Bernardo pediu um lanche e ficamos conversando mais sobre como a minha vida havia sofrido aquela derrocada. Ele estava chocado com tudo o que eu contava e nada do que eu falava era suficiente para melhorar seu semblante, nem mesmo quando contei que havia decidido terminar de vez e me afastar do Rick, quando ele me mandou um “agora é tarde, né!” na testa e levou um baita beliscão da Bia. Eu não podia culpá-lo, aliás, se ele estava assim, fiquei imaginando como o Mark deveria estar, certamente disso para pior. Após muita conversa, ele convidou Bia para irem embora, mas ela disse que ficaria comigo:
- Não precisa, Bia, já estou melhor.
- Foda-se o seu melhor, enquanto você não estiver ótima eu não saio do seu lado! Vou ficar e acabou!
PARTE 10 – ABRINDO OS OLHOS
Eles acabaram dormindo em minha quitinete. Bia e eu na minha cama e ele num sofazinho. O coitado, grandalhão, ficou extremamente mal acomodado e acordou todo torto e dolorido no dia seguinte. Não podia atrapalhar ainda mais a vida de ninguém, então liguei na empresa e avisei que estava com um problema de saúde e iria ao médico durante a parte da manhã. Depois, pedi que eles me dessem uma carona até a cidade deles, a mesma do doutor Galeano, assim eu faria minha consulta e eles poderiam retornar às suas vidas. Chegamos lá por volta das dez da manhã e me deixaram na clínica, onde o doutor Galeano já me aguardava de braços abertos, mas com uma cara amarrada:
- Entre, Fernanda, a gente tem muito o que conversar.
- Tá tudo bem com o senhor, doutor?
Pensei que ele fosse me mandar à merda naquele momento, pois me encarou com um semblante que eu nunca havia visto antes, mas, ao contrário, continuou sendo extremamente profissional. Respirou fundo e respondeu:
- Estou bem, mas estaria melhor se soubesse que meus amigos também estão bem. Infelizmente, não é o caso, não é?
- Pois é…
- Conversou com o Mark?
- Sim. Ah, sabia que conversei com a Mary também? Tivemos uma primeira conversa ontem e ela até me pediu desculpas pelos xingamentos. O Mark conseguiu algum milagre lá que eu ainda não sei como.
- Eu liguei para ele e conversamos um pouco. Aproveitei para dar algumas dicas de como abordá-la, mas ele já havia trabalhado muito bem com ela. Eu também cheguei a conversar com sua filha que, diga-se de passagem, parece ser uma menina muito, mas muito inteligente.
- Igual o pai…
- Acredito que sim! - Concordou, olhando-me com uma vontade de falar “ainda bem, né”: - Ela já aparentava estar bem tranquila e, apesar de não me conhecer, foi bastante receptiva, o que até me surpreendeu. Eu entendi o bom trabalho do Mark quando ela própria me disse que o pai havia conversado muito com ela e explicado que um erro não poderia, por si só, anular toda uma vida de acertos.
- Ele falou isso de mim!? - Perguntei, com os olhos ficando marejados.
- Falou! Ele é muito inteligente, Fernanda, muito sagaz, eu diria, e soube domar os demônios interiores da filha muito bem, usando um jogo de cintura que talvez eu não tivesse. Vou dar os parabéns para ele quando o encontrar! - Falou e me olhou com cara de surpresa, como se tivesse se lembrado de algo importante, perguntando: - Ah, aceita um café? Eu ia tomar mesmo.
- Aceito sim, por favor.
Ele foi até sua máquina de cápsulas e fez todo o procedimento que eu já conhecia bem: ligou, esperou aquecer, escolheu o café, extraiu o néctar, voltou com as xícaras, entregando-me uma e se sentou à minha frente. Eu o olhava curiosa e ele continuou:
- Do que falávamos mesmo? Ah sim: do Mark e da Maryeva, lindo nome por sinal. Parabéns.
- Obrigada.
