CAPÍTULO Dois
*** HUGO MALDONADO ***
— Não há a menor possibilidade de eu sair do estado antes do fim do trimestre, Alexandre. É pra isso que eu pago você, porra! — Sentado em meu escritório, jogo o corpo na cadeira quando sinto a cabeça latejar, puto por precisar dizer a mesma coisa pela terceira vez em menos de quinze dias. Por que caralhos é tão difícil encontrar profissionais competentes nos dias de hoje?
— Hugo, você preci… — meu diretor de operações começa, mas eu o interrompo. Já perdi tempo demais com essa conversa.
— Eu não preciso fazer nada! Se alguém precisa de alguma coisa, é você, Alexandre. Precisa entender que a sua função é resolver problemas, facilitar minha vida. Se você não faz isso, não me serve pra porra nenhuma e eu vou achar quem sirva. Estamos entendidos? — pergunto, sem dar margem para dúvidas: estou encerrando o assunto viagem para Florianópolis.
— Perfeitamente.
— Ótimo. E se você não tiver algo realmente relevante pra me dizer, por favor, não me ligue, porra! — Desligo a chamada sem esperar por resposta e levo os dedos polegares e indicadores às têmporas. Faço uma massagem suave ali e solto o ar pela boca, sentindo-me exausto, mesmo que o dia tenha passado muito pouco da metade.
A preocupação com a adaptação da Beatrice à mudança cada vez mais próxima tem consumido meus dias e noites. Desde que nasceu, minha filha nunca passou mais de uma semana fora do Rio. Estabilidade é um dos pilares fundamentais da sua vida e eu estou prestes a tirar isso dela. A culpa tem tanta responsabilidade pelo meu mal estar quanto a procura por uma solução.
Porra! Deslizo as mãos da testa para os cabelos e solto o corpo na cadeira. A sugestão da minha mãe, de que eu deixasse Beatrice sob seus cuidados permanentemente pelos semestre que precisarei passar no Sul do Brasil, ecoando no caos que é minha mente conturbada. Nem fodendo. Eu preferiria assinar agora mesmo os papéis dentro da pasta aberta sobre a minha mesa a passar seis meses vendo minha filha somente aos fins de semana.
Puxo as mangas da camisa, já dobradas na altura dos cotovelos, um pouco mais para cima, e solto um suspiro quando a luz de chamada interna se acende no telefone do escritório . Pressiono o botão para atender e a voz da minha secretária soa um segundo depois pelo viva-voz.
— Senhor Maldonado.
— Sim, Cláudia.
— Posso confirmar sua entrevista na próxima quinta-feira às dezesseis horas? — pergunta e eu olho para o calendário na lateral da tela diante de mim, considerando.
Não se trata da minha agenda, mas da de Beatrice. Minha secretária tem uma cópia e marca meus compromissos alinhados a ela, mas eu gosto de ter o controle da programação da minha filha sempre ao meu alcance.
— Presencial ou remota, Cláudia? — questiono ao perceber que na quinta Beatrice tem uma apresentação de balé às oito da noite. Seu eu precisar me deslocar, até poderia fazer a entrevista e chegar a tempo, mas não conseguiria vestir minha filha para a sua apresentação e não estou disposto a abrir mão disso.
— Presencial, senhor.
— Tente transformá-la em remota, Cláudia. Se conseguir, pode mantê-la, se não, cancele ou adie.
— Certo.
— Há alguma outra reunião hoje?
— Não, senhor.
— Ótimo, obrigado.
A luz de chamada em andamento se apaga e eu volto a me concentrar nos papéis que analisava antes da ligação desnecessária de Alexandre me interromper. Uma proposta de compra, mais uma. 160 bilhões de dólares pelo trabalho da minha vida.
Uma risada amarga arranha minha garganta. Não é a primeira vez nem será a última que recebo uma proposta dessas, assim como também não é a primeira vez que encaro os papéis me perguntando se eu não deveria aceitá-la mesmo sabendo que eu não posso.
