CAPÍTULO QUATRO
*** HUGO MALDONADO ***
O arco de balões ao ar livre, no andar de baixo, não poderia ter sido escolhido por nenhuma outra criança que não fosse a minha filha, assim como o tema da festa montada no jardim. Enfio uma mão no bolso da calça e giro o corpo, levando meus olhos dos balões emoldurando a entrada do corredor lateral da minha casa até a decoração em tons de rosa, roxo, azul, amarelo e laranja que é, ao mesmo tempo, sobre a boneca Barbie e os carrinhos Hot Wheels.
Beatrice não conseguiu escolher entre seus dois brinquedos favoritos e eu não vi motivos para forçá-la a isso. Não quando poderíamos ter as duas coisas. De pé, diante das janelas do chão ao teto da sala, tomo mais um gole do uísque em minha mão enquanto acompanho a movimentação dos funcionários que preparam os últimos detalhes do aniversário da minha menina.
A bebida amarga desce saborosa. Dizem que semelhante reconhece semelhante, talvez seja esse o motivo de nos últimos anos eu ter desenvolvido um gosto ainda maior pelo líquido âmbar. Alguém esbarra em alguma coisa barulhenta no jardim e meus olhos se prendem ao Cockpit com um imenso sete e o nome de Beatrice pintados na lataria. O design foi feito especialmente para o seu aniversário e eu mal posso esperar para que ela veja seu presente.
Sete anos. Sete anos desde que a minha vida foi virada de cabeça para baixo. Beatrice é uma menina alegre como eu jamais conheci. Inteligente, carinhosa, doce e ainda assim, determinada e argumentativa. Às vezes, suas perguntas ou certezas fazem com que eu me questione se ela realmente tem a idade que tem, ainda que o dia do seu nascimento esteja marcado a ferro e fogo em meu coração como aquele em que minha alma foi partida ao meio e eu precisei aprender, no instante seguinte, a como sobreviver com apenas metade dela.
Passos desleixados soam, perturbando minha observação silenciosa e eu não preciso me virar para saber de quem se trata.
— Onde está a minha princesa? — Breno pergunta e quando olho para meu irmão, encontro o corpo alto sentado em um imenso cachorro de pelúcia elétrico? Franzo as sobrancelhas.
— Isso é...
— Uma moto elétrica infantil em formato de cachorro. É perfeito, não é? — me interrompe, orgulhoso do presente e eu pisco, chocado, e nem mesmo sabendo dizer com o que. Se com o quão ridícula é a cena de Breno sentado em cima daquilo, ou com o fato de ele ter comprado uma moto elétrica que se parece um imenso Beethoven para minha filha.
— A população de bichos dessa casa está infinitamente maior do que a de seres humanos. — É o que eu consigo dizer e meu irmão se levanta de cima da coisa sem ser nem remotamente abalado pela minha reclamação.
— Eu sou um tio. Meu trabalho é mimar, educar é o seu — justifica, deixando a moto/cachorro próxima a um dos sofás da sala de estar e caminhando na minha direção. — A Beatrice queria um cachorro, se ela não vai ter um de verdade, que seja um pelo menos minimamente interessante. — Bufo com a resposta e volto a olhar através da janela, mesmo que o sentimento despertado pelas palavras que ouvi esteja bem distante da irritação. Eu não lhe direi isso. Jamais.
— Sua mãe está a ajudando a se vestir. Ela tinha decidido receber os convidados vestida de piloto de corrida, mas a avó conseguiu convencê-la de que seria mais interessante receber os convidados vestida de princesa. — Estalo a língua a fim de enfatizar minhas próximas palavras. — Com um vestido, obviamente, que sua mãe trouxe. — Pontuo as quatro últimas com sobrancelhas arqueadas. — Como se três trocas de roupas já não fossem o suficiente para uma única festa.
— Minha mãe? — pergunta com um sorriso na voz. — Só minha?