- Então, ele foi espetacular! Ainda assim, acho que seria prudente que vocês providenciassem uma terapia para ela, afinal, ela ainda pode estar internalizando os efeitos do trauma que sofreu.
- Eu… Eu vou conversar com o Mark, doutor. Faremos o que for melhor.
- Acredito em você! - Disse e tomou um gole de seu café: - E o tal Rick?
- O que tem ele?
- Como “o que tem ele”? Já tomou alguma providência.
- Eu o bloqueei, no celular, redes sociais, WhatsApp, tudo!
Ele colocou a mão esquerda sobre o rosto e balançou sua cabeça negativamente. Depois, soltou:
- Fernanda, às vezes, você parece uma criança… Isso lá é forma de se resolver um problema, de se terminar um relacionamento?
- Não tenho relacionamento com ele, doutor!
- Ah não!? E por que esse problema todo, então? Talvez, seja então algum exagero do Mark, não é?
Eu entendi o que ele quis dizer e, apesar de eu estar certa de que não queria mais o Rick na minha vida, não me sentia pronta para dizer isso para ele. Alguma coisa me impedia. Tentei explicar para ele que eu nunca quis causar todo esse rompimento no nosso casamento que eu pretendia apenas ter um amigo para momentos esporádicos, como o Mark tinha com a Denise. Naturalmente, ele me disse, de forma praticamente idêntica, o que todos já haviam falado, de que, como havia paixão dos dois lados entre eu e Rick, aquilo tinha tudo para degringolar para o pior imaginável, como efetivamente aconteceu:
- Eu… Eu vou falar com ele, doutor. Eu prometo! Só não sei direito ainda como…
- Ligando e dizendo: Rick eu não te amo! Amo o meu marido, as minhas filhas, a família que construí com eles, a minha vidinha simples e pacata do interior, e não quero mais você, nem que me procure. Siga a sua vida. Desculpe qualquer coisa. Simples assim!
- É! Eu… Eu vou…
- Ótimo! Aliás, só será ótimo se for mesmo o que você quer. Só tome essa decisão se você for realmente cumprir, porque ela poderá ser o diferencial para você recuperar ou perder sua família de vez.
- Eu sei, doutor. Eu vou fazer. Prometo!
- Poderia fazer na presença do Mark. Aposto que iria contar belos pontos a seu favor.
Infelizmente eu sabia que não. Lembrei-me no mesmo momento que havia feito exatamente dessa forma durante nosso último encontro lá no Jangada, mas no dia seguinte, eu, estupidamente, acabei me deixando levar e fui flagrada aos beijos por Maryeva. Relembrei para ele essas passagens e ele concordou que se eu repetisse todo o procedimento na presença do Mark, não teria o efeito que ele havia imaginado:
- Ok, então… Quero te pedir um favor, posso?
- Uai, claro! Que favor?
- Quero que você faça um exame de sangue e coleta de material para verificar se não foi drogada?
- Drogada!? Como assim drogada? Por quem?
- Pelo tal Rick.
- Doutor, que história é essa?
- Fernanda, estranhei bastante tudo o que você me contou da sua última transa com ele. Posso até estar engano e espero estar, mas tudo leva a crer que você possa ter sido drogada para ter ficado daquele jeito.
- Ah, doutor, o senhor já está viajando…
- Será!? - Interrompeu-me: - Então, não há qualquer problema em você atender esse meu pedido.
Eu o olhava desconfiada e já imaginando que o Mark tivesse feito uma pintura a lá “Da Vinci” retratando o Rick como o próprio Lúcifer:
- Foi o Mark, né? Ele falou mal do Rick e o senhor está achando que ele fez algo para torná-lo culpado, né?
- Antes fosse, Fernanda, pois assim, eu poderia imaginar ser apenas uma crise de ciúme, alguma forma de insegurança da parte dele; mas realmente essa dúvida é minha e parte da minha experiência médica.
- Doutor, acho que não precisa…
- Não vai te custar nada! - Interrompeu-me novamente: - Eu é que estou te pedindo, o seu terapeuta. Só quero ter certeza de onde estou pisando e principalmente com quem você vem se relacionando.
