PRÓLOGO
*** HUGO MALDONADO ***
7 anos antes
Silêncio... Absoluto silêncio.
Escuro... Completamente escuro.
Perdido... Totalmente perdido.
Uma bolha, uma redoma. Meus olhos estão abertos, mas não consigo ver nada além da névoa, da neblina que cobre toda e qualquer superfície. Há sons, mas eu não os ouço. Há ar, mas eu não consigo respirar. Ou talvez submerso, talvez eu esteja submerso. Talvez seja essa a sensação de se afogar. Talvez eu esteja me afogando...
Eu estou seco, não estou? As roupas em meu corpo estão secas. Há roupas em meu corpo?
— Hugo...
Esse é meu nome. Alguém está dizendo o meu nome, mas não é comigo, não pode ser. Tão distante... A voz está tão distante. Talvez seja alguém me chamando acima da água?
— Hugo!
Parece mais perto dessa vez, mais próximo, talvez eu devesse tentar nadar até a superfície, mas por quê? Por que eu deveria fazer isso?
— Hugo! Hugo! HUGO! — Tremores, meu corpo está tremendo, seria um terremoto? Mas não há terremotos no Brasil. — A Beatrice, Hugo! A Beatrice! Ela precisa do pai! Você precisa ser forte! — A voz diz e apenas uma palavra me faz querer subir. Beatrice, minha filha! Beatrice!
Pisco os olhos e, como se uma porta tivesse sido aberta, de repente, há oxigênio ao meu redor. Inspiro com força, quase me sufocando. Há sons, luzes e um único cheiro por todos os lados, numa confusão de estímulos que sobrecarrega meus sentidos. Todos parecem ter sido religados de uma só vez.
Mas há um zumbido constante martelando em meus ouvidos, um que parece nunca ter sido completamente desligado, mesmo quando eu achei que não estava ouvindo nada. É um bipe contínuo, ininterrupto. Um apito sem fim que faz meu ar faltar de novo e de novo, mesmo que, agora, eu tenha certeza de que há oxigênio mais do que o suficiente à minha disposição.
Água. Há água pingando sobre os meus braços e eu olho para cima, procurando sua fonte, mas ela continua pingando e é só quando passo as mãos pelo rosto que descubro sua origem. Meus olhos. São lágrimas. Minhas lágrimas.
— Eu sinto muito. Nós fizemos tudo o que pudemos. — São as últimas palavras ditas pelo homem de jaleco branco antes de ele virar as costas e sair.
Me dou conta dos meus pais, cercando-me, parecendo verdadeiramente preocupados que eu desabe sobre o piso branco e brilhante. Mas eles não me importam, não agora.
Em passos lentos, me afasto. Outra vez, meu nome é repetidamente chamado, mas agora eu ouço cada sílaba com clareza, e apenas ignoro. Continuo caminhando até encontrar a enorme janela de vidro da enfermaria neonatal.
Espalmo as minhas mãos sobre ela e caminho até a porta, arrastando os dedos sobre o vidro. Giro a maçaneta e entro. As enfermeiras me olham e eu não me preocupo em retribuir o favor. Alguém toca o meu ombro e eu apenas balanço a cabeça afirmativamente.
Meu corpo, mãos e pés são vestidos e calçados por uma roupa cirúrgica, luvas e protetores, antes que eu seja autorizado a caminhar na direção do único ponto de luz que sou capaz de enxergar em meio ao vazio que se apoderou do meu peito nos últimos minutos.
Beatrice, meu pedacinho de céu e de vida... Meu pedacinho dela.
Seus dedinhos são tão pequenos, sua pele tem cor de caramelo, uma mistura perfeita de nós dois, um pedaço perfeito de nós dois. Seus cabelos, apesar de ralos, são escuros como os meus e seus olhos ainda estão fechados. Ela é perfeita, exatamente como Thaís é, como Thaís era. Uma parte muito cruel de mim mesmo me corrige. Ela teria tanto orgulho, minha filha, tanto, tanto orgulho.
Me pergunto se ela viu você, se ela realmente viu a bebê tão sonhada dela. Porra! Isso não é justo, não é justo. Por que ela? Por que não eu? Ela seria melhor, tão melhor do que eu! Ela já era melhor, muito melhor do que eu!