— Quando está mimando Beatrice além do que deveria, sim! Só sua mãe. — Breno bufa e para ao meu lado. Em suas mãos, um copo de uísque. Olho para ele de soslaio. O sorriso brincalhão em seu rosto denuncia que o que quer que esteja prestes a sair da sua boca, eu não vou gostar.
— Mimando além do que deveria? — O rosto de queixo quadrado e pele clara, tão parecido com o meu, apesar dos anos de diferença entre nós, se contorce em uma expressão irônica e os olhos escuros questionam tanto quanto os lábios. — Por acaso aquilo ali é um simulador profissional de Fórmula 1 pintado com o nome da sua filha? — Aponta para o cockpit vermelho e eu arranho a garganta dispensando sua insinuação que está mais do que certa.
Não, ele e meus pais não são os únicos a passar dos limites quando o assunto é mimar Beatrice, mas isso não vem ao caso. Meu irmão gargalha, jogando a cabeça para trás.
— Tenha seus próprios filhos e você vai poder mimá-los o quanto quiser. — resmungo e viro o restante da bebida do meu copo na boca.
— Deus me livre! — Se apressa em afastar a possibilidade antes de continuar a azucrinar o meu juízo. — Não é nossa culpa se contra todas as expectativas do universo, um rabugento como você conseguiu fazer uma coisinha doce como aquela. É claro que ela puxou… — Breno se interrompe no meio da frase. A expressão que assalta seu rosto me diz que ele percebeu tarde demais o que estava prestes a dizer e eu reviro os olhos.
— À Thaís. É claro que ela puxou à Thaís. Você pode dizer o nome dela em voz alta, Breno.
— Você está bem? — A pergunta me arranca uma risada seca.
— Tão bem quanto estive nos últimos sete anos.
— Então…
— Isso você pode guardar pra você — o interrompo, imaginando o que ele estava prestes a dizer, e é a vez do meu irmão de soltar uma risada seca.
Breno balança a cabeça de um lado para o outro, negando, mas o conheço o suficiente para saber que ele não vai me fazer a gentileza de manter a porra da boca fechada por muito mais tempo. A essa altura, sou capaz de reconhecer a iminência do discurso “Você precisa seguir em frente” mesmo quando ele está há quilômetros de distância. Tão perto quanto agora, eu poderia estar dormindo e ainda assim reconheceria sua proximidade.
Mas, como o anjo que é, minha filha me salva. Porque no instante em que seu tio abre a boca, pronto para me apresentar uma soma que eu já estou cansado de conhecer, ela grita o nome dele do alto das escadas.
— Tio Breno! — Meu irmão se vira imediatamente, esquecendose por completo do que quer que planejasse me dizer, graças a Deus.
Ele abandona o copo que segurava em uma das mesas espalhadas entre as janelas e as escadas e praticamente corre na direção da minha filha que, dentro dos limites, faz o mesmo, descendo apressada as escadas.
— Que princesa mais linda! — Breno diz ao pegar Beatrice no colo quando ela chega ao penúltimo degrau. Ele a gira e a gargalhada infantil e gostosa ecoa pelas paredes de tão alta. Olho para cima e ainda parada no patamar das escadas está minha mãe, observando a cena com adoração.
Sem se dar conta do meu olhar, ela limpa os cantos dos olhos e, como tem sido desde que Beatrice nasceu, um misto de saudade e alegria enche meu peito. Saudade porque minha mãe é um lembrete constante para mim daquilo que a minha filha não tem. E alegria porque, apesar de nunca ter conhecido a mãe, Beatrice é amada, muito amada. É uma balança incansável.
— Advinha o que o tio trouxe pra você! — Breno sugere e o sorriso de Beatrice se torna impossivelmente mais luminoso.
— Um pônei! — Ela dá o palpite e as sobrancelhas de Breno se franzem.
