Ela começou a conversar amistosamente comigo e com ele, sempre arrumando algum jeito de tocá-lo, muito mais do que seria necessário. Pouco depois, começamos a ser servidos, iniciando-se com uma saladinha bonitinha, mas, como em todo restaurante chique, “inha” demais. Enquanto degustávamos aquelas folhinhas, um senhor muitíssimo bem vestido e classudo demais, por entre ou talvez com pouco mais de sessenta anos aproximou-se, cumprimentando-nos todos com um boa noite e foi recebido efusivamente pelo Callaghan que se levantou para cumprimentá-lo com um abraço. Seria nada mais que outro amigo do Callaghan e nada significaria se, pouco depois, outro homem não tivesse se aproximado, sendo também cumprimentado pelo Callaghan e apresentado para a Lilly:
- Querida, este é o Rick, filho do nosso grande amigo. Venha conhecê-lo.
PARTE 35 - ENTRE A TEMPESTADE E A BONANÇA
Aquele nome fez meu sangue gelar. Quando vi que o Rick que se aproximava era o Rick que me afastou da minha família, senti vertigem. Mark, num primeiro momento, arregalou os olhos, surpreso, mas os semicerrou logo após, irado com a aproximação daquele que havia causado o caos dentro de nossa família. Lilly, incomodada porque não é educado interromper o jantar de alguém, ainda mais da altíssima classe e dentro de um restaurante exclusivíssimo como aquele, ainda se levantou e foi cumprimentá-los. Callaghan, feliz como um “pinto no lixo”, depois passou a apresentá-los a todos na mesa que nos cumprimentaram à distância, com exceção do Mark, que aquele senhor fez questão de cumprimentar pessoalmente. Rick até se aproximou também para cumprimentá-lo, mas desistiu ao notar a forma como meu marido o encarava. Após isso, aquele senhor pediu desculpas por terem interrompido nosso jantar.
Mark olhava para o Rick como se quisesse esganá-lo e acho que queria realmente. Eu sentia a sua tensão à distância e tinha a quase certeza de que ele estava prestes a fazer alguma besteira. Por pior que fosse a situação, aquilo me deixou feliz, pois entendi que ele ainda me amava, mas eu, naturalmente, não poderia deixá-lo se rebaixar e coloquei minha mão sobre a dele para mostrar do lado de quem eu estava, apoiando-o ou segurando-o, não sei bem. Ele me olhou inconformado, mas aceitou meu contato e ainda trançou seus dedos nos meus, como que realmente dizendo “me segura senão eu vou lá!”. O Rick, naturalmente à distância, abusou da situação e ficou me encarando a todo o momento, protegido na falsa segurança de estar atrás daqueles dois homens.
A Lilly voltou para a mesa, acesinha por interagir novamente com a gente, mas notou de imediato um clima estranho. Madura, inteligente, sagaz como era, observou que o Mark encarava sem cessar e com cara de poucos amigos, aliás, de máxima inimizade, o Rick, e deve ter observado também que ele, por sua vez, não desviava os olhos de mim:
- Oh, my God! (Ah, meu Deus!) - Falou e levou uma mão à boca, intuindo o óbvio: que o Rick era o causador de todo o problema em meu casamento.
Mesmo absortos naquela tempestade repentina, consegui ouvir quando Callaghan se virou para a Lilly e propôs de pedir que colocassem mais duas cadeiras em nossa mesa para que o seu amigo e o filho se sentassem conosco, mas a Lilly foi mais rápida e o podou:
- Querido, por favor, a boa educação não autoriza mudarmos a solenidade previamente estabelecida com nossos amigos.
- Mas querida, faz tanto tempo que não encontro o meu Jafar…
- Jantaremos com eles outro dia, amanhã se você quiser e se eles puderem, mas hoje eu preciso recusar.
O Callaghan pareceu não ter gostado da negativa, mas se resignou, frente aos marcantes e incisivos olhos daquela mulher. Eles conversaram mais alguns minutos e se despediram de todos, saindo em seguida. Callaghan voltou a se sentar e passou a conversar conosco como se nada tivesse acontecido. Talvez ele não tivesse notado, mas o clima na mesa era péssimo, difícil mesmo de se disfarçar. Voltamos a comer e por mais que ele tentasse interagir, o Mark se retraiu, tentando ainda controlar sua “fera interior”. Somente após a entrada e duas belas doses daquele caríssimo whisky, meu marido voltou a interagir, miseravelmente pouco.