O Unboxing se tornou uma parte tão importante da minha vida nos últimos anos quanto o ar que eu respiro. Minha filha é a única coisa que está na frente do meu trabalho. Sem ele, quem eu seria? Passeio os olhos ao meu redor, observando o lugar onde passo quase todo o tempo que não estou com Beatrice.
O escritório amplo e ricamente iluminado pela parede frontal de vidro é tão minha casa quanto a sala onde faço as refeições com minha filha ou a cama em que durmo. A mesa larga e transparente me reconhece tanto quanto os meus travesseiros e as estantes de ferro preto, lotadas de livros, sabem meu nome tanto quanto eu sei os dos autores que elas sustentam.
Quando a primeira versão do site foi ao ar, eu era um garoto de dezenove anos tentando empreender. Eu tinha dinheiro, conhecimento e o apoio dos meus pais. Eu tinha o privilégio de poder dar errado, mas não dei.
E o que começou restrito, como um site revendedor de pequenas lojas varejistas, com o passar dos anos se tornou uma multinacional do ramo tecnológico que não só produz e comercializa seus produtos, como também os de outras lojas e marcas. Competindo, lado a lado, com empresas como a Amazon.
E, agora, pela primeira vez em quase sete anos, as áreas da minha vida que sempre fiz questão de manter completamente separadas, Beatrice e o Unboxing, estão chegando a um ponto em que será impossível evitar a interseção. A abertura de capital da empresa é necessária, ou ela começará a perder valor de mercado.
E, para isso, preciso ter certeza da integridade de cada uma das responsáveis pelos processos de produção que executamos. Deleguei e terceirizei tudo o que era possível, mas em Santa Catarina, onde está localizada nossa maior fábrica, preciso realizar a auditoria eu mesmo. Um processo que não levará menos de um semestre e que uma vez iniciado, não poderá ser interrompido.
O que significa que precisarei virar a vida da minha filha de cabeça para baixo, afastá-la dos avós e do tio, que no Rio estão sempre ao alcance de um telefonema, trocá-la de escola, separá-la das amigas do balé, mudar os ambientes que ela reconhece como casa e como lar. Tudo isso apenas porque eu sou um filho da puta egoísta que não consegue sequer cogitar a ideia de passar seis meses longe dela.
Passo as mãos pelo rosto e coço a barba. Ao menos é uma mudança temporária, digo para mim mesmo, na tentativa de diminuir a culpa, mas não funciona. Quando viro o rosto, a logomarca estampada na tela do computador me encara: um par de mãos abrindo uma caixa. E a imagem me leva de volta a anos atrás, ao momento em que dedos pequenos e finos, com as unhas pintadas por um esmalte roxo, a inspiraram.
Expulso o ar dos pulmões e sacudo a cabeça, expulsando também a lembrança. O passado não foi gentil comigo, então eu tento não me prender a ele.
No entanto, quando meu celular vibra em cima da mesa, eu lamento precisar viver no presente também. Esfrego a nuca, na esperança de que o autor da chamada desista, mas isso não acontece. O rosto sorridente do meu irmão continua brilhando na tela acesa do aparelho.
— Sim? — atendo a ligação e a coloco no viva-voz.
— Não?
— Breno! — reclamo, e ele gargalha do outro lado. Quase catorze anos mais jovem do que eu, Breno sempre foi um bobo e a idade está acentuando esse seu traço de caráter.
— Me diz que você vai ao evento dos Fidelis esta noite.
— É terça-feira, Breno.
— Idaí?
— Ainda que festas não me cansassem, ainda que lugares cheios de alpinistas sociais não me exaurissem, ainda que eu tivesse disposição para sorrir e acenar para pessoas que em nada acrescentam na minha vida, Breno. Ainda assim, seria terça-feira e a sua sobrinha tem aula amanhã cedo. Não tem a menor chance de eu passar a noite acordado e não poder prepará-la para ir à escola por nada — digo, juntando os papéis sobre a minha mesa e alinhando-os dentro da pasta antes de dar a eles o mesmo destino que todos os seus antecessores semelhantes tiveram, a lata de lixo.