— Você queria um pônei? Desde quando? — questiona, genuinamente interessado e eu fecho os olhos, sabendo que no mais tardar amanhã, um pônei será entregue aqui em casa. Terei uma conversinha com meu irmão para garantir que, pelo menos, seja um de pelúcia.
— Desde ontem.
— Bom, ainda não é um pônei. — Ainda, eu sabia! — Mas que tal um cachorro?
— Um de verdade? — O rosto da menina é colorido por uma expressão de choque e o olhar do meu irmão imediatamente me procura, acusador. Dizendo, em silêncio, que eu sou um insensível por privar a criança dessa experiência. Reviro os olhos e lamento que o copo em minha mão esteja vazio.
— Ainda não. — É a resposta de Breno para Beatrice e eu balanço a cabeça, negando. — Mas que tal aquilo ali? — Meu irmão gira o corpo, deixando minha filha de frente para a motocicleta, parada ao lado do sofá, e ela começa a bater palmas, enlouquecida.
Breno caminha com a Be até o cachorro e a coloca em cima dele.
— Olha, papai! Olha! — me chama e a felicidade em seu rosto, porra! Beatrice é a razão de eu respirar.
Sorrio e, repetindo o gesto de meu irmão, deixo o copo em uma mesa e caminho até a minha menina, me agachando diante do seu novo brinquedo para ficar na mesma altura que ela. — O nome dele vai ser Bob! — exclama, aninhando-se contra a pelúcia. — Ele pode ir pra festa? — pede, entusiasmada e a risada curta de Breno me diz que ele sabe a minha resposta.
— Pode, meu amor. É claro que pode — respondo, sem pudor algum.
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*** PEDRO FERNANDES***
Talvez tropeçar em um milionário não seja uma ideia tão absurda assim. Foi o primeiro pensamento que me ocorreu quando o Uber me deixou diante da mansão na Barra da Tijuca. Afinal, até aquele momento, eu não fazia ideia de que era esse o nível de riqueza da sua família. Eu poderia, se como outras professoras fazem, tivesse pesquisado meus alunos, mas nunca vi motivos para isso.
— Acorda, Pedro! — Uma voz sorridente me arranca dos meus devaneios.
Sentadas ao meu lado em uma mesa redonda, há cinco mulheres: Marjorie, a coordenadora do IABE; Bianca e Cássia, as duas professoras regentes da turma em que sou auxiliar e da qual a aniversariante é aluna; Katarina, a professora de alemão das crianças do primeiro ano; e Silvana, a professora de educação física. Os olhares das cinco estão concentrados em mim e eu sinto minhas bochechas esquentarem.
— Desculpe, é só... — começo, mas me interrompo ao perceber que não sei pelo que exatamente estou me desculpando.
— A gente sabe! — Silvana responde entre risos e eu rio junto, mesmo sem ter a menor ideia do que é que ela está falando. É aquele ditado, na dúvida, sorria e acene.
— É impossível não se deslumbrar, né? — Bianca completa, alisando sua barriga redonda e imensa. Mesmo que eu a veja cinco vezes por semana, ainda não consigo não me surpreender com o fato de que só tem um bebê ali dentro. Se eu não tivesse visto um vídeo do seu ultrassom, juraria que há pelo menos três.
Ao redor da mesa, todas riem e acenam em concordância e eu finalmente entendo com o que elas acham que me distrai: a riqueza estampada em cada detalhe da festa.
— A gente até se acostuma, mas aí um pai acha que colocar um carro de corrida personalizado na festa da filha é normal e a gente é lembrada da diferença colossal que existe entre as nossas contas bancárias e as dos pais dos nossos alunos — Katarina comenta e é impossível segurar a risada, porque ao mesmo tempo em que não era exatamente sobre isso que eu pensava, era sim.