Num dado momento, o celular da Cora vibrou e ela, vendo o interlocutor, mostrou ao Callaghan que se mostrou preocupado e, lamentando, pedindo mil desculpas, disse que teria que se ausentar por alguns minutos para atender a uma ligação importantíssima. Ninguém o confrontou, aliás, a Lilly até o encorajou, parecendo querer conversar conosco. Assim que ele se levantou, ela foi bastante objetiva, pedindo com ares de ordem irrecusável:
- Cora e Hana, preciso tratar de um assunto muitíssimo pessoal com Mark e Fernanda. Poderiam nos deixar a sós por alguns minutos?
Elas se surpreenderam, mas nada disseram, levantando-se e saindo em direção a uma sacada aberta na lateral do salão:
- É o seu Rick aquele que saiu daqui, não é, Fernanda? - Perguntou.
- Por favor, Lilly, foi um erro termos vindo aqui. - Respondi e contestei: - E ele não é meu Rick, nunca foi e nunca será! Meu único homem é o Mark, ele foi apenas um erro que vou passar a vida tentando corrigir com o meu marido.
- Erro!? Não, não foi. Aquilo foi só uma coincidência. Conheço meu marido e tenho certeza que ele não armaria uma situação dessas contra vocês, principalmente, sabendo do meu apreço pelo casal amigo. Conversarei com ele depois e essa situação não se repetirá. Têm a minha palavra!
Mark continuava calado e acho que ela também se apiedou do meu caipira de grande e ferido coração:
- Mark, por favor, meu querido, sua esposa se portou maravilhosamente bem e nada fez que pudesse deixá-lo em uma situação desconfortável. Acalme-se, você vai acabar adoecendo assim.
Ele somente a olhou, mas sua educação se sobrepunha ao seu orgulho de macho, evitando que ele dissesse tudo o que gostaria de dizer naquele momento. Eu achei que deveria falar por nós, no entanto:
- Talvez hoje eu tenha feito o certo, Lilly, mas eu cometi o maior erro da minha vida quando, numa noite como essa e num restaurante também luxuoso, talvez não tanto quanto este, desautorizei meu marido que só queria me proteger e à nossa família, ficando ao lado daquele… daquele… - Não consegui completar e apenas suspirei para evitar um bom xingamento, se é que há xingamento bom.
- Tenho certeza que você se arrepende disso, minha querida…
- Todos os dias da minha vida! - Completei, interrompendo-a: - Desculpe…
- Não há o que se desculpar, Fernanda. Falar o que se sente é maravilhoso, principalmente quando vem do fundo do coração. Eu acredito nela, Mark, vejo sinceridade em suas palavras e no seu olhar, preocupado com a sua dor. Ah, e fique tranquilo, em paz mesmo, porque hoje serei apenas a amiga que vocês precisam, meu pedido está suspenso para um outro dia.
Mark continuava em silêncio e vez ou outra, suspirava profundamente, tentando trazer paz a seu próprio coração. Realmente o Rick abalava o meu marido muito mais do que eu imaginava e o pior era saber que eu havia causado tudo aquilo naquela fortaleza:
- Mark, por favor, o que eu faço para você ficar bem? - Perguntei.
Ele suspirou fundo uma vez mais, irado, tenso e me olhou nos olhos sem saber o que dizer:
- Dançar! Vão dançar. Música sempre acalenta as almas e os corações que se amam. - Disse a Lilly.
Ele a olhou surpreso, parecendo não muito convicto, mas ainda assim se levantou e me esticou a mão para acompanhá-lo. Naturalmente aceitei e fomos novamente para o meio do salão. Naquele momento, alguns casais já arriscavam uns “dois pra lá, dois pra cá”, alguns bem desajeitados, mas já era suficiente para nos escondermos ali sem chamar tanta atenção. Assim que ele me puxou para si, senti que a pressão foi maior que a necessária, talvez devida a sua tensão:
- Eu estou aqui, mor, fica tranquilo. Nunca mais vou te deixar. Pode confiar, nunca mais você terá que se preocupar comigo.
- Por que segurou minha mão quando aquele animal começou a te encarar?
- Para mostrar quem eu havia escolhido. É você, sempre foi você! O que aconteceu antes, foi apenas um erro idiota, injustificável da minha parte, não que isso diminua a importância da merda que eu fiz…
- É!? Sei… E o que você sentiu?