Quando finalmente toco minha filha, meu rosto está banhado de lágrimas e eu me sinto um completo zero. Entretanto, na fração de segundo em que o ser humaninho frágil é tocado pelas minhas mãos inúteis, todos os meus pedaços recém-estilhaçados vibram. A dor, aguda, espaçosa e irremediável os mantém espalhados pelo chão, prometendo que ficará comigo para sempre, e eu não tenho dúvidas sobre isso.
Porém, quando trago o corpo minúsculo de encontro ao meu peito, a sensação que me toma é mais do que calmante, é existencial. Seu cheiro de bebê me entorpece e por ela, só por ela, eu desligo absolutamente tudo dentro de mim que não reluza Beatrice.
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CAPÍTULO UM
*** PEDRO FERNANDEZ ***
Percorro os olhos uma última vez pela sala perfeitamente organizada conferindo todos os detalhes: as carteiras estão alinhadas, todos os materiais necessários para as aulas de hoje devidamente separados, o quadro branco limpo e a porta aberta.
É um absurdo que meu coração acelere como se essa fosse a primeira vez que faço isso, mesmo que já seja quase meio do ano e que eu esteja perto de completar dezoito meses como professor. Auxiliar de turma, na verdade, mas depois de cinco anos trabalhando em qualquer coisa que pagasse o suficiente para que eu pudesse me manter sozinho na faculdade, finalmente estar na sala de aula é como ganhar na loteria todos os dias. Principalmente com minha promoção mais perto do que nunca.
O burburinho de dezenas de pés batendo apressados contra o chão diz tudo o que eu preciso saber. Eles estão vindo. Olho para mim mesmo, o avental bordado com a logo do Instituto Atheniense Brasileiro de Educação bem ajustado em meu corpo e a roupa por baixo dele estão no lugar, confirmo.
E, como se estivesse esperando apenas que eu tivesse essa certeza, Bianca, uma das professoras regentes da turma, aquela a quem eu espero substituir muito em breve, passa pela porta parecendo muito mais se arrastar do que andar. A barriga protuberante de nove meses de gravidez chega antes das suas pernas e ela se posiciona na entrada da sala para acompanhar a chegada das crianças que a seguem. O primeiro par de pernas curtas vestindo a bermuda azul marinho bordada com a logo do IABE vem logo atrás da mulher grávida.
— Bom dia, professor Pedro! — A voz infantil da menininha de cabelos crespos e pele marrom escura está sonolenta, como todas as manhãs, e aumenta o sorriso em meu rosto.
— Bom dia, Alice — digo sorridente. — Tudo bem com você?
— Tô com sono — reclama, arrastando sua mochila de carrinho com uma imensa fada multicolorida estampada e eu rio baixinho antes de responder.
— Já, já passa amor. Hoje é dia de aula de música, lembra? — Os olhinhos castanhos se arregalam, animados. Essa é a aula preferida dela.
— Vai ser a primeira, professor?
— Não, amor. A terceira. Você precisa ficar bem desperta até lá, combinado?
— Combinado!
— Professor Pedro! — Dessa vez, o vocativo é um grito excitado e agudo. Abro os braços, sabendo que a segunda da fila organizada em ordem alfabética não vai seguir o protocolo e se sentar, como a primeira fez. A garotinha de cabelos castanhos escuros, presos em uma maria-chiquinha baixa, virá correndo me abraçar, como todas as manhãs. Ela não me decepciona.
Beatrice se joga em meus braços, totalmente segura de que eu vou segurá-la e assimfaço. Descobri o que queria ser quando crescesse muito cedo. Quando se é uma órfã de pai e mãe sendo criado por uma avó que está fazendo isso apenas por um senso deturpado de obrigação, você aprende rápido o valor de um professor dedicado.
A escola foi o lugar mais próximo que eu tive de um lar. Dizem que não se escolhe o magistério, é ele quem te escolhe. Para mim, essa foi uma verdade absoluta.
— Olá, Beatrice. Bom dia! Como foi sua noite de ontem? — pergunto depois de deixar um beijo em sua bochecha lisa.
— Foi ótima, tio. Eu fui pra casa e ganhei uma girafa de pelúcia do meu tio. Minha vovó também foi me visitar e me contou uma história antes de eu dormir — conclui mais um dos nossos rituais diários, me contar como foi sua noite. Aprendi que perguntando ou não, Beatrice está sempre pronta para descrever em detalhes o que seu pai, seu tio ou seus avós fizeram com ela depois do horário escolar.
