CAPÍTULO 14
***MARCOS VALENTE***
— Isso foi intenso... — comento quando as portas do elevador se fecham, levando embora a equipe da revista e Anthony ri.
— Só o começo, depois ela entendeu...
— Você não lhe deu exatamente muitas opções...
— É claro que dei! Ela poderia fazer a entrevista ou não, eram duas! — finge-se de ofendido e eu estreito os olhos, — O quê?! Eu poderia simplesmente ter dito que a entrevista estava encerrada! Isso seria lhe dar apenas uma opção! Eu fui muito legal! — afirma, fazendo-me sorrir. E eu quase me arrependo de ter me permitido isso quando Anthony se dá conta de que não há mais necessidade para estarmos tão próximos e, como se tornou rotina nos últimos dias, foge.
Afasta-se de mim sem qualquer cerimônia e se despede com nada além de uma piscadela, mesmo que não haja um motivo ou necessidade reais para isso. Isabella ainda está fora com Carmem.
Conforme ele atravessa os cômodos e fica cada vez mais distante, eu não faço nada além daquilo que também se tornou rotina desde que voltamos da lua de mel, acompanho seu rebolado a levar para longe de mim, me perguntando quando é que isso vai parar de parecer errado.
Quando o encontrei parado diante do espelho, minha única vontade era a de agarrá-lo ali mesmo. Exatos sete dias desde a última vez que senti seu gosto, que afundei o nariz em sua pele, e eu tinha a impressão de que se não o fizesse, uma imensa catástrofe aconteceria, um asteroide se chocaria com o planeta terra, talvez.
E, conduzido por uma força imparável, me permiti me aproximar, mesmo que eu soubesse que ele me afastaria, porque enquanto eu agonizo em desejo, Anthony continua impassível sobre qualquer possibilidade a respeito de nós dois. É foda.
Como esperado, ele resistiu. Mas, surpreendendo-me, me deu mais do que eu teria pedido, e menos, muito menos do que eu precisava, antes de fugir. Não me passou despercebido que ele não me disse não. Apenas, fugiu.
A sensação foi fodidamente desesperadora, e, se não fosse pela equipe entrevistadora ter chegado naquele exato momento, eu provavelmente teria, outra vez, me escondido no meu próprio quarto, sendo eu a precisar fugir da presença de Anthony para recuperar um pouco que fosse da minha sanidade.
Com uma ereção dolorida, forcei em meus pensamentos imagens nada agradáveis, precisando dar um jeito nela antes que a revista estivesse aqui. Aos poucos, a prova física da minha necessidade por Anthony foi eliminada, mas, em minha cabeça, a prova abstrata seguia mais forte a cada resposta que ele dava para a entrevistadora.
Foda. Foda para caralho. Esse homem... Tive vontade de rir de mim mesmo. Como é que algum dia eu pude acreditar que Anthony era qualquer coisa que não imperioso? Ele praticamente transpira segurança e determinação.
Ainda parado no hall de entrada, agora, completamente sozinho, nego com a cabeça, expiro com força e passo a mão pelos cabelos.
Em um reflexo habitual, olho para o elevador, me perguntando se eu não deveria procurar alívio em outro lugar. Mas a lembrança da última vez que tentei fazer isso toma minha mente de assalto, deixando claro que essa é uma péssima ideia, uma muito ruim mesmo.
Se tem algo de que não preciso é de mais uma sessão de humilhação. E do que é que você precisa Marcos? Rio, sem humor algum, quando a resposta se desenha em minha mente com uma clareza absurda, logo depois da pergunta: do meu esposo.
***********
Como me sinto? Ridículo.
Estou disposto a agir diferente? Nem um pouco.
Com o ouvido colado à porta do meu próprio quarto, aguardo a movimentação costumeira nas madrugadas da minha casa desde que Anthony se mudou. Sim, eu estou stalkeando meu esposo e só Deus pode me julgar por isso.
Tony raramente dorme uma noite inteira sem acordar para beber água. Eu poderia colocar um frigobar em seu quarto para tornar sua vida mais confortável? Poderia! Mas se eu fizesse isso, tornaria nossos esbarrões, às vezes acidentais, outras, nem tanto, impossíveis. E eu não estou disposto a abrir mão deles, não enquanto eles forem praticamente tudo o que tenho quando o assunto é sua companhia espontânea, ou quase isso.
