dia, tanto Doralice como Joelma jamais questionaram que não se tratavam apenas de sonhos. A presença de Richard naqueles sonhos era entendida por elas como a forma possível dele se comunicar com elas.

Decidido que a viagem seria no princípio do mês de julho e Joelma foi convencida a não voltar para sua cidade ainda. A pedido de Dora, ela permaneceria morando na cidade e cuidando da casa e de alguns negócios que, em virtude do pouco tempo que dispôs para se preparar para a viagem, Dora deixou pendente.

Foi assim que, no dia primeiro de julho daquele ano, Joelma levou Dora e Ricardo até a capital onde elas embarcaram em um avião da Latam com destino a Dallas aonde chegariam ainda naquele mesmo dia a noite e, na manhã seguinte, seguiriam para a cidade de Ruston.

A despedida foi dramática, com lágrimas e, pela primeira vez, elas se beijaram em público, como também foi a primeira vez que fizeram isso na presença de Ricardo que, contrariado que estava por ter sido obrigado a acompanhar sua mãe, nem se importou com o fato.

Ricardo havia sido inscrito pelo time de futebol de sua escola para participar de um campeonato estadual na sua categoria de idade e o fato de não poder comparecer o deixou muito irritado, porém, não houve argumento que demovesse sua mãe de levá-lo junto com ela, pois desde a conversa franca que teve com Joelma, nunca mais duvidou que a presença de Ricardo na cidade natal de seu pai era mais importante até mesmo que a dela.

Nem tudo, porém, correu como o esperado. O tempo na região sudeste dos Estados Unidos estava ruim e havia o receio de que um furacão que se formava sobre o Oceano Atlântico avançasse pelo Golfo do México e atingisse a região. O voo então foi desviado para Miami onde permaneceu por dois dias, o que só serviu para piorar a irritação de Ricardo.

Tentando aplacar a raiva do garoto, Doralice pensou rápido e, alugando um carro, dirigiu três horas e meia até Orlando onde, durante a tarde do dia dois de julho e amanhã do dia seguinte, Ricardo viveu de forma inesperada a alegria de conhecer à Disneylândia.

Voltaram em tempo para embarcar em um avião na tarde do dia três e dormiram naquela noite na cidade de Dallas. Animada com a facilidade com que se saiu no percurso entre Miami e Orlando, Doralice alugou e saiu antes das cinco horas da manhã com destino a Ruston, O percurso, que é percorrido normalmente em três horas e quarenta minutos, gastou pouco mais de cinco horas em virtude do cuidado com que Doralice dirigia e a curiosidade que Ricardo passou a demonstrar a respeito da região, obrigando-a a parar várias vezes. Desta forma, já era quase onze horas quando chegaram ao destino e, assustados, se depararam com as comemorações do “Independence Day”, encontrando enorme dificuldade para encontrarem um local para se hospedarem, o que só foi possível em um motel (1).

Se a intenção de Doralice era aproveitar a tarde daquele dia para descansar, ela logo descobriu que isso não seria possível, pois o Ricardo ficou tão empolgado com a diversidade de eventos que se realizava, que ela se viu obrigada a levá-lo em varias delas.

Tudo teria corrido muito bem se não fosse um único problema. Quando estavam, Dora e o filho, tentando se enturmar e Ricardo insistia em participar dos vários jogos e gincanas que estavam sendo promovidos, eles encontraram problemas com o idioma. Dora descobriu que, aprender o idioma inglês vivendo no Brasil e depois usando em recepções de hotéis e nos aeroportos era uma coisa, usar esse conhecimento em meio à população de uma cidade onde só existiam pessoas que ali viviam, era outra muito diferente. O sotaque, o ritmo com que falavam e até mesmo a utilização de termos conhecidos apenas na região dificultava em muito.

Apesar disso, com muito custo, gestos e paciência, ela conseguiu inscrever Ricardo em um dos jogos. Era uma apresentação do time de Futebol Americano da Universidade da cidade vizinha que, em determinado momento, deixava os inscritos se apresentassem em algum dos lances criados exclusivamente para esse fim. Doralice ficou apreensiva, mas quando essas apresentações começaram, ela logo se tranquilizou, pois tudo era programado para que ninguém corresse nenhum risco.