— Você realmente devia parar de usar sua filha como desculpa pra ser um rabugento. — Estalo a língua e apoio um cotovelo sobre a mesa. — E eu realmente gostaria de saber onde você arranja suas fodas, já que se recusa a ir a qualquer lugar que não seja o trabalho ou sua casa, que, aliás, ficam praticamente no mesmo lugar.
— Se eu te contar, vou ter que te matar. — Breno bufa do outro lado da linha. — Você tem mais alguma coisa pra me dizer ou ligou só pra isso? — pergunto e meu irmão estala a língua.
— Não posso mais ligar pro meu irmão?
— Enquanto ele trabalha? Não.
— Se eu seguisse essa regra, só falaria com você nos almoços de domingo. — diz e eu coço a testa, porque não é algo que eu possa negar. — Aliás, como vão ser os almoços de domingo enquanto você e a Be estiverem em Floripa? Por vídeo chamada?
— Provavelmente, mas eu tentarei vir o maior número que nós conseguirmos.
— Pela sua voz, você ainda tá se martirizando pela mudança, né?
— E agora você me conhece pela voz?
— Quando você está chorando? Sim.
— Se algo útil não sair da sua boca nos próximos trinta segundos, eu vou desligar o telefone, preciso trabalhar.
— Você sabe que eu também trabalho, certo?
— Isso é o que você diz... — digo apenas para implicar e sorrio de canto, porque sim, eu sei que meu irmão trabalha.
Catorze anos mais velho, sites eram o que havia de mais interessante para se desenvolver quando eu entrei no mercado de tecnologia. Breno encontrou a internet muito mais avançada do que eu e seu pontapé inicial foi a programação de jogos. Não demorou para que ele começasse a desenvolver aplicativos e hoje meu irmão comanda uma das maiores desenvolvedoras de games e apps da América Latina.
É no mínimo irônico que tanto eu quanto ele tenhamos construído nossos próprios impérios no ramo da tecnologia quando a fortuna da nossa família vem de uma das atividades econômicas mais conservadoras que existem: a exploração de minérios.
— Vou dizer pela milésima vez, você está se mudando por seis meses para uma cidade bem parecida com a que a sua filha está acostumada a viver, além disso, ela tem sete anos, para de surtar por nada, porra! — Ignora minha insinuação e repete o que vem me dizendo há quase três meses sobre achar minhas preocupações, com possíveis impactos da mudança de cidade em Beatrice, infundadas. — E falando nela, quero conversar sobre o presente de aniversário da Be.
— Achei que tivéssemos falado sobre ele ontem — lembro. — E anteontem. E antes de ontem...
— E eu vou continuar falando até que você perceba o quanto está sendo inflexível. — Isso me faz rir.
— Boa sorte, então.
— Hugo, é só um cachorro!
— E eu já te disse, Breno. Você pode comprar um, desde que seja inanimado.
— A Be não quer um inanimado.
— Beatrice tem poucos anor, Breno. Ela quer muitas coisas, hoje de manhã ela queria ser uma fada. Eu tenho certeza que você é capaz de encontrar outro desejo que possa realizar. Mais alguma coisa?
— Poderia ser um amigo pra ela na adaptação na casa nova, na cidade nova — sugere sorrateiro, e eu estalo a língua.
— Isso foi baixo.
— Na guerra e no amor, vale tudo.
— Tchau, Breno.
— Eu ligo amanhã — responde sem qualquer remorso.
— Tchau, Breno!
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*** PEDRO FERNANDES ***
O som da porta abrindo e fechando anuncia o fim do meu glorioso período de silêncio. De pé, na cozinha, vestindo nada além de uma regata e um short curto, continuo mexendo o macarrão enquanto ouço chaves sendo jogadas sobre o aparador, uma bolsa sendo largada sobre o sofá e sapatos sendo chutados para sabe Deus onde. Rio, e instantes depois, braços envolvem a minha cintura.