- Sinceramente? Medo de não conseguir te proteger de você mesmo. Eu vi você o encarando com sangue nos olhos. Tudo o que eu não queria é que você fizesse algo que se arrependesse depois. Você pode até não acreditar em mim, mas eu me preocupo com você, de verdade!
- Mesmo que fosse contra ele?
- Contra qualquer um, Mark! Sou sua esposa e da mesma forma como você está aqui para entender tudo melhor e garantir minha segurança, eu tenho que fazer o mesmo por você, das formas que eu conseguir. Eu te amo, já te falei um milhão de vezes isso e se for necessário, falarei um milhão mais. Quero o seu bem acima de todos eles, pode acreditar.
Ele me encarava com um semblante sério e respirou fundo duas vezes, tentando se aliviar de toda a tensão. Por fim, senti sua mão gentil roçando a minha nuca e depois tentando levar a minha cabeça para deitar em seu ombro. Deixei-me guiar. Dançamos um pouco assim, grudados, em silêncio, até que ele o quebrou:
- Obrigado. Talvez se você não tivesse feito aquilo, eu teria mesmo partido para cima dele. Teve uma hora que eu estava olhando para ele, mas já não via mais nada…
- Tudo bem. Eu estou aqui. Esquece ele e foca só em mim, o resto não importa.
Senti quando seus braços me envolveram toda em um abraço apertado, carinhoso, cheio de tudo o que já havíamos sentido um dia. Não era apenas gratidão, mas um conjunto de todos os bons sentimentos que sempre cultivamos um pelo outro. Pela primeira vez em muito tempo, senti que o seu amor por mim estava novamente ali, com ele, comigo, conosco:
- Quer ir embora? Eu não preciso de mais nada, nem ninguém. - Perguntei.
- Somos convidados. Por mais que eu não esteja nem aí para o tal Callaghan, a Lilly parece ser uma boa pessoa. Ela não merece uma desfeita dessas.
- Tá. Então, vamos voltar para a mesa? Esqueci de colocar um protetor de silicone e esse sapato está pegando no meu mindinho.
Ele me olhou surpreso e sorriu, balançando negativamente a cabeça como se dissesse “Nanda sendo a Nanda, né!”. Voltamos e todos já estavam de volta, inclusive o Callaghan que nos encarava curioso. Assim que nos sentamos, ele foi direto:
- Peço desculpas, Fernanda, aliás, aos dois, mas eu não sabia que o filho do meu amigo era o causador da crise entre vocês. Juro que não sabia! Se soubesse, eu teria abreviado a estada deles aqui conosco e sequer teria cogitado convidá-los para se sentarem à mesa.
Ele me pareceu sincero. Seu olhar parecia demonstrar que falava a verdade. Ou ele era o pior tipo de pessoa, dissimulada, falsa e difícil de se desmascarar. Tanto é que o próprio Mark fez um meneio de cabeça, balançando-a afirmativamente, aparentemente aceitando suas desculpas. Lilly emendou:
- Meu marido por ser um safado, Fernanda, às vezes, até mais do que o necessário, mas sei que nunca faria algo desse tipo para magoá-los. Principalmente, porque, como sabem, temos lindos e deliciosos planos para ambos.
- Certo, eu… Bem, vamos esquecer desse incidente, ok? - Mark falou e brincou com o Callaghan pela primeira vez: - Mas só aceitarei suas desculpas se me servir mais uma dose desse “whiskynho” barato que você comprou, Callaghan…
- Barato!? Custou quase o meu rim esquerdo! - Callaghan respondeu e riu, pegando a garrafa e servindo outra boa dose para o Mark e depois para si: - Mas esse é realmente muito bom, meu querido. Vamos aproveitá-lo porque não sei quando teremos nova oportunidade.
Passaram a beber e o Mark passou a conversar mais animadamente com o Callaghan. Estranhamente, agora era o Mark quem mais perguntava que falava, enquanto degustávamos o prato principal, um lindo bifinho assadinho, redondinho, bem pequenininho, com um molhinho desenhado ao seu redor. Agora era o Mark que parecia curioso e disposto a tirar o máximo de informações do Callaghan sobre seus negócios e sobre ele próprio. Foi assim que descobriu, da boca do próprio, que ele não nascera em berço de ouro. Ao contrário, disse que começara como um empregado de base de uma das empresas do pai da Lilly e que, numa premiação de final de ano aos melhores funcionários, a conheceu. Inclusive, contou detalhes de seu relacionamento com ela, deixando-nos surpresos com os toques de romantismo e da forma carinhosa como falava:
- Estão vendo? Por isso, digo que não houve maldade por parte do meu rei. Ele é safado, não maldoso.