Assim, um adolescente que foi destacado para receber a bola e tentar chegar com ela à Zona Final, o que implica na marcação do ponto conhecido como Touchdown, ao ver a bola vir em sua direção, foi ajudado por um jogador que fazia as vezes de adversário que fingiu se atrapalhar ao interceptar o passe e deixou que a bola chegasse ao rapaz que disparou sem ser alcançado por ninguém, em uma visível demonstração que aquilo fazia parte do espetáculo.

Quando Ricardo foi anunciado, o que não chamou muito atenção porque ele fora anunciado pelo sobrenome que era o de seu pai, Dora ainda se sentiu nervosa. Ricardo, com o uniforme usado pelos atletas de futebol americano muito maior que ele, causou riso da plateia, pois parecia que seria engolido pela roupa a qualquer momento. Entretanto, quis o destino, já que ele não tinha conseguido se comunicar com ninguém, que a tarefa que coube a ele seria a do chute direto que é dado em determinadas situações. Uma delas depois da marcação de um Touchdown, mas acontece em outras situações. Um jogador do mesmo time que ele segurou a bola oval em pé e o árbitro apitou indicando que ele podia chutar.

Para quem era reconhecido como o craque do time de futebol de sua escola, Ricardo não decepcionou e seu chute foi tão perfeito que causou admiração, porém, ele sequer teve tempo de vibrar com seu sucesso e foi engolido pelos jogadores da mesma equipe com ele, o que deixou Dora apavorada. Porém, esse pavor demorou pouco, pois não demorou trinta segundo e Ricardo surgiu, Alçado pelos brutamontes do seu time, ele estava sentado nos ombros de um deles e todos corriam em volta da arquibancada enquanto o público aplaudia.

“Os americanos, sem dúvida nenhuma, sabem realmente como fazer uma comemoração!” Pensou Dora ao observar o rosto feliz de Ricardo.

Porém, a presteza do chute do garoto chamou a atenção do treinador da equipe que foi conversar com o árbitro. Não se sabe o que eles combinaram e nem Dora entendeu nada, mas logo ficou claro que houve alguma irregularidade no lance e o Ricardo foi chamado para repetir o chute.

Novamente ele repetiu o feito. Nova algazarra, aplausos do público, reclamação do técnico e o lance foi anulado sob as vaias dos expectadores. Tudo isso só para que o Ricardo repetisse pela terceira vez seu feito.

Só na quinta vez que o técnico que reclamava pareceu se dar por satisfeito, o que provocou uma comemoração ainda maior. Dora não sabia se sentia medo ou orgulho ao ver seu filho, totalmente desconhecido naquela cidade, receber tanta atenção assim e, mais impressionante ainda, é que ele agia como se fizesse aquilo todos os dias de sua vida.

Doralice se sentia feliz e entrou na onda da torcida enquanto se controlava para não gritar a pleno pulmões a frase: “GOD SAVE THE AMERICA!”, quando o problema surgiu.

No momento em que foram entregar o prêmio por participação ao seu filho, uma mulher se destacou dentre os torcedores e se dirigiu aos membros da comissão organizadora falando algo que ela não conseguia entender direito, porém, a forma como falava deixava claro que ela estava protestando contra algo. Dora se concentrou ao máximo e conseguiu descobrir que aquela mulher estava reclamando da participação de Ricardo no evento, alegando que, por não ser morador na cidade, não teria esse direito e, para dar mais força ao seu argumento, fez questão de acrescentar que, muito provavelmente, aquele garoto nem americano era.

Sem se conter, Dora entrou na discussão. Podia até ser difícil se fazer entender por aquele povo, porém, estavam mexendo com seu filho e isso ela não ia permitir. Foi então até a comissão e explicou, com alguma dificuldade, que o Ricardo não era nascido na cidade e também não em território americano, mas por ser filho de um americano nato, ele tinha tanto direito como qualquer outro de estar ali, inclusive, por ser seu pai nascido naquela cidade.