Se antes eu estava encucada, sua forma de falar me deixou assustada. Ainda assim eu confiava no Rick, tanto, mas tanto, que concordei em fazer os testes que me propôs. Dessa vez, ele sequer chamou sua filha para me acompanhar. Ao contrário, ele próprio me colocou em seu carro e me levou ao laboratório do seu amigo, que colheu amostras de sangue, cabelo e saliva, mesmo tendo se passado um bom tempo daquela transa. Depois disso, voltamos ao consultório:
- Bem, vamos falar sobre o Mark… - Começou num tom neutro, mas denunciando que o assunto seria sério: - Ele disse que não te quer mais e dará seguimento no divórcio. Tentei explicar para ele que você poderia ter sido vítima de uma paixão avassaladora, mas que já estava voltando ao seu juízo perfeito, mas mesmo assim, ele disse que não quer mais continuar num relacionamento incerto.
Eu ouvia a tudo em silêncio e cada vez mais cabisbaixa, mas, dentro de mim, acho que eu já estava pronta para aquela dura realidade: o meu marido não me amava mais:
- Eu matei o amor dele, não foi?
- Não diria isso, mas hoje ele não vê condições de continuarem juntos porque considera que não dá para confiar em você. Tentei argumentar que, de certa forma, ele também era culpado, afinal, ele havia te liberado para um encontro solo, mas ele foi firme em dizer que fez isso porque confiava que você conseguiria aproveitar os momentos sem que ele precisasse estar por perto, fiscalizando, freando, enfim, sendo mais pai que seu marido.
Minha cara devia estar péssima, pois ele parou por um momento, olhando-me com pena, antes de prosseguir:
- A boa notícia é que ele não te quer mal algum. Disse que, se for possível, pretende ter uma boa relação, afinal, vocês têm filhas… Fernanda!? Você está me ouvindo?
- Aham… O que eu faço, então?
- As decisões que tomamos são sempre nossas, Fernanda, e devemos tomá-las com o maior cuidado porque sempre geram algum tipo de consequência. Eu não vou te dizer como agir, mas pense comigo: esse caminho que você escolheu está te gerando bons resultados? Será que se você continuar nele irá melhorar ou piorar no futuro? Será que suas filhas irão te aceitar com esse que cisou uma parte da sua família? Não vou tomar as decisões por você, mas tudo me parece tão claro…
- Está sim, doutor, está! Eu errei e preciso consertar isso. Já sei como vou começar e será saindo daqui hoje. Vou terminar com o Rick: eu não tenho chance alguma de ser feliz ao lado dele.
- Por que acha isso?
- Minhas filhas nunca o aceitariam e eu não conseguiria viver sem elas. - Ele não concordou, nem discordou, mas seu semblante indicava que apoiava minha decisão: - Depois vou procurar o Mark e ter uma conversa franca: se eu sentir que ele tem condições de me perdoar, vou lutar por isso; senão, vou deixá-lo livre. Eu não posso prejudicá-lo ainda mais.
- E suas filhas?
- Elas são tudo para mim e eu farei de tudo para merecer a confiança e amor delas novamente. O Mark disse que me ajudaria e acredito nele: ele sabe o tanto que amo nossas filhas e sabe o quanto elas também precisam de mim.
- Muito bem, Fernanda! Gostei bastante de suas conclusões. Acho que você já tem um… como é que vocês administradores chamam mesmo? Ah sim, um plano de ação. Execute-o e me ligue sempre que precisar de um aconselhamento antes de tomar uma decisão importante, ok?
- Ligo sim, doutor. Obrigada.
Despedi-me dele, mas antes de sair, perguntei:
- Doutor, e os exames?
- Assim que ficarem prontos, eu te aviso. Vai tranquila. Ah não, vem cá! - Disse e me puxou para dentro de sua sala novamente: - Seu atestado! Vou dar um atestado de saúde para um afastamento de uma semana, tudo bem? Assim, você terá tempo para…
- Não, não…. Não quero.
