Despedi-me dele praticamente à força, porque ele insistiu diversas e diversas vezes para que eu ficasse. Não fiquei! Não queria e quando eu não quero, nem o Mark consegue me convencer do contrário. Infelizmente, aquele último jantar em São Paulo comprovou isso muito bem e isso eu lamentava profundamente. Seu eu tivesse aprendido a ser menos teimosa, ouvi-lo com mais frequência, teria evitado toda essa desgraça em que se transformou a minha vida.
PARTE 8 - DOUTOR GALEANO ENTRA EM CAMPO
Já na minha quitinete, liguei para o doutor Galeano que me atendeu quase que imediatamente. Carinhoso, cordial como ele sempre foi, encheu-me de perguntas afáveis, querendo saber do Mark, de mim e das nossas filhas. Eu tentei retribuir, mas sua experiência, ou talvez o meu tom de voz, logo fez com que percebesse que algo não estava bem e perguntasse o que eu temia:
- Fala, Fernanda, o que aconteceu dessa vez?
Respirei fundo, contei até três e comecei a falar como uma louca, resumindo rapidamente tudo o que havia acontecido desde o jantar em São Paulo e a situação em que a gente se encontrava. Rapidamente é uma forma de dizer porque a história foi longa, longuíssima, com umas duas interrupções por parte dele para confirmar uma e outra situação mais absurda, em especial o fato de eu ter dormido no apartamento do Rick em São Paulo e depois nossa estranha transa em seu apartamento aqui na minha cidade. Ao final, ansiosa, perguntei:
- O que eu faço?
Ele ainda ficou em silêncio por algum tempo, mas falou com sua voz cordial, e surpresa ditou a resposta:
- Nossa!
- Ai, doutor, não fala assim.
- Fernanda, Fernanda, Fernanda… Se você fosse minha filha, eu te daria uma surra de cinta! - Brincou, ou talvez não, pois se calou brevemente para, após um longo suspiro, falar: - Menina do céu, como é que você faz uma coisa dessas com o seu marido?
- Doutor, eu…
- Não, não, não, para! - Interrompeu-me: - Foi só uma pergunta retórica. Não estou te recriminando, nem posso, afinal, você própria já deve estar fazendo isso. Eu só peço que não me interrompa, afinal, já que você ligou para se aconselhar, é isso que eu vou fazer, ok? Então, escute-me com bastante atenção.
- Tudo bem, doutor, desculpa.
- Certo… - Respirou fundo novamente e continuou após um breve silêncio: - Certo, certo, certo... Tá tudo errado! Você tem consciência do que fez com a sua família? É claro que tem, que pergunta boba… Eu te conheço já há um bom tempo e sei que não é uma mulher dissimulada, talvez inocente, impulsiva, mas dissimulada não, então, acredito que saiba o tamanho do erro que cometeu. Errou feio com seu marido e com suas filhas! Apesar de não ter errado com elas consciente ou diretamente, era de se esperar que errando com o Mark, isso iria respingar nelas mais cedo ou mais tarde, correto? Infelizmente, foi mais cedo e da pior maneira possível, mas agora já aconteceu e precisamos trabalhar para curar as feridas.
- O que eu faço?
- O que o Mark pensa disso tudo?
- Ele quer se divorciar de mim, mas eu não queria…
- Vou conversar com ele para saber a extensão dos danos. - Falou, interrompendo-me: - Mas, sinceramente, conhecendo-o um pouco como também o conheço, acho difícil vocês saírem ilesos dessa vez.
- Poxa…
- Não adianta resmungar, agora não dá mais. Se você tivesse me ligado antes do jantar, eu já teria te aconselhado, aberto os seus olhos para as possíveis consequências dos seus atos. Agora já foi. - Tomou um ar e voltou a falar: - Você e ele são adultos, posso conversar e trabalhar seus sentimentos para, pelo menos, amenizar a dor da decepção, a frustração da derrota, mas não sei se será suficiente para continuarem juntos. Entretanto, nesse momento, acho que suas filhas deveriam ser o foco e seria muito prudente que vocês procurassem uma psicóloga para evitar que esse trauma se transforme em algo pior no futuro.
- Trauma, doutor?
- Fernanda, sua primogênita flagrou você aos beijos com outro homem!? Trauma, sim! Talvez, se ela tivesse sido criada numa família liberal, com aplicação no dia a dia dos conceitos que você e Mark mantinham extrafamília, ela não tivesse se chocado tanto, mas como vocês criam suas filhas dentro do conceito de família tradicional e monogâmica, ela só consegue interpretar a sua ação como uma traição ao pai. Daí, vem o trauma, da decepção que teve com suas ações.
Aquilo me atingiu em cheio e doeu no fundo da alma, mas lá, bem lá no fundo, eu sabia que ele estava certo: minha indecisão e depois a minha decisão equivocada no momento em que o Mark tomava as rédeas para resolver a situação, havia causado tudo aquilo. Fui sincera, pois via nele a única pessoa que ainda poderia me ajudar:
- Desculpa. Eu… Eu errei, eu sei, já entendi. Pelo amor de Deus, doutor, só o senhor pode me ajudar! O que eu posso fazer para consertar isso, doutor?