Quando isso ficou entendido, as pessoas próximas que entenderam seus argumentos se dividiram. Alguns ficaram admirados e até comentaram a respeito da semelhança física de Ricardo com seu pai, pois o sobrenome que constava no crachá que penduraram em seu pescoço deixa claro de quem ele era filho. Com as pessoas que tinham que decidir divididas, um senhor se aproximou deles e tomou para si a defesa do garoto.

Era um senhor que contava com quarenta e cinco anos, porém, não aparentava essa idade. Seu porte atlético e a desenvoltura com que falava para todos fazia com que ele parecesse mais novo. Também ficava claro que ele gozava de uma boa reputação naquela cidade, pois todos o ouviam com atenção e, quando se dirigiam a ele, o faziam com respeito. Com a participação desse senhor que todos chamavam de Bob, o que indicava que seu nome devia ser Robert, logo a decisão foi tomada a favor de Ricardo.

Essa decisão foi recebida pela mulher que dera início à discussão com muita má vontade. Ela se dirigiu bruscamente ao homem que defendera Ricardo e eles tiveram uma breve discussão, de onde ela só conseguiu entender as últimas frases, quando o homem disse para a mulher que ela deveria esquecer o passado e não ficar buscando prejudicar aos outros sempre...

Dora não entendeu direito o que ele disse ao final da frase em virtude de um grupo de lideres de torcida passar por ela gritando os slogans do time, mas entendeu muito bem o que ela respondeu:

– Eu não me importo que seu filho esteja morto. Eu quero mesmo que ele fique para sempre no inferno e que todos de sua família o acompanhem logo.

No momento Doralice não entendeu direito o que um possível filho daquele homem pudesse ter a ver com aquela discussão toda e resolveu ir até ele para perguntar, porém, quando olhou na direção dele, o homem estava encarando a ela e seus olhos se encontraram.

Doralice teve que se apoiar no mastro de uma bandeira próximo a ela para não desabar no chão. Não pela aparência do homem, pois se fosse isso ela já teria percebido antes, mas sim pelo olhar. Não só pelo formato dos olhos, a cor, mas sim pelo jeito de olhar. Era como se um Richard mais velho estivesse encarando a ela, desviando os olhos apenas para olhar para Ricardo como se o estudasse atentamente, estivesse ali esperando por ela.

Porém, quando ela tentou se aproximar do homem, ele se virou e saiu andando apressadamente não dando chance para que ela o alcançasse.

Nervosa, segurou firmemente a mão do filho e saiu apressada em direção ao motel onde conseguira vaga para se hospedar. Não andou dez metros e foi interceptada pela mulher que, olhando para ela com uma expressão de ódio, começou a falar alguma coisa que, diante do tom de sua voz, só podia ser ofensas.

Tratava-se de uma mulher que, pelos trajes e cuidados com maquiagem e cabelos, aparentava ser uma pessoa com um bom poder aquisitivo e, avaliando a idade, achou que ela seria poucos anos mais velha que ela. Mas tudo o que Dora queria era evitar confusão, ela se desviou da mulher e continuou a andar, porém, a mesma não se contentou e deu um passo de lado para se manter a sua frente e impedir que ela saísse dali. Dora ainda tentou, porém, não conseguiu evitar que seu corpo fosse de encontro ao da mulher que, forçando um pouco, caiu no chão e começou a gritar e contorcer como se tivesse sido alvejada por uma rajada de metralhadora.

Dora não se importou com isso. Desviou mais uma vez da mulher, agora caída no chão e seguiu seu destino.

O tempo entre o instante em que a estranha mulher deu um passo de lado para ficar à frente de Doralice, o encontrão que a duas tiveram e a queda dela no chão, se somados, dá um total de quinze segundos. Porém, se alguém contasse a ela naquele instante que aqueles quinze segundos mudariam radicalmente o rumo de sua vida futura, Dora provavelmente tacharia essa pessoa de louca.