Então, por enquanto, estou feliz com o fato de que o próprio Anthony ainda não teve a brilhante ideia de ter água em seu quarto, e continua, todas as noites, saindo no meio da madrugada para ir até a cozinha.
Ouço o abrir de uma porta e me afasto alguns passos da minha, como se o barulho significasse alguma ameaça. Ridículo! Eu me tornei a porra de um homem ridículo! Mas realmente não me importo, não agora.
Espero um minuto inteiro antes de girar minha maçaneta e atravessar o portal, mas para minha surpresa, ao invés de encontrar o corredor livre para alcançar Anthony na cozinha, encontro um pequeno ser humano, com desespero estampado no rosto, envolto em um imenso cobertor, agarrando com firmeza uma boneca.
Não percebo que corri até alcançar Isabella no que deve ter sido menos de um segundo.
— O que houve? — questiono, espalmando a mão em suas bochechas com um gosto acre em minha boca que não é justificável, mas está lá. É terrível, desesperador e se torna ainda pior quando Isabella se lança em meu peito, agarra meu pescoço e começa a chorar copiosamente.
Meu coração acelera, esmurra a caixa toráxica e eu pisco os olhos, sem ter ideia alguma do que fazer. Puta que pariu, o que eu faço?
— Bella, meu bem... Bella, você está com dor? Está doendo em algum lugar? — Tento olhar em seu rosto, mas ela se recusa a tirá-lo de meu pescoço. Aperto-a contra mim sem saber se isso oferece ou não algum conforto. Não sei como crianças funcionam, é o mesmo que com adultos? Não faço ideia!
Não sei quantos minutos se passam até que o choro seja substituído por soluços e Isabella pareça se acalmar um pouco.
— Está tudo bem, Bella... Está tudo bem... — digo baixinho com medo de fazer ou dizer qualquer coisa que possa levá-la de volta ao estado de prantos recém superado, — Por que nós não voltamos pro seu quarto? — Ofereço, mas a resposta é imediata. Um não sonoro e um aperto ainda maior em meu pescoço, além de um estremecimento que atravessa todo o corpo pequeno.
Mas que porra! O que aconteceu naquele quarto? Com os joelhos plantados no chão do corredor, franzo o cenho e sinto todo o meu corpo enrijecer. Olho para um lado e para o outro, subitamente preocupado que o que quer que esteja no quarto de Isabella, saia, já que ela deixou a porta aberta. Um bicho, talvez? Mas, como?
Penso em bater no quarto de Anthony, mas se eu o acordar no susto apenas para lhe apresentar uma Isabella completamente desestabilizada, é provável que eu infarte o homem. Porra! Puta que pariu! A voz do meu esposo soa alta em minha cabeça como uma sirene “Não importa o quanto ela pareça estar triste, você não faz promessas, você me pergunta. Sempre! Você sempre me pergunta!”
Mas, caralho! Ela não parece triste, ela está aos prantos, claramente assustada e desesperada. Tomo uma decisão. Ergo Isabella em meus braços e, lentamente, caminho com ela até o meu quarto. Deixo a porta aberta, escancarada, na verdade, para que caso Anthony saia do próprio quarto, ele nos veja. Me sento em uma das poltronas, mas isso não abala o agarre de Isabella ao meu redor.
Sua respiração parece menos descontrolada agora que nos afastamos da origem de seu problema, entretanto seus braços e pernas continuam me segurando tão firmemente quanto estavam antes e eu fico quieto, ansioso pelo momento em que ela vai se sentir melhor, em que ela vai se sentir segura.
Quando sua cabeça finalmente se levanta, a sensação que me atravessa ao ver seus olhos inchados, a pele vermelha, e semblante pesado é completamente desconhecida e irracional, mas é tão absurdamente ruim, que eu sei que há poucas coisas que eu não faria para não voltar a senti-la.
Isabella e eu nos encaramos por tempo nenhum e por muito tempo. Nunca estivemos completamente sozinhos, exceto por aqueles poucos minutos em que me vi comendo slime.
Na primeira vez em que a vi, no hospital, quando descobri sua existência, eu lamentei por ela. Lamentei por saber que Anthony era tudo o que ela tinha. No entanto, conforme me aproximei de seu pai, descobri que não havia motivos para que eu sentisse qualquer pena da criança. Anthony diz ser tudo o que Isabella precisar e a cada dia eu me torno mais consciente do quão verdadeiras são essas palavras.