- Como assim não quer?
- Preciso ocupar meu tempo e minha mente. Se há alguma chance de eu reconquistar o Mark, será por trabalho e merecimento. Ficar chorando em casa não é algo que agradaria o meu carequinha.
- Certeza?
- Tenho sim.
- Nem para hoje?
- Não há necessidade. Eu me viro lá na empresa.
Despedimo-nos enfim e fui até a rodoviária, retornando num ônibus até minha cidade. Passava um pouco das treze horas e fui para a empresa, afinal, como eu disse, precisava ocupar meu tempo e mente. Justifiquei minha ausência para o RH, mas, como eu era uma das principais dirigentes daquela unidade, não me cobraram nada, nem justificativa, nem documento. O dia passou rápido. Consegui me concentrar bem, trabalhando a base de uma dose caprichada de cafeína de trinta em trinta minutos. Aquele ambiente me fez bem e tomei uma decisão, mas precisaria de concordância e apoio para executá-lo.
Chegando em minha quitinete, recebi um buquê com um bilhetinho do Rick. Este era óbvio, dizia que ele não conseguia falar comigo, que estava com saudades, preocupado, esperando notícias e etc. O buquê sequer subiu para a minha quitinete, sendo deixado num lixo próximo da porta da entrada. Subi e logo desci novamente, indo até uma pizzaria próxima, onde comprei três pizzas tamanho família, pedindo que entregasse duas na minha antiga casa. Depois, voltei com uma para a minha quitinete. Entrei para tomar um banho, esperançosa que o Mark pudesse me ligar e convidar para comer aquelas pizzas com ele. Terminei meu banho e saí enrolada numa toalha, mas o tempo passava e nada de ligação. Apenas uma mensagem surgiu em meu WhatsApp algum tempo depois, com um simples “obrigado” por parte dele.
Acabei me resignando porque talvez um contato mais próximo com minhas filhas ainda não fosse indicado pelo recente flagra. O Mark saberia a hora certa de nos aproximar, eu sabia disso. Comi duas fatias com um refrigerante e guardei o restante na geladeira. Ansiosa, não consegui me conter e fiz uma ligação bem tarde da noite, acho que até acordando o meu destinatário. Conversamos um bom tempo e contei um resumo do que minha vida havia se tornado. Ele se surpreendeu, óbvio. Depois, perguntei se uma certa proposta de trabalho ainda estava de pé e ele me disse que precisaria confirmar, mas retornaria em minutos. Desligamos. Em quinze minutos, ele me ligou novamente, confirmando, mas dizendo que eu teria que partir em quinze dias para aproveitar uma janela de oportunidades. Confirmei que aceitava e ele me passou mais algumas explicações. Anotei tudo, combinamos os demais detalhes que ficariam ao meu cargo e alguns aos dele, e desligamos. Era a melhor decisão, apesar de não ideal. Dormi mais cedo.
No dia seguinte, logo cedo, bem cedinho mesmo, levantei-me e me produzi da melhor forma possível, como uma verdadeira executiva. Saí da minha quitinete diretamente para o escritório do Mark. Ninguém havia chegado ainda, mas minutos depois sua secretária chegava, abrindo a porta e entrando. Entrei pouco depois e, naturalmente, ela estranhou minha presença. Perguntei se o Mark demoraria muito e ela estranhou mais ainda, sinal de que nossa separação ainda não estava na “boca do povo”. Ela disse que ele chegaria em breve e me ofereceu sua sala para esperá-lo, o que aceitei, entrando, fechando a porta e me sentando numa das poltronas de atendimento Cerca de dez minutos depois, a porta se abria e fechava atrás de mim e pouco depois um Mark surpreso e curioso me olhava enquanto ele dava a volta na mesa para se sentar em sua poltrona:
- Oi, mor… Ô, caramba! Um dia eu ainda me acostumo... Oi, Mark.
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO, EM PARTE, FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL NÃO É MERA COINCIDÊNCIA, PELO MENOS PARA NÓS.
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