Mas foi exatamente isso que aconteceu.

Ao chegar ao motel Comfort Inn & Suites Ruston East, onde se hospedara, Dora observou que o relógio que ficava na recepção marcava dezoito horas e quarenta e cinco minutos, apesar do sol ainda estar visível no horizonte, o que ela logo atribuiu ao fato de ser horário de verão naquele País. Isso significava que, no horário de Brasília já era quase vinte e horas. Ela queria falar com Joelma, mas preferiu aguardar até que o Ricardo dormisse para assim poder ficar mais a vontade. Ligou então para o serviço de copa do motel e pediu um lanche, ela não pretendia mais sair do seu apartamento naquele dia e também queria se preparar para, no dia seguinte, sair à procura do avô de Ricardo, muito embora ela já soubesse quem era ele. O tal do Bob, que garantira ao seu filho o direito de receber o troféu por seu feito.

A pergunta era, será que ele saíra em defesa de Ricardo porque sabia que se tratava de seu neto, ou seria ele um desses paladinos da justiça que sempre saem em defesa daqueles que entende estarem sendo prejudicados.

O lanche foi servido através do dispositivo que o motel usava para que não fosse necessário abrir a porta. Doralice pegou o lanche, arrumou sobre a mesa que havia ali e esperou por Ricardo que estava no banheiro. Quando ele saiu, ela resolveu também tomar um banho é perguntou se ele incomodava em esperar por ela e que, caso contrário, poderia comer o seu lanche. Como o garoto disse que preferia aguardar pela mãe, ela se dirigiu ao banheiro.

Não se sabe se por estar distraída aproveitando a ducha cuja pressão da água atingia seu corpo provocando um relaxamento agradável, ou se pelo barulho da mesma, ela não ouviu o que acontecia no quarto da suíte enquanto ela lá estava, mas quando saiu do banheiro com uma toalha enrolada na cabeça, uma camiseta de alças e um short que formavam um conjunto que ela usava para dormir, Dora quase teve um desmaio. Sentado a mesa, de frente para seu filho e também para a porta do banheiro, sendo portando quem a viu primeiro, estava o Bob.

Seus olhares se cruzaram e depois o dele desceu por seu corpo, como se quisesse registrar cada detalhe daquele corpo que, com tão pouca roupa, deixava pouco à imaginação. Envergonhada, Dora baixou o olhar no mesmo instante em que Ricardo, vendo a expressão do homem à sua frente, se virava para poder vê-la e, sem sequer notar o rubor no rosto da mãe, foi informando.

– Mamãe, esse senhor disse que precisa conversar com você urgente. Eu não queria o deixar entrar, mas como já tinha visto ele hoje lá na festa, acabei concordando.

– Tudo bem meu filho. – Disse Dora depois de respirar fundo e se encher de coragem para vencer seu constrangimento e foi em direção à cama onde havia um roupão, vestindo-o a seguir e, enquanto fazia isso, sentia sua pele queimar, como se os olhos daquele homem tivesse esse poder.

Mas ela estava errada. Bob, assim que notou que ela ficou ruborizada, baixou a cabeça e evitou olhar para ela até que a ouviu dizer em inglês:

– Gostaria de agradecer por sua ajuda hoje. Tentei fazer isso na hora, mas como você saiu apressado, não tive essa chance, obrigada.

O rosto do homem que estava normal, de repente mudou de feição ao ouvir essas palavras e ele respondeu secamente:

– Não tem nada que agradecer. E também não vim aqui em busca de agradecimento, só vim avisar que você precisa deixar essa cidade imediatamente.

– Deixar a cidade? Como assim?

– Você mexeu com alguém importante e com certeza vai ter problemas.

– Que tipo de problemas? Eu não fiz nada?

– Se fez ou não fez não me interessa. O problema é que aquela mulher já fez uma denuncia formal e, provavelmente ainda hoje, a polícia virá te buscar.

– Me buscar? Do que você está falando? Buscar para que?

– Para comparecer diante de um juiz que vai estabelecer uma fiança. E, nesse horário, provavelmente vão te levar para a cadeia onde você ficará até amanhã.