— Meu Deus, eu amo você! O cheiro está fantástico!
— Eu até me sentiria lisonjeado, se não soubesse que seu amor é facilmente comprado com comida, Melissa.
— Eu sou responsável pelo que eu sinto, não pela forma como você encara meus sentimentos — minha colega de apartamento diz, antes de deixar um beijo em minha bochecha e me soltar. Eu rio e balanço a cabeça de um lado para o outro, negando. — Meu Deus, que semana de merda! — reclama, abre a geladeira e tira uma garrafa de água de lá. — Graças a Deus é sexta-feira!
— Ruim assim, é?
— A quantidade de arquivos que eu precisei organizar essa semana é uma coisa criminosa! Não foi pra isso que eu passei cinco anos numa faculdade de direito. — Enche um copo e guarda a garrafa de volta na geladeira.
— Todo mundo tem que começar de algum lugar — digo as palavras de sempre ao que ela também reage como sempre, revirando os olhos.
Apago o fogo quando o espaguete atinge o ponto certo de cozimento e me abaixo para pegar o escorredor no armário embaixo da pia. A vantagem de se ter uma cozinha tão pequena quanto a nossa é que ou você sabe onde tudo está, ou sabe onde tudo está, porque não há espaço sequer para guardar as coisas no lugar errado.
E essa não é a única parte pequena da nossa casa, ela inteira não é exatamente o lugar mais espaçoso do mundo. O apartamento de dois quartos, sala, cozinha e banheiro é confortável, considerando o longo período que Mel e eu passamos morando juntos num alojamento de um único cômodo na universidade.
Pelo menos, agora cada um tem seu próprio quarto. Eu diria que estamos indo muitíssimo bem. Naquela época nós sequer tínhamos um fogão decente. Micro-ondas era um artigo de luxo e nem faz tanto tempo assim, menos de dois anos, na verdade.
No meio de todo tipo de universitário que se encontra em uma universidade pública, Melissa foi um achado, ou um presente dos céus, mesmo que às vezes eu goste de chateá-la dizendo que no momento em que nos conhecemos, na fila do bandejão da Universidade Federal do Rio de Janeiro, meu anjo da guarda provavelmente estava tirando uma soneca.
— Tudo bem, eu entendo isso. A estrada pra me tornar delegada é longa e o caminho não vai ser fácil, mas nem todo mundo vai trabalhar cantando com os passarinhos como você. — Me dá língua como a adulta madura que é, e eu ergo as sobrancelhas, perguntando silenciosamente se é assim que uma delegada agiria e Mel junta uma careta à língua exposta. Eu rio da sua bobeira. — Aliás, disseram alguma coisa sobre a promoção? — pergunta enquanto escorro o macarrão dentro da pia.
— Ainda não, mas não deve demorar muito agora. Bianca já está com nove meses. — Apoio o escorredor sobre um prato. — Vem tirar sua comida — chamo, já pegando um prato para me servir.
Melissa pega os copos dentro do armário e volta a abrir a geladeira, dessa vez, tirando de lá uma garrafa de Coca-Cola. Depois de encher os dois copos até a boca com o refrigerante, ela guarda a garrafa e pega um prato. Coloco as almôndegas em cima do meu macarrão e espalho bastante molho também, antes de deixar a concha dentro da panela, pegar meu copo e ir me sentar no tapete listrado azul e branco da sala, diante da mesinha de centro, que durante as refeições se transforma em mesa de jantar, já que é a única que temos.
Apesar de estarmos indo bem, ainda somos dois recémformados, ambos empregados como assistentes. Como Melissa disse, ainda temos um longo caminho pela frente. Mel senta de frente para mim.