Isabella não precisa de ninguém além do pai e, ainda assim, conquista quem quer que ouse se aproximar. Eu comi slime, porra! E assisti a uma animação sem pé nem cabeça sobre uma princesa guerreira, que não é princesa, e um dragão fêmea em um reino oriental.
E se isso não fosse evidência o suficiente do nível de hipnose exercitado pela mini pessoa em meus braços, há, ainda, o fato de que não consigo passar por absolutamente nada que me lembre ela, sem parar, comprar e ansiar pelo sorriso que ela vai me dar quando receber o presente.
E, agora, aqui estamos, nos encarando, enquanto meu peito é tomado por uma necessidade tão devastadoramente absurda de proteger essa criança, que eu não sei o que fazer com ela, e nem entender como ou quando isso aconteceu.
É Bella quem quebra nosso contato visual quando volta a afundar o rosto em meu pescoço, mesmo que já tenha afrouxado o aperto ao meu redor.
— O que houve, Bella? O que tinha no seu quarto? Era um bicho? Ele voa? — tento determinar o tamanho da ameaça e ela balança a cabeça. Sinto os movimentos para cima e para baixo, mesmo que não os veja.
Tudo bem, é um bicho, então. Meu peito se alivia um milímetro apenas, mas se alivia. Afinal, não é uma pessoa. Mesmo que a ideia de um invasor seja absurda, uma parte de mim ainda temia por ela.
— E qual é o tamanho desse bicho, Bella? É grande? — Outra vez, a cabeça acena, confirmando.
— É grande, Marcos! É grande! Muito, muito grande! — a voz trêmula me faz apertar os punhos.
— Tudo bem, Bella! Eu vou tirar ele de lá, tá? Onde ele estava?
— Dentro do armário, Marcos! O monstro! O monstro tava dentro do armário! — afirma, estremecendo, e voltando a apertar os braços ao meu redor com todas as forças que tem. Espera, o quê? O monstro gigante estava dentro do armário? Uno as sobrancelhas, fazendo um esforço para entender o que pode ser e quando a compreensão me atinge, um sorriso imenso se espalha pelo meu rosto, ao mesmo tempo que meu corpo se solta sobre o encosto da poltrona, relaxando, aliviado.
— Bella... — chamo, baixinho, e ela traz o rosto para diante de mim, mas mantém os olhos abaixados, — Você abriu o armário, meu bem? — A cabeça balança devagar, negando. — E quando você viu o monstro, você estava dormindo? — Outro aceno de cabeça, dessa vez, positivo, — Entendi. — O rostinho, agora, parece muito menos apavorado do que envergonhado e eu beijo a testa de Isabella.
— O que você acha de nós chamarmos seu pai agora? — seus olhos se arregalam antes de ela balançar a cabeça em uma negativa frenética. Outra vez, franzo o cenho.
— Eu não quero ir lá fora, Marcos! Não quero! — finalmente ergue os olhos, encontrando os meus, reforçando o pedido desesperado com olhos brilhantes por lágrimas não derramadas. Abro a boca, não digo nada, apenas balanço a cabeça, concordando. Tudo bem... Sem sair do quarto, então...
— O que você acha de a gente construir uma fortaleza antimonstros, Bella? — testo.
— Uma fortaleza? — Arregala os olhos, interessada, e eu mordo o lábio, tentando lidar com a minha própria ideia genial.
— Unhum... — murmuro e me pergunto como é que uma fortaleza anti-monstros deveria parecer. Quase rio de mim mesmo ao me dar conta de qual é a minha preocupação. Pelo amor de Deus, Marcos!
Me levanto da poltrona e coloco Isabella no chão. Ela para, de pé, mas não me solta e por isso é ainda agachado que explico a ela o meu plano.
— Ok! Nós vamos cobrir você com muitos edredons! Você sabia que edredons tem poderes mágicos e espantam os monstros? — Sua boca forma um “O” surpreso. Me esforço bastante para continuar sério, — E, aí, quando você estiver totalmente protegida, eu vou atravessar o corredor e chamar seu pai, tudo bem?
Recebo uma confirmação silenciosa.
— Nós precisamos pegar os cobertores lá no closet. Você me ajuda?
— Ajudo... — a voz é baixa, ainda insegura em realmente me soltar, percebo.
— Vamos fazer assim, você fica na porta, eu pego os cobertores, te entrego e você coloca na cama. Tá bom?
— Tá!
— Muito bem! — Com delicadeza, solto suas mãos pequenas do meu pescoço e me ergo. De mãos dadas com Isabella, caminho na direção do closet.