– Pra cadeia? Por qual motivo?

– Pelo motivo de você ter agredido uma mulher, claro!

– Mas isso é uma loucura! Eu não agredi ninguém. Eu apenas esbarrei nela e, mesmo assim, porque ela se colocou na minha frente e não consegui evitar.

– Bom. Ela apresentou testemunhas. Então é assim que a lei funciona aqui. Você é presa, levada a um juiz que estabelece uma fiança e depois você vai a julgamento.

– Eu sei como funcionam as coisas aqui. Sou advogada no meu País. Lá é diferente, mas eu estudei a respeito disso na faculdade.

– Então você sabe que está encrencada.

– Nem tanto. Sou brasileira. Você acha que eles vão me prender aqui?

– Prender talvez não. Mas vão fazer um barulho daqueles e depois vão te expulsar daqui.

– E por que vão fazer barulho por causa de uma coisa de nada.

– Bom. Vou te colocar mais ou menos a par de como estão as coisas. A juíza que vai julgar seu caso é nova aqui e provavelmente vai estar isenta. Mas o Promotor Público vai ser um problema. Veja só, você sabe que aqui esse cargo é conquistado com o voto da população. Para seu azar, essa eleição deverá ocorrer em breve e, para mais azar ainda, a família da Ann é influente na região e, não o deixar a eles contente, pode significar perda de votos. Então ele vai forçar a barra contra você, pois assim vai agradar a eles. Além disso, ou seja, mais azar, nenhum advogado vai se esforçar em te defender porque não quer se colocar contra a família dela. Então, você acabou de entrar em uma situação muito difícil.

– Eu sou advogada, posso muito bem me defender.

– Mas você não tem permissão para trabalhar aqui, então esqueça isso.

– Espera um pouco. Você falou o nome daquela mulher. Como é mesmo? Ana?

– Não. O nome dela é Ann.

– Ann. Ann. Tenho a impressão que já ouvi esse nome antes.

– Essa Ann era namorada de meu filho Richard antes dele ir para o Brasil para morrer lá.

Havia um misto de revolta e dor na voz de Robert quando ele falou essa frase. Mas Dora estava tão admirada com o que aconteceu. Ela pensava: “Puta que pariu! A população desse País está acima de trezentos e trinta milhões de habitantes e fui esbarrar justo na ex namorada do Richard? Nem na mega sena a chance é tão pequena assim. Só que na mega eu nunca ganho, Porra de vida”.

O silêncio predominou no ambiente. Afinal, Robert tinha ido lá dar um recado e já o fizera. Para ele agora era questão de esperar até que Doralice fosse embora. Enquanto esperava ela dizer que já estaria saindo, ele prestava atenção no garoto que o olhava demonstrando interesse. Ele encarou o Ricardo com uma expressão neutra, sem demonstrar nenhum interesse especial por ele. Depois de um tempo, cansado de ver Doralice andar de uma parede até a outra no quarto, perguntou:

– O que você está esperando?

– Esperando para fazer o que? – Perguntou Dora sem esconder a surpresa.

– Para ir embora! Pegue suas roupas e leve seu filho para longe daqui. Não demora e a polícia vai bater naquela porta.

– Eu não vou embora. De jeito nenhum que ou fugir. Mesmo porque, eu não fiz nada. Fugir seria como confessar alguma culpa.

– Sim. Entendi. Você prefere ser presa? E esse menino? Você tem que pensar nele.

– O que eles vão fazer com meu filho se me prenderem.

– Eles vão levá-lo para alguma instituição que abriga menores.

– Que tipo de menores?

– Normalmente menores infratores. Mas fique tranquila, que nossa cidade é pequena e se tiver algum lá serão poucos.

– Nem sonhando que vão separar meu filho de mim. Não em um país estrangeiro.

– Então. O País é os Estados Unidos da América. Vocês dois que são estrangeiros aqui. Então, já viu que as coisas não são favoráveis a vocês. Além do mais, se ele te prender, poderão impedir sua saída do País até o julgamento e vão deportar seu filho. Vão mandá-lo de volta e vão entregá-lo às autoridades brasileiras. O que acontece depois disso eu não sei.