— E como foi o aniversário da sua avó? Quando eu cheguei na quarta você já estava dormindo, não quis te acordar. E ontem, quando você chegou, eu é que já estava dormindo, morta. Aliás, como foi a premiação? — pergunta. — Viu o Rafael? — diz as últimas três palavras de maneira extremamente sugestiva e eu reviro os olhos. — Parece que a gente nem se vê mais, e olha que moramos na mesma casa! — resmunga por fim e com isso eu sou obrigado a concordar.
— Graças a Deus é sexta-feira! — repito as palavras ditas pela minha amiga há alguns minutos e ela geme em concordância. Melissa pega o controle remoto da televisão e liga o aparelho em um canal qualquer, sem se importar nem mesmo em olhar o que é que está passando na tela. Solto um suspiro longo ao pensar na noite de quarta. É irônico que na mesma semana, em dois dias seguidos, eu tenha tido experiências não apenas diferentes, como opostas e que, além disso, foram quase confirmações uma da outra.
Se na quarta-feira lidei com a tentativa de alguém que deveria ser parte da minha família de me fazer sentir pequeno por ter escolhido a educação como carreira, na quinta, recebi amor e carinho da pessoa responsável pela minha escolha. Alguém que não só me ensinou que família pode ser quem escolhemos, como também foi escolhida por mim para fazer parte da minha.
—O que você quer primeiro? O remédio ou o veneno? — pergunto.
— Veneno, sempre! — Melissa é rápida em responder e eu assinto.
— O aniversário da minha avó… — Faço uma pausa, buscando a palavra adequada, mas depois de quase um minuto inteiro em silêncio, não encontro. — Foi — resumo, e Mel balança a cabeça, sabendo exatamente o que eu quero dizer.
— Eu não sei porque você ainda tenta — diz, antes de enrolar uma porção de macarrão em seu garfo e levar à boca. Pondero suas palavras e torço os lábios em desgosto, porque foram exatamente as mesmas que eu usei em silêncio.
— Quando eu decido vê-la, eu sei porque tô tentando. — Começo a enrolar macarrão em meu garfo. — Eu tenho os motivos muito claros na minha cabeça. Mas quando eu chego lá, todos eles somem, vão embora ou são apagados pela indiferença dela, não sei. — Espeto uma almôndega e levo a comida à boca.
— Pois eu acho, sinceramente, que da próxima vez que uma voz na sua cabeça te disser que você sabe os motivos, você devia mandá-la pra puta que pariu — minha amiga responde e eu quase engasgo com a comida que estou mastigando. Me forço a engolir devagar e depois tomo alguns goles de refrigerante. Quando tenho certeza de que minhas vias respiratórias estão livres, gargalho. — O quê? — ela pergunta, como se não tivesse dito nada para causar minha reação. — É a verdade! Sua avó não te merece! A torcida do Flamengo sabe disso, Pedro. Tá na hora de você entender, na verdade, já passou dela. — Mordo o lábio e balanço a cabeça para cima e para baixo antes de voltar a encher a boca com comida.
Por alguns minutos, nos concentramos em comer, e a televisão é a única responsável por preencher o silêncio entre nós até que eu seja capaz de admitir.
— Você tem razão. Eu só. — Expiro com força. — Só não sei se estou pronto pra isso. Pra desistir. — Melissa não diz nada, mas sei que ela me entendeu.
Criada em uma família amorosa, minha amiga não finge entender minha relação com a minha avó, mas está sempre pronta para me oferecer o ombro, os ouvidos ou colo quando preciso.
— Quando você estiver, vai ficar tudo bem. Você fez tudo o que pôde — ela diz e me encara com seriedade por alguns instantes, saindo do seu personagem cotidiano apenas por esses momentos. — Agora, o remédio, porque eu já tô prestes a morrer! — exclama, voltando à Melissa de sempre, trazendo leveza ao momento e me fazendo sorrir.
— A cerimônia foi linda! — digo e as lembranças da noite passada lotam minha mente.
Não houve como segurar as lágrimas durante o discurso de Carla, a mulher que foi muito mais do que minha professora de ciências do ensino fundamental. Admito que eu teria me emocionado em qualquer circunstância, porque conheço a verdade em cada uma das palavras que foram ditas por ela enquanto segurava o prêmio que tinha acabado de receber. Mesmo agora, me lembrando, meus olhos ardem.