— Você fica aqui, ok? — Seus olhos se movem de um lado para o outro, assustados com a possibilidade de ela ficar sozinha.
— Eu não vou a lugar algum, Bella... Vou estar bem aqui... E você logo vai estar protegida pela fortaleza. Lembra? Você é uma guerreira muito forte, igual a princesa do filme do dragão, não é? — Isso parece lhe dar forças. Ela balança a cabeça, concordando, e eu solto sua mão.
Encontro rapidamente a sessão de roupas de cama em meu closet e tiro de lá dois edredons. Caminho até Isabella e coloco um deles em seus braços pequenos, ela faz todo o caminho até a cama, o deixa lá e volta para mais. Fazemos isso por mais três vezes até eu determinar que 8 edredons são o suficiente para uma fortaleza.
Olho para a pilha de cobertores sobre a cama e levo a mão ao queixo, me perguntando o que fazer agora.
— E agora? — Isabella dá voz ao meu questionamento mudo.
— Agora... Agora nós vamos envolver você na armadura!
— Uma armadura? — seus olhos estão arregalados!
— Sim! Uma armadura!
Me aproximo da cama e abro um dos edredons. Isabella caminha ao meu lado, não perde nenhuma de minhas ações. Quando o tecido está suficientemente aberto, eu a ajudo a subir na cama.
— Agora você precisa se enrolar nele! Assim os monstros nunca vão poder te achar! — Obedientemente, ela rola, puxando uma das pontas, e envolve todo o tecido muito fofo ao redor do corpo. Quando termina, está parecendo um imenso charuto na outra ponta da cama. Isabella se tornou um rolo gigante, há tanto tecido ao seu redor que ela provavelmente, não consegue nem mesmo ver nada a sua frente.
Eu quero muito rir, mas isso vai acabar com todo o propósito da coisa, então me controlo, — Tudo bem, agora eu vou construir os muros! — Trago o charuto infantil para o meio da cama, depois, pego os outros edredons e cerco o que a criança se tornou, porque apesar do ar condicionado, se eu a cobrir com mais alguma coisa, ela, provavelmente, vai morrer de calor.
— Agora eu estou protegida, né, Marcos? — A voz soa quase divertida com a missão em que nos envolvemos, eu diria.
— Completamente! — concordo, — E, agora, eu vou chamar seu pai, tudo bem?
— Não, Marcos! Não me deixa sozinha! — e, outra vez, usa o tom amedrontado, droga! Passo a mão pelos cabelos, pensando em como lidar com a situação.
— Bella... Você é uma guerreira, lembra? Guerreiros não tem medo de proteger suas fortalezas. Então você não tem medo de proteger a sua, certo? — ofereço o raciocínio pronto, basta que ela concorde, mas é claro que ela não faz isso.
— Eu tenho medo sim, Marcos! — a resposta é imediata e minha vontade de rir cresce na mesma proporção que meu desespero para encontrar uma solução.
— Mas, Bella, a gente precisa do seu pai, ele é o maior caçador de monstros do mundo inteiro... Se tiver algum monstro por aí, ele vai acabar com todos!
— Sim! Ele vai! — concorda, imediatamente. Nem pisca e isso me faz sorrir. Não por divertimento, mas por confirmar algo que eu já sabia. É esse o nível de confiança que Isabella tem no pai.
— Com o seu pai por perto, a gente não vai precisar ter medo de nada!!
— Você também tá com medo dos monstros, Marcos? — Parece surpresa e só então me dou conta de que me inclui na frase.
— Huum... Só um pouquinho, Bella! Mas você não vai poder contar pra ninguém!
— Tá! E você também não vai poder contar pra ninguém que eu fiquei com muito medo!
— Eu não conto! Prometo!
— De mindinho?
— De mindinho!
— Então quando os monstros forem embora, eu te dou o meu mindinho! — Explica e, dessa vez, não consigo segurar a risada, só mantê-la baixa.
— Tá certo. Agora eu vou buscar seu pai... Protege sua fortaleza!
— Tá, Marcos! Não demora!
— Não vou! — dou uma última olhada em Isabella antes de me virar, e, quando o faço, não seguro o grito de susto. Anthony está parado bem na porta do meu quarto e o sorriso que se desenha em seu rosto com a minha reação não deixa dúvidas de que ele está ali há tempo mais do que suficiente.