Isso Dora sabia. Se acontecesse o que Robert falou, e isso era o mais provável, Ricardo seria encaminhado a algum abrigo de menores em risco de vida, o que também significa menores infratores, pois esse risco de vida geralmente se refere a menores perseguidos por traficantes por causa de dívidas em virtude da compra de drogas. Preocupada mais com seu filho do que com o que poderia acontecer a ela, perguntou para Robert:

– Escuta aqui. Se eu sair agora, tem alguma chance deles me prenderem no caminho?

– Se você for pega antes de cruzar a fronteira sim. Mas nisso eu talvez possa ajudar. Eu tenho alguns amigos e acredito que consigo algumas horas antes deles darem o alarme da sua fuga. – Robert falou isso e ficou pensativo por um tempo e depois avisou: – Mas eu só faço isso porque sei que você não é do tipo perigoso. Não vá ficar imaginando que costumo proteger criminosos.

– Criminosa eu?

– Não foi isso que quis dizer.

– Mas foi o que disse.

Doralice então se sentou na cama e baixou a cabeça, apoiando-a em suas pernas e ficou assim por um longo momento. Quando Robert já demonstrava sinais de impaciência, ela finalmente levantou a cabeça e, olhando bem nos olhos dele disse:

– Eu vou fazer o seguinte. Vou sair, entrar naquele carro e ficar rodando por aí. Quando o dia amanhecer, vou me apresentar na polícia e enfrentar essa juíza. Não vou fugir porque isso equivale a uma confissão de culpa.

– Você que sabe. Mas saiba que as chances de você ser presa são muito grande, O que dá na mesma.

Doralice não respondeu. Pegou algumas roupas e foi em direção ao banheiro. Quando saiu, já vestida, mandou que o Ricardo fizesse o mesmo. Mas o garoto apenas vestiu a calça jeans que ela lhe entregou por cima da calça mesmo e a camiseta. Robert advertiu a Dora que, embora fosse verão, a noite poderia esfriar. Ela agradeceu, pegou um agasalho para o filho e outro para ela e disse que já podiam sair.

Como era um motel e ela não pretendia fechar sua conta, saíram em direção ao local onde estava estacionado o carro que ela alugara. Robert andou até uma caminhonete que estava estacionada próximo ao apartamento que ela ocupava, mas não entrou. Ele se encostou-se ao veículo e ficou olhando os dois se afastarem. Ninguém nesse momento percebeu que não houve despedida ou agradecimentos. Cada um foi para o seu lado sem dirigir a palavra ao outro. Doralice explicava em rápidas palavras o que estava acontecendo para seu filho que, por não entender o idioma, estava alheio a tudo o que se passava.

Mas Doralice não chegou ao carro. Quando já estava perto, luzes do carro de polícia clarearam todo o estacionamento do Motel e, com os pneus rangendo com a freada brusca, pararam a cerca de três metros de Doralice que ficou imóvel, impressionada com o fato dos policiais estarem com suas armas em punho como se estivessem diante da pessoa mais procurada do país.

Doralice foi abordada, confirmou seu nome quando o policial que parecia ser o chefe o pronunciou e lhe deu voz de prisão. Ela aceitou a tudo com resignação, porém, quando se aproximaram de seu filho, ela avisou:

– Tirem a mão dele. Ele não fez nada.

– Não fez, mas como é menor de idade e não tem ninguém que se responsabilize por ele, além de ser estrangeiro, vamos encaminhá-lo para um local onde ele fique em segurança.

– Ele não é estrangeiro. O pai do meu filho é Americano e, portanto ele tem a cidadania, embora não tenha o Green Card.

– A senhora pode provar o que está falando?

– Posso sim. Os documentos dele estão na minha bolsa.