- Safado mesmo! Fui promovido de vassalo a rei, tudo por causa da minha espada flamejante, Mark! - Falou e gargalhou alto, chamando a atenção de todos ao nosso redor e tomando um leve cutucão da Lilly: - Ela se apaixonou pela minha espada e pela safadeza que ensinei para ela depois…
- Nem tanto, meu querido, eu já não era virgem. - Lilly contestou e se virou para nós: - Eu era inclusive noiva quando conheci o Callaghan, prestes a me casar, mas, sabem como é, paixão arrebatadora.
- É!? Não sei… - Mark resmungou e se virou para mim: - Você sabe como é, Fernanda?
Entendi a indireta e o olhei entristecida porque sempre que pensava que estávamos nos entendendo, ele me dava uma cutucada. Era como se ele tivesse a necessidade de me ferir, talvez para mostrar como o seu ferimento ainda sangrava. Baixei meus olhos pois não queria discutir, afinal, o erro fora meu e toda punição ainda seria pouca pelo que eu causei em minha família, mas ele levantou meu rosto gentilmente apoiando o meu queixo e me olhou no fundo dos olhos, beijando-me suavemente os lábios. O que falou logo a seguir quase me fez chorar:
- Mas acho que realmente você já encontrou o caminho da roça de vez, não é!? - Sorriu e me piscou, feliz: - Só que demorou um pouco, não acha?
- Mor!?
- É isso aí! Acho que a gente ainda tem lenha pra queimar juntos, entendeu? Jun-tos!
Vi em seus olhos algo que eu procurava incessantemente há tempos. O perdão finalmente estava ali. Meus olhos marejaram, comecei a tremer, acho que minha pressão caiu e fiquei tonta. Ele começou a me soprar, como fazemos no interior quando alguém “sai do ar” e voltei, afinal, eu não sairia de seu lado nunca mais. Aliás, se ele me quisesse naquele instante, eu abandonaria tudo e todos, inclusive meu emprego, enfim, tudo mesmo, para poder voltar para ele e minhas filhas:
- Sem chorar! - Falou, rindo da minha cara e ainda brincou: - Se borrar a maquiagem antes de eu te fazer gozar hoje, vou ficar muito injuriado.
Eu o abracei com tamanha força que quase perco o equilíbrio e caio da minha cadeira. Se não fosse ele ter me segurado, eu teria caído mesmo e, sinceramente, eu não estava nem aí para a vergonha que passaria naquele restaurante chique. Como falávamos em português, nossos “amigos” não entendiam patavinas do que estava acontecendo. Quando me controlei um pouco e o soltei, eles nos encaravam e falei, feliz da vida para a Lilly o que havia acontecido:
- Ele vai me dar mais uma chance. Não vamos mais nos divorciar.
Todos sorriram, mais o casal evidentemente. A surpresa ficou por conta do Callaghan que se levantou de sua cadeira, circundou a mesa e veio nos abraçar, feliz da vida com a nossa reconciliação, só após foi seguido pela Lilly. Cora e Hana também vieram nos cumprimentar, talvez para não ficarem deslocadas, mas não pareciam tão interessadas na nossa reconciliação. Ao voltar para seu lugar, o Callaghan não perdoou e pediu que o garçom trouxesse o champanhe mais caro e exclusivo que tivessem, pois precisávamos comemorar. Saiu em seguida e logo o maitre trouxe uma garrafa cujo nome não me lembro e após aprovada pelo Callaghan, a abriu com a perícia de um espadachim, literalmente fazendo uso de uma pequena espada:
- Ao casal, que seja eterno. - Disse Callaghan, levantando um brinde.
- Não poderia ter falado melhor, querido. - Concordou a Lilly.
- E que sejam bem vindos a nossa singela casa. - Complementou, piscando um dos olhos para o Mark, sem ser rejeitado.
Brindamos aquele momento: eu e o Mark como o reinício de uma história que prometia ser sem fim; eles sequiosos com o início de uma nova era de seu grupo. As cartas estavam postas e parece que eu jogaria em dupla com o meu marido. Entretanto, as intenções de um bilhete entregue por um garçom para mim poderia por tudo a perder...
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