É impossível não admirar o luxo da decoração. Para começar, a comemoração tem dois temas. Bonecas e carrinhos de corrida se misturam pelo ambiente exclusivo todo montado para se parecer com uma casa de festas ao ar livre. Depois de conviver de perto com Beatrice por quase oito meses, o desejo por isso não me espantou, mas sim o fato de ele ter sido atendido com tamanho empenho e perfeição.
O carro de corridas em que as crianças podem entrar para jogar vídeo game, onde a própria aniversariante está neste momento, não é a única coisa cuja representação em tamanho real parece absurda. Há também cinco Barbies, todas maiores do que eu, e uma delas está vestida por um macacão de piloto de Fórmula 1.
Uma réplica exata da miniatura que Beatrice está usando agora, bem diferente do vestido cheio de camadas com o qual nos recebeu, ao lado da avó.
— Falando em pai, alguém já o viu? — Silvana pergunta com um sorrisinho de canto e eu ergo as sobrancelhas.
— Ainda não — Bianca responde.
— Talvez na hora do parabéns — Marjorie sugere e a pergunta deve ficar estampada em meu rosto, porque todas riem quando olham para ele.
— Você ainda não conheceu Hugo Maldonado, conheceu, Pedro? — Katarina pergunta e eu balanço a cabeça, negando ao que ela assente. — Assim que conhecer, vai nos entender.
— Como assim?
— O homem é um colírio! — Quem responde é minha coordenadora e minhas sobrancelhas se erguem em surpresa. Quer dizer, eu entenderia a empolgação de Silvana ou de Cássia, que são solteiras. Mas Marjorie tem cinquenta e cinco anos e uma foto do seu marido e filhos sobre a mesa do seu escritório. Como se lesse meus pensamentos, ela emenda a resposta que me deu com uma justificativa simples, seguida por uma risadinha. — Eu sou casada, não cega. Você ainda não o viu porque não frequenta as reuniões, mas não há santa que resista a uma olhada, meu filho.
Minha garganta arranha quando reprimo uma risada, porque essas são palavras que nunca imaginei ouvir da mulher de pele escura e cabelos crespos grisalhos, principalmente se tratando do pai de uma aluna. Na verdade, essa é a primeira vez que encontro qualquer uma das mulheres ao meu redor fora dos muros do Instituto Atheniense, apesar de trabalhar com elas há dois anos.
Ser auxiliar de turma, e o único professor homem, mesmo em um dos melhores colégios do Brasil, não é uma função muito glamorosa. É quase como ser invisível. No meu caso, como lido diretamente com as crianças, às vezes tenho a impressão de que elas são as únicas a me enxergar de fato.
— A mãe da Beatrice foi uma mulher de sorte, então — comento, sem saber o que mais eu poderia dizer para a minha chefe.
— Eu não me importaria de ser a próxima mãe dela. — É Silvana quem diz e meus olhos se arregalam em horror, mas são os únicos a ter essa reação. Os demais pares em torno da mesa se estreitam quando suas donas riem baixo, alto e médio. — É uma pena que justamente no dia em que posso encontrar com aquele pedaço de mal caminho sem precisar agir profissionalmente, dizer isso pra ele não seja de bom tom.
— Não é de bom tom? — pergunto com pura curiosidade. Afinal, para mim, hoje ou em qualquer outro dia, dar em cima do pai de um aluno parece algo de péssimo tom. Mas o fato de Bianca achar que o dia de hoje, e apenas hoje, não é um bom dia, me intriga. — Por causa do aniversário? — questiono, mesmo que eu não veja como isso poderia fazer sentido.
— Não o da menina, mas o da morte da mãe. — Meus olhos se arregalam.
— A mãe dela morreu no parto? — pergunto baixinho.
— Uma tristeza — Marjorie resume, e eu balanço a cabeça, sentindo o peito apertar com o conhecimento. Beatrice sequer conheceu a mãe. O silêncio recai sobre a mesa, mas não dura muito, somente até Cássia falar.