O simples fato de Doralice não tentar pegar os documentos na bolsa e sim estendê-la ao policiar para que ele fizesse isso, agradou o policial que ficou um pouco mais relaxado. Então ele agiu como é normal naquele país. Chamou por alguém e um dos policiais era uma mulher que, atendendo ao chamado se aproximou e recebeu a bolsa e a ordem de procurar pelo passaporte de Ricardo. Ela o encontrou e entregou ao chefe que o abriu e leu. Quando acabou de ler, ele deu um assovio, olhou em volta e avistou Robert que a tudo assistia sem intervir. Então ele falou em voz alta para que o homem escutasse:

– Hei Bob. Aqui diz que esse menino é filho do Richard. Então ele é seu neto.

Embora já não tivesse dúvida nenhuma com relação a isso, pois além daquele olhar que era idêntico ao do falecido, ele também havia informado isso ao falar que a Ann foi namorada de seu filho antes deste ir para o Brasil. Então Robert se aproximou e, ao chegar perto, perguntou até com certo desdém:

– E daí? O que eu tenho com isso.

– O que você tem com isso é que, a não ser que você se recuse a isso, eu não posso levar o garoto para o centro de acolhimento. Na verdade, tenho que deixá-lo a seus cuidados.

– E se eu me recusar?

– Centro de acolhimento. – Disse o homem sem deixar transparecer nenhuma emoção.

Robert não respondeu na hora e ao vacilar, deu a Doralice a esperança de que ele poderia ser a tábua de salvação de Ricardo. Então olhou para ele, mas não disse nada. O olhar era carregado de uma súplica tão intensa que o homem, que já ia começar a responder, hesitou mais uma vez. Novo silêncio até que ele falou:

– Ok então. Já que é assim, eu levo o garoto comigo para casa. Mas só por essa noite. Se essa mulher tiver que ficar detida, eu o levarei até a delegacia e vocês façam o que acharem melhor.

Doralice explicou para o Ricardo o que estava acontecendo e o garoto se rebelou. Em seu julgamento, ficar ou não com aquele homem que era um desconhecido era um problema para ser resolvido posteriormente, no momento, o importante era evitar que sua mãe fosse presa. Mas como Dora estava atenta, percebeu o que estava se passando na cabeça do filho e ficou entre ele e os policiais e lhe disse baixinho:

– Por favor! Não faça nada. Apenas vá com aquele senhor. Ele vai cuidar de você.

– Mas, eu nem conheço aquele cara mamãe. Pior ainda, não entendo bulhufas do que ele fala.

– Tenha paciência. Quando ele falar com você, peça para que ele fale devagar. Você se lembra como se diz isso em inglês?

– Como não lembrar. Você e a tia Joelma me obrigaram a repetir isso milhões de vezes. – Respondeu o garoto se lembrando do quanto as duas mulheres insistiram para que ele aprendesse algumas frases básicas e, uma delas era essa.

Doralice deu então um olhar significativo para Robert que se aproximou, colocou a mão nos ombros de Ricardo e forçou para que ele encaminhasse ao seu lado, dirigindo-se até a caminhonete que logo foi colocada em movimento e se afastou dali. Sentiu-se agradecida ao perceber que o policial, de propósito, esperou por isso para que seu filho não visse o que ia acontecer a seguir, pois foi só a caminhonete sair da visão deles, que o chefe fez um sinal para a mulher policial que se aproximou dela com a algema na mão.

Ainda não era vinte e três horas da noite e Doralice já tinha passado por todo um processo de identificação e depois foi encaminhada para uma cela. Nesse momento, ela ainda informou ao carcereiro:

– Eu sou advogada. Tenho direito a uma cela especial.

– Aqui você não é ninguém, entre logo aí e cale a boca. – Disse o homem acostumado a lidar com malfeitores.

Mal completara doze horas que Doralice chegara à cidade natal do grande amor de sua vida, Richard, e ela já estava trancada em uma cela comum de uma cadeia pública.

(1) Motel nos Estados Unidos funcionam de forma diferente daquela que conhecemos no Brasil. Essa denominação é dada aos estabelecimentos hoteleiros que se localizam as margens das rodovias e são frequentados por viajantes. Daí não haver problema nenhum para Doralice e seu filho ficarem hospedados em um deles.