— Que noite gostosa, amor! E você está pronta para a manhã de hoje?
— Tô!
— Ótimo! Vai me ajudar a receber seus colegas?
— Vou! — Balança a cabeça, fazendo com que suas tranças se movam para frente e para trás. — Bom dia, Bruna! — Emenda o cumprimento à terceira aluna que passa pela porta na afirmativa e eu rio.
— Bom dia, professor. Bom dia, Beatrice — a criança responde à colega e me cumprimenta.
— Bom dia, amor.
Um a um, os doze alunos do primeiro ano entram na sala, e quando todos estão presentes, Cássia, a segunda professora regente da turma, passa pela porta e a fecha. Assinto para ela e para Bianca antes de pegar os primeiros materiais a serem distribuídos, folhas coloridas, e começar meu dia.
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Sopro o ar pela boca, tentando controlar minha respiração ofegante ao finalmente chegar à mansão de arquitetura clássica, escadaria de mármore, colunas largas na fachada e branco por todo lado. A porta dupla está destrancada e basta que eu suba os três degraus diante de mim e passe por ela.
Não deveria ser difícil, já fiz esse caminho incontáveis vezes, sei exatamente o que vou encontrar lá dentro, entretanto, o sentimento em meu peito no fim do dia não poderia ser mais diferente daquele no início nem se tentasse. Se pela manhã a sensação era a de uma revoada de borboletas no estômago, agora há nele uma pedra imensa e pesada.
A percepção de que mesmo depois de anos, eu simplesmente não consigo arrancar o band-aid e entrar na droga da casa de uma vez faz eu me sentir patético, e desviar o olhar não me ajuda quando me deparo com o grito azul que é o uniforme do IABE, não houve tempo para passar em casa, não quando eu dependo do transporte público, e sei o que isso significa. No entanto, a alternativa era ainda pior, porque se tivesse tentado, com o trânsito caótico do Rio de Janeiro na hora do rush, seria melhor que eu nem viesse.
É aniversário dela, Pedro. Ela vai ficar feliz que você tenha vindo. Digo para mim mesmo e logo em seguida uma risada seca e sem humor atravessa minha garganta sem pedir permissão, como se meu corpo estivesse por si só rejeitando o pensamento, debochando dele.
— Vamos lá, Pedro. Uma horinha e vamos embora. Só uma horinha — murmuro, negociando comigo mesmo na tentativa de me encorajar. Não funciona. Minhas pernas continuam plantadas no lugar e a sensação de peso no estômago parece maior a cada segundo que se passa.
Fecho os olhos e puxo uma inspiração profunda, em seguida, a solto. Você não é um covarde! Se você suportou dezoito anos disso, é perfeitamente capaz de suportar mais uma hora. Uma hora e depois, só daqui a um mês. Talvez até dois ou três se você conseguir encontrar desculpas boas o bastante.
Impulsionado pelo meu pequeno e silencioso discurso motivacional e mais ainda pela perspectiva de poder me manter longe pelos próximos três meses, finalmente me coloco em movimento, subo as escadas e passo pela porta. O cheiro de lavanda me atinge com tudo, juntando enjoo à sensação de peso em minha barriga e eu não consigo evitar pensar no quão errado é que a casa da minha infância me traga esses sentimentos.
Eu odeio esse lugar.
— Senhor Pedro. — Denis, o mordomo da minha avó me recebe com a postura empoada de sempre, antes de descer os olhos pelo meu corpo, não de maneira maldosa, mas analítica.
O homem alto e magro, de cabelos, barba e bigode brancos, vestido por um terno e gravata impecáveis, investiga desde a fina camada de suor cobrindo minha testa até os jeans escuros, a camiseta de gola polo que estou vestindo e o par de tênis brancos em meus pés. Ótimo. Começamos cedo, então.
Britanicamente treinado, Denis não transparece nenhuma emoção quando seus olhos finalmente encontram os meus, mas eu sei bem o que a análise quer dizer: esses não são trajes apropriados.
— Olá, Denis. Boa noite. Onde ela está? — O homem devia o olhar do meu rosto e o fixa na logo bordada em minha blusa, como se quisesse reforçar aquilo que não disse, antes de me responder com palavras.
— Na sala de estar. Mas talvez o senhor queira se refrescar? Creio que ainda tenhamos algumas peças suas — sugere sutil como um elefante e eu rio, desgostoso.