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***ANTHONY RODRIGUES ***
Ergo as sobrancelhas e, apesar do coração ainda acelerado, recuperando-se do susto de não ver Isabella na cama, curvo os lábios diante da reação assustada do homem de mais de um metro e oitenta. Minha vontade é de perguntar se Marcos também está com medo de monstros, mas, mesmo que eu não tenha todas as informações sobre o que realmente aconteceu aqui, a situação bizarra deixa claro que ele foi mais gentil com a minha filha do eu jamais teria sido capaz de pedir, só por isso, deixo essa passar.
Acordei, como sempre, para beber água. Um olhar para a tela da babá eletrônica foi o suficiente para me desesperar. Isabella não estava lá. Saí da cama desabalado, pronto para correr até o seu quarto, vasculhar a casa, o mundo inteiro, se necessário fosse para encontrá-la e garantir sua segurança.
Passei correndo pela porta aberta do quarto de Marcos, mas, como em um desenho animado, segundos depois, a imagem captada pela minha visão periférica finalmente fez sentido, exceto que ela não fazia sentido algum e eu voltei meus passos, precisando confirmar que eu não estava louco ou ainda dormindo.
Marcos ajeitava uma pilha de edredons ao redor de uma Isabella enrolada em um imenso cobertor. Só fui capaz de saber que ela estava lá, porque ouvi sua voz. Apoiei-me no batente da porta, precisando engolir o desespero que já transbordava de mim, encontrando saída pela minha boca, pelas minhas narinas, pelos meus ouvidos e poros.
Enquanto normalizava minha respiração, observei a cena com atenção e ouvi cada palavra que disseram. Ouvi Marcos dizendo que ela não devia ter medo de nada, porque é uma guerreira e Isabella assegurando que, sim, de monstros ela tem medo, sim!
Depois, ouvi a garantia de que enquanto eu estivesse por perto, Isabella não precisava ter medo de nada, porque eu a manteria segura não importasse o que. Ouvi também o acordo de mindinho que não teve mindinho, e, por fim, a despedida antes que o bravo protetor, Marcos, fosse em busca do maior guerreiro de todos os tempos, eu.
E, à medida que meus olhos viam a cena se desenrolar diante deles como um teatro de absurdos, ouvi também coisas que nenhum dos dois disse, e que, no entanto, pareciam mais sonoras do que um concerto de bateria. Em seus gestos claramente improvisados, ouvi a preocupação de Marcos com o bem-estar Isabella, ouvi sua aflição para que ela realmente se sentisse segura, ouvi sua angústia para, ao mesmo tempo, fazer isso e me levar até ela.
Se ele tivesse levado mais dez segundos para se virar, ou, talvez, se ele apenas não tivesse gritado, se assustando, me assustando, mas também me divertindo, possivelmente, teria me encontrado com lágrimas nos olhos. Uma grande merda, eu sei.
Até, precisamente, o momento em que vi o esforço que Marcos estava fazendo pela minha filha e, desejei, de todo o meu coração, que ela tivesse alguém além de mim e de Grazi disposto a fazer isso por ela vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano.
“Eu não sou um pai, Anthony.” Ele me disse, semanas atrás. E não é mesmo. Mas, a forma como ele vem se portando com Isabella desde que a conheceu, estilhaçou a certeza que eu sempre tive de que ela não precisava de um.
— Eu estava indo te acordar... Eu sei que você d-
— Papai? — A voz infantil interrompe sua explicação e eu vejo o rolo fofo se mexer. Quero rir.
— Oi, meu amor... — Caminho para dentro do quarto e alcanço a cama. Ao subir nela, não consigo evitar o pensamento de que, definitivamente, não achei que seria assim meu primeiro contato com o móvel.
— Papai, tinha monstros no meu quarto! — explica, assim que meu rosto surge no seu campo de visão, — Eu tava indo pro seu quarto, mas o Marcos me salvou, mamãe! Ele me salvou dos monstros! — Sorrio e beijo sua testa.
— Tudo bem... E o que você acha de a gente se proteger dos monstros no quarto da mamãe? — Isabella franze a testa.
— Mas mamãe, aqui tem uma fortaleza anti-monstros! — Ergo uma única sobrancelha e viro o rosto, olhando para Marcos por sobre o ombro. Ele dá de ombros e ergue as mãos em algo que não é exatamente um pedido de desculpas. Pela expressão em seu rosto, entendo um “Era o melhor que eu podia fazer!”