- Consertar é uma palavra que talvez não se aplique aqui, Fernanda, principalmente nesse momento, porque os ânimos parecem estar bem exaltados. Acho que seria mais prudente falarmos em avaliar, conter e curar ou conviver.
- Como assim “curar ou conviver”?
- Eu ainda não sei a extensão dos danos que sua decisão causou em sua família. Preciso conversar com o Mark para desenhar um caminho que possam trilhar. Lembrando que dependerei da boa vontade e da disposição dele em trilhar esse caminho com você para a cura. Caso contrário, minha cara, sim, infelizmente você terá que aprender a conviver com as consequências de seus atos.
Comecei a chorar novamente, mas ele não se abalou e voltou a falar:
- Vamos fazer assim: agora, acho que não adianta eu ficar conversando com você. Já entendi a situação, mas preciso ouvir o outro lado. Deixa eu ligar para o Mark e já volto a te ligar, pode ser?
- Pode… Pode sim, doutor.
- Você está acompanhada?
- Não.
- Você está sozinha, Fernanda!?
- Estou.
- Não tem ninguém que possa ficar com você agora, nesse momento, sei lá, mãe, pai?
- Meu pai não! - Respondi enfaticamente, lembrando-o do que eu havia lhe falado: - Minha mãe, talvez.
- Procure-a! Ficar sozinha agora é uma péssima ideia.
- Acho que não preciso…
- Precisa... Precisa e vai! Estou mandando você procurar alguém para ficar com você ou não vou te ajudar, entendeu? Quando eu voltar a te ligar, vou querer conversar com seu acompanhante também, ok?
- Tá, eu… Eu dou um jeito.
- Ótimo! Volto a te ligar, Fernanda. Cuide-se.
Ele desligou e uma angústia imensa tomou conta do meu peito. Entendi na mesma hora o porquê dele ter ordenado que eu procurasse uma companhia. Não ligaria para o meu pai nem que fosse o último homem na face da Terra. Liguei, então, para minha mãe que me atendeu, mas, pelo tom de sua voz, entendi que não ficaria à vontade comigo naquele momento. Tinha algumas amigas com quem talvez eu pudesse contar, mas, se eu contasse o que aconteceu e, pior, se a história se espalhasse, seria um escândalo sem precedentes na nossa cidadezinha e atingiria o Mark em cheio, além das minhas próprias filhas. Decidi ligar para a Bia, a única amiga liberal que eu tinha, contando que estava me separando e que precisava conversar com alguém senão iria pirar. Ela se prontificou a vir correndo ficar comigo.
Os segundos foram se amontoando, virando minutos que se transformaram em horas, e nada de ninguém: Mark não me atualizava sobre nossas filhas; Bia não chegava; e, o doutor Galeano também não me ligava. Eu não conseguia parar de chorar e já estava a ponto de me jogar da janela da minha quitinete para, talvez, quebrar uma unha, já que estava no primeiro andar. Nesse momento, o interfone tocou. Atendi correndo e era a Bia.
Assim que ela entrou, desabei de joelhos na frente dela, chorando o que eu ainda tinha dentro de mim. Naturalmente, ela se assustou com a minha situação e entendeu, sem termos trocado qualquer palavra, que a situação era muito mais grave do que ela podia imaginar. Ela não fez nada a não ser se ajoelhar na minha frente e me acolher em seus braços. Eu sequer tinha visto que ela estava acompanhada pelo Bernardo, a quem só cumprimentei muito depois, quando consegui parar de chorar. Ele entendeu, de imediato, que estava sobrando ali e saiu, dando uma desculpa qualquer que eu sequer me lembro e saiu. Só daí consegui falar:
- Perdi meu marido, minha família, tudo, Bia!
- Calma, Nanda, o que aconteceu? Vocês se amam pra caramba…
- É, eu sei. Amo ele de montão e sei que ele me ama também, mas eu pisei feio na bola. Ele não quer mais saber de mim.
- Credo, Nanda, o que aconteceu?
Contei do jantar em São Paulo, onde a minha ruína começou, e pelo semblante dela, vi que não teria como justificar o injustificável. Ainda assim, ela me ouvia pacientemente, enquanto eu falava tudo o que se desenrolou depois, até chegarmos no flagra que a Maryeva nos deu na churrascaria. Ela estava atônita, com os olhos arregalados e uma mão na frente de sua boca:
- E é isso! - Finalizei.
Ela ainda ficou me olhando por alguns segundos, sem saber o que falar ou por onde começar, mas não tinha como deixar de falar o óbvio:
- Poxa, Nanda, fazer isso com o Mark por uma paixonite!? O que você tem na cabeça, mulher?
- Eu sei! Eu… Eu… Eu entendi. Errei… feio! Burra, burra, burra…
- Jesus! E ele, aliás, eles como estão?
- Ele não quer mais saber de mim; as meninas eu ainda não sei. Bem, a Maryeva está me odiando... - Enxuguei uma nova lágrima e expliquei: - Bia, você tinha que ver o tanto que ela me xingou. Cada nome que acho que nem mesmo eu conhecia. Não sei onde ela aprende aquilo!