Se “algumas peças” for um código para um closet inteiro de roupas que nunca foram minhas de verdade, porque nunca as escolhi ou usei, mas que minha avó insiste em manter mesmo que eu não more mais com ela há cinco anos, então, sim. Eu acredito que haja nessa casa muitas delas.
— Não, obrigado, Denis. Eu não vou demorar.
— Senhor, eu devo insistir — ele começa, mas eu o interrompo. Sei que suas intenções são nobres, mas a cada segundo que passo parado aqui, um pouco da felicidade que encontrei em minha independência parece estar sendo sugada do meu corpo. Preciso ir embora e preciso ir rápido. Quanto antes eu entrar, mais cedo sairei.
— Denis, nós sabemos que ela vai reclamar, não importa o que eu vista — digo, porque é verdade. Descobri muito cedo que agradar minha avó é uma missão impossível para mim. O necessário para isso vai contra a minha natureza.
Ainda que eu nascesse de novo, permaneceria incapaz, porque meu maior crime aos olhos dela não é algo que possa ser mudado por mim. O único que poderia ter feito algo quanto a isso era meu pai, ele poderia ter escolhido outra mulher para ser minha mãe.
— Vamos só... — recomeço e pauso logo em seguida, apertando os dentes ao perceber que eu estava prestes a levantar o tom de voz. Esse é um dos motivos para odiar esse lugar. O efeito dele em mim. — Vamos só acabar com isso, tudo bem? — pergunto, agora falando conscientemente baixo, e Dênis assente.
— Como o senhor preferir. Gostaria que eu guardasse sua bolsa? — pergunta, estendendo a mão para pegar minha mochila e apesar do desejo de mantê-la por perto para facilitar minha saída, reconheço que se eu entrar naquela sala vestindo jeans e carregando uma mochila, provavelmente vou causar um ataque cardíaco em Marieta Alves Fernandes. Tiro a bolsa do ombro e a entrego.
— Só a mantenha por perto, eu realmente não vou demorar — peço.
— Vou deixá-la ali. — Denis indica o armário camuflado no painel, ao lado da porta diante da qual estamos parados e é a minha vez de assentir.
— Obrigado.
— Ao seu dispor, senhor.
Uma última inspiração profunda é tudo o que me permito antes de me dirigir ao corredor à minha esquerda. Meus passos são mais lentos do que deveriam, mas não consigo evitar. Meu corpo parece saber que esse não é o seu lugar e trava uma batalha violenta com a minha mente, acusando-a de negligência para com ele e atrasando tanto quanto pode o momento do qual quer fugir. Não é muito.
Mais rápido do que eu gostaria, uma sala ampla e circular, com sofás claros, aparadores modernos, jarros cheios de lavanda e piso brilhante se abre diante de mim. Um imenso lustre de cristal está pendurado no teto, lançando uma luz amarelada sobre não menos do que trinta pessoas circulando pelo espaço, divididas em duplas ou em pequenos grupos, conversando, rindo, diferente de mim, completamente felizes por estarem onde estão.
E, como sempre, não se permitindo ser nada menos do que o centro das atenções, no meio da sala está a mulher que deu vida ao meu pai e que, tão previsível quanto uma comédia romântica da sessão da tarde, odiava minha mãe.
Vestida por um terninho de alta costura azul marinho que não deve ter custado menos do que uma década do meu salário de auxiliar de turma, minha avó tem uma taça de espumante nas mãos e está falando sem parar com um casal que eu não conheço. Eles sorriem e balançam a cabeça, concordando com cada frase que deixa a boca da mulher magra de cabelos castanhos-avermelhados, hoje, presos em um coque bufante na altura da nuca.
Ainda que a idade já tenha lhe tomado o brilho ou a natureza que somente a juventude garante, Marieta é uma mulher bonita e ninguém que a olhe diria que hoje está completando setenta e seis anos. Cinquenta e quatro, talvez, mas certamente não setenta e seis. Uma vida inteira de privilégios custa caro para o bolso, mas quase nada para a aparência.
Seus olhos verdes são astutos e seus gestos decididos. A mulher com quem ela conversa diz alguma coisa e apenas pelo entortar de lábios sutil de minha avó, sei que ela não gostou do que ouviu. Balanço a cabeça, sorrindo pequeno. Aquela micro expressão costumava dominar o rosto de Marieta todas as vezes que eu aparecia vestida por uma das roupas que eu trouxe comigo quando me mudei para cá após a morte dos meus pais.