— Meu amor, a gente pode montar outra fortaleza no meu quarto... — ofereço.
— Mas quem vai proteger o quarto do Marcos? —Olha na direção dele, mesmo que sua visão esteja impedida por uma quantidade massiva de tecido, e eu suspiro.
— Não tem problema... Vocês podem ficar aqui, eu vou... Vou pra outro quarto. — Marcos determina e eu estou pronta para protestar. Deus, isso não faz o menor sentido. O homem não precisa deixar a própria cama por causa de uma infinidade de edredons, mas Isabella é mais rápida que eu.
— Não, Marcos! — diz alto, — Vem cá, Marcos! — chama e ele franze a testa, mas se aproxima dela. Com aquele quase metro de perna, em alguns passos, se coloca na lateral da cama, — Mais perto! — Pede, olhando para mim de rabo de olho e minhas sobrancelhas de erguem, mas que raios?
Marcos aproxima a orelha dos lábios de Bella e ela cochicha, muito mais alto do que acredita estar fazendo.
— Se você for embora, ele não vai poder te proteger dos monstros, Marcos. Você tem que ficar. — O sorriso nasce no canto da minha boca e se espalha por ela em uma velocidade absurda. Quero gargalhar, rir alto. Muito alto. Mas isso muda quando reparo no olhar que essa preocupação arranca de Marcos na direção de Isabella.
Não há diversão nele e o solavanco em meu peito deixa mais do que claro que o olhar de Marcos para minha filha arrancou de mim qualquer graça também, restou apenas emoção. Porque ele a está olhando com tanto carinho que eu engulo em seco, tomado por uma imensa gratidão que só quem tem um filho é capaz de entender.
Ele sorri, honesta, e muito, muito lindamente. Marcos leva a mão à bochecha de Isabella, depois, beija sua testa, antes de responder.
— Está tudo bem, Bella. Eu vou construir uma fortaleza pra mim...
— Mas e se eles te pegarem antes? Não... — outra vez, me olha de rabo de olho, — Você tem que ficar! — sussurra e Marcos me olha, claramente, pedindo ajuda. Nosso olhar dura uma eternidade de três segundos, e é nela que decido.
— Ele vai ficar, Bella! — A surpresa se estampa no rosto dele e Bella sorri, satisfeita, — Vamos fazer assim, colocamos sua fortaleza de um lado, eu deito no meio, e Marcos do outro lado, assim eu protejo vocês dois... — Minha filha concorda silenciosamente e Marcos ainda leva um tempo para se dar conta de que eu estou falando sério.
— Marcos! Vem! — Isabella pede quando eu mesmo já me ajeitei ao seu lado na cama. Desconsertado, meu marido dá a volta e deita-se completamente endurecido, de barriga para cima, atrás de mim, — Apaga a luz, Marcos... — a vozinha infantil de Isabella soa baixa. Apesar de toda a adrenalina que eu imagino que a fuga dos monstros tenha liberado em seu corpinho, agora, que já se sente segura, o sono dá sinais de a estar puxando.
Marcos obedece e subitamente estamos os três no escuro. Mantenho um dos meus braços ao redor da cabeça de Isabella e com o outro, acaricio seu rosto devagar. Canto baixinho sua canção de ninar preferida, reservada a noites exatamente como essa, e, ainda assim, completamente diferentes dessa.
Noites em que a minha garotinha acordava assustada com um pesadelo e se agarrava a mim como se eu fosse a única barreira entre ela e todos os males do mundo, como hoje. Noites em que eu a abraçava forte e cantava para ela, prometendo que seria sempre assim, nós dois contra o mundo, até o fim dos tempos, completamente diferente do agora, em que ela leva algum tempo antes de se render definitivamente ao sono, mas finalmente cede, não apenas cuidada por mim, mas confiando na palavra de uma terceira pessoa de que ela está segura.
Esta noite houve alguém além de mim enfrentando o mundo por Isabella e eu não tenho a menor ideia do que fazer com isso. Levo uma de minhas mãos para trás de meu corpo, tateio o braço de Marcos e, quando o encontro, aperto levemente em um agradecimento silencioso.
Antes que eu possa tirar minha mão da sua, seus dedos se entrelaçam e se fecham nos meus em resposta. Ele não diz nada, mas também não me solta, me dando mais uma sensação com a qual eu não sei lidar.
Esta noite, há alguém além de mim mesmo enfrentando o mundo por mim e eu não tenho a menor ideia do que fazer com isso.