Mas depois da noite de quarta, ouvir que a educação é um ato de amor e coragem foi como eu imagino que seja tomar um chocolate quente depois de passar o dia na neve: uma mistura inigualável de alívio e conforto.
E ouvir essas palavras vindas dela, a mulher que me acolheu quando eu achei que a vida e o mundo me odiavam, que me mostrou que a escola poderia ser muito mais do que o lugar para onde eu ia por obrigação, isso foi o catalizador de uma sensação de paz impossível de descrever.
A professora de cabelos brancos e óculos de lentes grossíssimas, foi quem me ensinou que família pode ser quem nós escolhemos que seja. Ela foi o primeiro membro daquela que criei para mim e, hoje, quase doze anos depois de nos conhecermos, continua sendo uma peça tão importante em minha vida quanto se fez no início.
Se hoje eu sou professor é apenas e somente porque, um dia, quis o universo que Carla Miranda entrasse na minha vida e me ensinasse que não existe missão maior no mundo do que fazer pelos outros aquilo que, um dia, ela fez por mim.
— Linda como, detalhes, ué! Eu quero detalhes!
— Linda porque ela merecia aquele prêmio, vinte cinco anos de carreira no ensino público brasileiro não são pra qualquer um, linda porque me emocionou ver o trabalho da vida dela ser reconhecido, linda porque ela ainda foi capaz de agradecer pela oportunidade de estar recebendo aquele prêmio. Carla é minha meta de vida. — Levo meu copo de refrigerante à boca e bebo alguns goles.
— Rafael estava lá?
— O que aconteceu com o “quero detalhes”? — Deixo o copo sobre a mesa para fazer um gesto de aspas com as mãos ao falar as duas últimas palavras.
— Ah, eu não fui clara? Por detalhes, eu quero dizer… — Mel larga os próprios talheres e posiciona as mãos no ar, pronta para sinalizar suas próprias aspas. — “Quero detalhes sobre Rafael, o filho da Carla e seu ex namorado!” — Eu bufo.
— Você sabe que esse namoro foi um erro, pra começo de conversa. A verdade é que eu posso ter levado a coisa de tornar Carla parte da minha família muito a sério por um certo período. — Rio da minha própria piada e Melissa também.
— Você é idiota — acusa, e eu abro os braços em uma reverência fingida.
— Depois da cerimônia nós fomos jantar e…
— Você jantou com ele? — ela me interrompe, apressada.
—Não, Mel! Para de ser louca! Eu jantei com a família dele e ele estava presente. — Estalo a língua e abaixo a cabeça, voltando a prestar atenção no meu prato.
— Semântica.
— Só que não, né? — Não consigo evitar e olho para a minha amiga outra vez.
— Mas não rolou nada? Nadinha? Nem uma faísca? — A maneira como ela gesticula e faz caras e bocas me tira uma negativa que é quase um grunhido de frustração.
— Pra ter faísca tem que ter desejo Mel, e caso você não se lembre, foi justamente a falta dele que levou meu namoro com o Rafa pro buraco. Eu o adoro, mas amizade não faz tesão e se eu não fosse tonto o suficiente para acreditar no contrário, nós nunca teríamos sido um casal, pra começo de conversa.
— Mas às vezes é melhor um sexo mais ou menos com um amigo de foda do que sexo nenhum com um homem que não existe, né?
— Melissa! — chamo sua atenção e ela levanta as mãos em rendição. Estou prestes a colocar mais uma garfada de comida na boca quando ela solta mais uma pérola.
— Só tô dizendo que essa sua teia de aranha aí...
— Ah, pelo amor de Deus! — Tento repreendê-la outra vez, mas acabo não segurando o riso. Como pode ser tão sem noção?!
— Só tô dizendo!
— Então para de dizer e começa a comer! Em boca cheia não entra mosca!