Eu era uma criança que tinha acabado de perder tudo: minha casa, meus pais, minha rotina. Vestir minhas próprias roupas, compradas pelas pessoas que eu mais amava no mundo e que não estavam mais ali comigo era uma das poucas coisas que me davam segurança e conforto e, ainda assim, cada vez que eu saía do meu quarto usando-as e me deparava com Marieta, seus lábios se retorciam em desgosto. Às vezes, de maneira sutil, como ela fez agora, outras, nem tanto.
E, embora aquelas tenham sido as primeiras vezes que fui alvo da micro expressão, certamente não foram as últimas. Como esperado, não demora para que o casal se afaste da minha avó depois de um deles ter dito algo que não a agradou e, encorajada pela pressa, me coloco em seu campo de visão.
O desgosto que atravessa seu rosto quando ela nota minhas roupas pode ser chamado de tudo, exceto de sutil. Tudo bem, você já esperava por isso. Digo para mim mesmo, à medida que caminho na direção da mulher com quem morei pela maior parte da minha vida.
— Olá, vó. Feliz aniversário — cumprimento, quando um metro é toda a distância entre nós.
Marieta não me responde imediatamente, seus olhos continuam subindo e descendo pelo meu corpo, e a raiva inflama seu olhar no instante em que ela se dá conta do próprio descontrole. Sua preocupação com a opinião alheia é tudo o que a impede de me dizer o que gostaria sobre minhas roupas, tenho certeza.
— Sua boca diz uma coisa, seus gestos, outra. — É sua resposta.
— Desculpe, eu não tive tempo de passar em casa para me trocar. Não foi…
— E Denis não te ofereceu a opção de se trocar, eu tenho certeza — me interrompe, ironia escorre do seu tom e eu aperto os dentes, engolindo minha raiva. Eu não deveria ter vindo. Não sei porque ainda tento. Depois de alguns segundos em silêncio, me sinto controlado o suficiente.
— Ofereceu, avó. Mas eu não vi necessidade já que não posso ficar. Eu realmente só vim para lhe desejar um feliz aniversário. Preciso acordar cedo amanhã e ainda tenho um longo caminho até chegar em casa e deixar tudo pronto para o trabalho.
— Trabalho — repete a palavra com tamanha aversão que qualquer um que visse apenas seu rosto, pensaria que eu lhe disse que estou prestes a cometer um crime. Suas narinas se alargam quando ela solta uma expiração profunda e desvia os olhos dos meus.
Abro e fecho os dedos, de repente, sem saber o que fazer com as minhas próprias mãos. Um frio injustificado cobre a minha pele e meu primeiro instinto é o de virar as costas e ir embora. Não apenas ir embora, sair correndo, na verdade. O peso em meu estômago já se transformou em um milhão de nós em sequência e até mesmo o ar em meus pulmões parece escasso nesse momento.
Abro a boca, tentado a preencher o silêncio. Mas o que eu diria? Minha avó vê em minha hesitação uma brecha e a aproveita.
— Até quando, Pedro? — É uma armadilha, eu sei. Ainda assim, caio. Há uma parte tola de mim que se recusa a aceitar o inevitável fato de que não importa o quanto eu deseje, a mulher diante de mim nunca será minha família.
— Até quando o quê, vó?
— Até quando você vai me envergonhar desse jeito? Até quando você vai brincar de ser pobre? Hum? — pergunta com o desgosto impregnando seu rosto e tom. — O quanto disso… — Acena quase imperceptivelmente para o meu uniforme. — Eu ainda vou ter que suportar?
Balanço a cabeça, negando devagar antes de dar de ombros. Perdi as contas de quantas vezes já tivemos essa conversa e, ainda assim, sempre que palavras como essa são atiradas em minha direção, dói igual. A decepção evidente da minha avó dói hoje exatamente da mesma maneira que doía quando eu era jovem. Meus olhos ardem e eu os fecho, me recusando a dar a ela qualquer coisa além da certeza de que está me humilhando.