- Com a vida, Nanda, com a vida, internet, amigos, escola…
- É…
- Ah, caramba… Eu havia combinado com o Bernardo dele ir atrás do Mark, dependendo de como encontrássemos você aqui. Já não sei se foi uma boa ideia…
- Ah não! É… Foi boa sim! O Mark deve estar precisando conversar com alguém também e ele se dá tão bem com o Bernardo que talvez ele aceite desabafar.
- Nanda, eu não sei nem o que dizer. Não consigo imaginar o que você está sentindo.
- Desculpa te ligar, mas eu não sabia mais com quem falar.
- Relaxa! Não tem o que desculpar. Você fez certo.
Não havia muito o que falar que pudesse aliviar a minha tensão, mas ela começou a falar igual uma maritaca de todo tipo de assunto, permeando com ideias, sugestões de como eu me reaproximar do Mark, tudo sem me dar tempo de ruminar minha tristeza. Funcionou, porque o tempo foi passando sem que eu visse. Logo, o que não foi tão logo assim, meu celular tocou e vi que o doutor Galeano tentava me ligar:
- Bia, é ele!
- Ele quem? O Mark!?
- Não, o doutor Galeano, um terapeuta que nos ajudou no passado.
- Então, atende ele! Tá esperando o quê?
Atendi, tremendo e, ansiosa, já fui perguntando:
- Doutor, falou com ele?
- Falei, Fernanda, falei. - Respondeu e respirou fundo antes de prosseguir: - Ele está realmente muito magoado. Eu prefiro não dizer em término, mas hoje, agora, não há chance de uma reconciliação.
- Eu… Eu já imaginava isso, doutor. Conheço ele, sei que dessa vez não terei perdão.
- Não, você está errada: no perdão dele, eu acredito! Acho até que poderão ser amigos; mas casal, Fernanda, infelizmente…
Calei-me, esforçando-me para não desabar e acho que demorei mais do que o necessário, pois ele próprio continuou:
- Fernanda! Você ainda está aí? Está tudo bem?
- Estou, doutor, estou aqui sim. Bem, bem, bem, eu não tenho como estar, né?
- Ainda está sozinha?
- Não. Tem uma amiga minha aqui comigo.
- Posso falar com ela?
Concordei e passei o telefone para a Bia, dizendo que ele queria falar com ela. Surpresa ela o atendeu:
- Boa tarde. Isso! Meu nome é Bia, sou amiga da Nanda.
Houve um breve silêncio e ela continuou:
- Sim, já estou a par. Ah, sim, sim, concordo. Também penso assim. Posso tentar sim.
Mais um breve silêncio e ela voltou a falar:
- E como faço isso? - Nesse momento, ela me olhou e, medindo as palavras, disse: - Aqui, eu acho que não consigo.
Novo silêncio e ela prosseguiu, concordando com algo que ele lhe havia dito e passando seu telefone celular para ela:
- Claro, doutor, fique tranquilo que vou ficar de olho nessa cabecinha oca. Boa noite.
Assim que se despediram, ela me devolveu o celular e ele já voltou a conversar comigo:
- O Mark, apesar de triste, decepcionado, está bem tranquilo, calmo e voltarei a conversar com ele em breve. Quem me preocupa nesse momento é a filha mais velha de vocês. Até propus dele trazê-la aqui para conversarmos juntos, mas ele ainda não confirmou. Disse que ela está se adaptando às informações. Então, sugeri que ele me mantivesse informado e sempre de olho nela.
- Ahamm…
- Fernanda, quero te perguntar uma coisa, posso?
- Você ama esse Rick a ponto de jogar sua família para o alto?
A pergunta me surpreendeu e fui sincera:
- Nunca, doutor, nunca mesmo! Eu só pensei que poderia ter com ele um relacionamento parecido com o que o Mark tem com a Denise, algo do tipo amigos com vantagens, entende?
- Mas os atores não tem o mesmo perfil, tem? Digo, no caso deles, não existe paixão, existe?
- A Denise é apaixonada nele, mas o Mark não…
- Isso! Por isso, essa situação funciona para eles, não existe paixão recíproca que possa evoluir para algo mais forte, entendeu?
- Mas eu… eu…
- Não! Esculta. - Interrompeu-me: - O Rick está apaixonado por você, não está?
- Sim. Pelo menos, ele diz que sim.
- E você também está apaixonada por ele, não está?
Eu me calei, tentando encontrar uma justificativa que o convencesse que não, mas ele não me deu tempo:
- Fernanda, você está ou não? Preciso que assuma seus sentimentos para entendê-los e resolvê-los de vez consigo própria!
Suspirei fundo e confessei:
- Estou, doutor, estou. Acho que estou… Não sei…
- Então, é simples: abandone o Mark, suas filhas e vá viver sua paixão. A vida é tão curta…
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO, EM PARTE, FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL NÃO É MERA COINCIDÊNCIA, PELO MENOS PARA NÓS.
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