Informações sobre a música:

I'll Never Love This Way Again é uma canção interpretada pela cantora Dionne Warwick. Marie Dionne Warwick, (East Orange, Nova Jersey, 12 de dezembro de 1940) É prima em segundo grau da cantora Whitney Houston. Esta canção foi originalmente gravada em 1979 para o seu álbum Dionne. Foi regravada em 1999 pela cantora Regine Velsquez; em 2012 foi regravada pela cantora brasileira-britânica Jesuton para a trilha sonora da novela "Salve Jorge" e para o seu primeiro EP Because You Loved Me. A canção se tornou muito conhecida pelo Youtube e se tornou uma das mais pedidas. Dionne elogiou a cantora por ter regravado a canção e ela disse "Ela tem uma voz boa, perfeita, a canção ficou linda na versão dela (Jesuton)". E em 2016 foi regravada por [[Gary Valenciano]]

Jesuton, nome artístico de Rachel Jesuton Olaolu Amosu é uma cantora britânica que começou a fazer sucesso cantando nas ruas do Rio de Janeiro e com vídeos de pessoas que assistiram as suas apresentações que foram postos em sites como o Youtube. Ela é conhecida por fazer cover de artistas como Adele, Amy Winehouse, Roberta Flack e The Rolling Stones. [2][3]

Em 2013 gravou três canções, I'll Never Love This Way Again, para a trilha sonora da telenovela Salve Jorge, Holocene para Flor do Caribe e Because You Loved Me, para Sangue Bom, todas da Rede Globo. [4]

Em 2014, a cantora lançou ainda “Show Me Your Soul”, DVD com releituras de clássicos da soul music que contava com a participação especial do Marcelo D2.

Lançado em 2017, HOME, o seu primeiro álbum de músicas autorais, com produção assinada pelo reverenciado Mario Caldato Jr. (Beastie Boys, Marisa Monte, Seu Jorge), revelou Jesuton como uma compositora com sensibilidade para nos levar em jornadas de descobertas profundas.

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Comentários

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Grande Nassau, essa história esta muito boa, envolvente e como a Id@ falou essa temática é bem diferente do que estamos acostumados, eu estou adorando.

eu não consegui ler antes, mas me surpreendi com o desenrolar de tudo.

grande abraço

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Dora não tem paz na vida mesmo, nassau vc maltrata suas personagens.

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Mas uma história envolvente e comuna temática diferente.,, parabéns meu amigo.

PS: estrelas computadas !!!

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Esse contador de estrelas está desativado. Só pode.

É a segunda pessoa que diz que deu às estrelas e não aparece.

Mas isso é só pra constar, pois não costumo ligar pra isso. Pode ser estrela, sol, lua, nebulosa, planeta ou até buraco negro, supernova ou uma anã branca, o que eu acompanho é o número de visitas. Isso sim está preocupante.

Não chega nem a dez por cento do que era.

Acho que aquele bafafá todo afastou muita gente que faz parte da maioria silenciosa, que são aqueles que acompanham contos sem fazer cadastro.

Deve ter neguinho por aí soltando fogos por ter atingido seus objetivos.

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Eu também acho que está muito estranho !!!

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Excelente postagem, tive a honra de ser o primeiro a comentar e ganhar um pouco da "" cultura musical "" que ele nos brinda.

Assunto muito envolvente no que se refere aos sentimentos dos envolvidos.

Vai meu dez e três merecidas estrelas . . .

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As estrelas ficaram só nos comentários. Rsss.

Brincadeira, o que vale mesmo é o que foi dito antes. Fico feliz, pois apesar de escrever pelo prazer que sinto em fazê-lo, é sempre muito bom saber que, de alguma forma, algo de bom foi transmitido.

Na minha ideia, a leitura dessa série deve ter a música tema ao fundo, pois é isso que acontece enquanto escrevo.

Aguarde para relembrar outros sucessos. Afinal, um CD dessa época nunca tinha menos de dez músicas.

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