Porque isso já é muito. Isso vai além de qualquer poder de afetação que ela deveria ter sobre mim. Não quando se trata da minha vida, das minhas escolhas, dos meus desejos. A escola me salvou de um jeito que a poderosa Marieta Alves Fernandes nunca poderá entender, porque seu coração está sempre muito ocupado em se tornar invisível. Durante anos, a sala de aula foi a única coisa entre eu e a infelicidade completa. O senso de coletividade, a atenção dos professores, a certeza de que eu valia algo, pelo menos para aquelas pessoas, porque minha avó, a minha família, não via valor em mim.
Aos dezessete anos, quando lhe disse que não assumiria sua empresa de cosméticos, e que cursaria pedagogia, nossa relação conseguiu ficar ainda pior. Marieta se recusou a aceitar minha escolha, disse que me deserdaria, e quando percebeu que isso não me faria mudar de ideia, mudou de abordagem e me avisou que não contasse com qualquer tipo de suporte enquanto eu não mudasse de ideia. Ela basicamente me expulsou de casa com uma mão na frente e outra atrás, esperando que eu fosse persuadido pelas dificuldades.
Não fui, e acho que isso, mais do que qualquer outra coisa, a agride. O fato da ausência das coisas que ela julga mais preciosas não ter sido capaz de me dobrar. Mas isso não deveria surpreendê-la, já que é ela quem tem tanto prazer em dizer que eu sou filho da minha mãe em cada detalhe, a mulher a quem ela odiou no momento em que conheceu por nenhum outro crime além de ter nascido pobre. E essa lembrança é o suficiente para mim.
— Eu sinto muito que eu seja uma decepção tão grande para você, avó. Eu realmente sinto muito — digo devagar, mantendo meu tom de voz quase sussurrado, mesmo que minha vontade seja de gritar, de fazer um escândalo nem que seja para ferir seu ego pelo menos um pouquinho, já que ela não se importa nem um pouco em ferir minha alma. — Eu só queria te desejar um feliz aniversário, nunca quis ser um estorvo na sua comemoração, então estou indo embora. Boa noite. — Aceno com a cabeça e aguardo por uma resposta, qualquer uma, mas não recebo nada.
Por fim, deixo que meus ombros caiam, meu corpo estúpido admitindo que continua a ter a esperança infantil de aprovação, nem que seja por eu estar reconhecendo ser uma decepção.
— Auxiliar. — No momento em que me viro para sair, ela cospe o título em um tom que é metade desgosto, metade deboche, lendo a palavra estampada na parte de trás da minha blusa. Paro, esperando por mais, porque eu sei que tem. Sempre tem. Mas mantenho-me de costas para ela. Fecho os olhos. Só mais cinco minutos. Cinco minutos e eu vou poder respirar outra vez. — Você sequer é bom o suficiente naquilo que tanto diz amar pra ter um emprego de verdade. — Um som arranha sua garganta e uma lágrima teimosa desliza pela minha bochecha. — Vai, Pedro. Volta pro seu faz de conta, afinal, quando você falhar, desistir ou simplesmente se cansar, sabe onde é o seu lugar.
Espero até que pelo menos um minuto de silêncio tenha se passado para voltar a andar. Eu não me viro, não respondo, nem deixo que mais lágrimas indisciplinadas se atrevam a escapar pelos meus olhos. Me recuso a dar esse poder à minha avó. Ao invés disso, pego cada uma das suas palavras e guardo em um lugar profundo em mim, porque sei que elas sempre serão minha maior fonte de motivação.
É engraçado como nossa mente sempre busca maneiras de transformar aquilo que nos reduz em algo que vai nos engrandecer. Vingança, orgulho, não me importo com o nome.
Todas as vezes que fui exposto às suas palavras, duras e acusadoras, a raiva e a decepção se engalfinharam em luta livre e, em todas elas, no final, a raiva saiu vencedor. Hoje não é diferente. Acariciar a dor antiga não foi tudo o que as palavras amargas fizeram. Não. Eles despertaram uma determinação tão antiga quanto. A de provar que a minha avó está errada.
Porque ela estar certa significaria uma vida inteira me sentindo tão miserável quanto Marieta deseja, enquanto ela estar errada significa a felicidade que eu sinto todas as manhãs quando piso na sala de aula, significa a alegria de retribuir sorrisos infantis, de ajudar a moldar mentes. Significa saber qual é o meu lugar no mundo.
Significa ter uma família.
Essa é uma pergunta de resposta única. Minha avó precisa estar errada. Por isso, depois de recuperar minha mochila, passo pela porta tendo apenas um pensamento: conseguir aquela promoção.