— Sinceramente, eu não preciso de uma aliança, me contentaria com a cama dele! — Todas riem, como se segundos atrás não tivessem falado da morte de alguém, mas dessa vez eu não consigo acompanhar, fingir que está tudo bem para mim, porque não está.
O luto é mesmo uma coisa complicada, que se debate, desdobra e transforma, mas nunca, nunca mesmo, para de doer. Às vezes, você até consegue esquecê-lo, cobri-lo, escondê-lo dos seus olhos, mas basta uma palavra ou situação para que um gatilho seja disparado e a cortina caia, te lembrando de que o tempo inteiro ele esteve ali, ao seu lado.
Ouvi essas palavras pela primeira vez quando eu tinha apenas sete anos de idade. Não entendi o que a psicóloga quis dizer na época, não entendi quando as ouvi de novo, ano após ano e me tornei um adolescente. Eu não conseguia entender porquê a dor simplesmente não ia embora, nunca.
Precisei que o tempo de ausência ultrapassasse em duas vezes o tempo de presença e, somente aos vinte um anos, compreendi que a saudade é uma dor impossível de anular. Aprendi a conviver com ela, mesmo que ainda hoje, aos vinte e três, às vezes eu ainda não consiga evitar pensar na vida que eu poderia ter vivido.
Porque quando dói, não é dos dias ensolarados, fazendo piqueniques no gramado na frente de casa que sinto falta, nem das caças aos chocolates nas páscoas ou das manhãs de natal com os pés da árvore cobertos de presentes de todas as cores e tamanhos. Eu sinto falta dos sorrisos que se apagaram, das gargalhadas que se silenciaram e das vozes que nunca mais ouvi.
Sinto falta dos rostos, que hoje, exatos dezesseis anos depois de um acidente de carro ter tirado meus pais de mim, eu só me lembro porque há fotografias. Sinto falta das festas de aniversário que não tive, de alguém que pudesse comemorar comigo minhas formaturas, do presente que eu sei que teria ganhado quando passei no vestibular.
Eu sinto falta de um lar. Eu sinto muita, muita falta da vida que eu poderia ter vivido se um homem bêbado não tivesse achado que seria uma boa ideia dirigir seu caminhão naquela noite.
— Com licença, eu preciso ir ao banheiro — digo já me levantando, sem conseguir passar mais um segundo sequer em meio à conversa sorridente que já voltou a se desenrolar sem que eu saiba qual é o assunto da vez.
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O caminho indicado por uma funcionária do buffet até o banheiro parece um labirinto, mas ao invés de sebes altas e verdes, os obstáculos são crianças ou brinquedos gigantes. Não reclamo. Ver os pequenos correndo de um lado para o outro, suados e aos gritos, silencia a voz dentro da minha própria cabeça, me distrai.
Um menino passa aos tropeços por mim, quase me derrubando, e eu rio da sua pressa para chegar ao próximo brinquedo e do pedido de desculpas gritado enquanto ele corria para longe.
Interrompo meus passos quando me deparo com uma espécie de contêiner. Quer dizer, não é bem um contêiner, talvez tenha sido um dia, mas diante de mim está uma construção térrea, provavelmente maior que o apartamento que divido com Melissa, de concreto e vidro. Apesar de o segundo cobrir boa parte da parede frontal, não consigo ver o que há por trás dela, uma vez que há persianas fechadas do lado de dentro.
Será que o banheiro é aqui? A moça me disse para virar à esquerda lá atrás, não disse? Ou teria sido à direita? Merda, não me lembro. Ao meu redor não há mais sinais de crianças ou festa, tudo ficou para além da última curva. Faço um bico com os lábios e o movimento de um lado para o outro. Eu não estou apertado, talvez eu devesse voltar.
Estico a mão na direção da maçaneta, decidindo testar para ver se não é o banheiro, mas antes que eu a alcance, uma voz grossa me para.
— Esta parte da casa não está aberta para os convidados. — O tom de repreensão faz com que eu me vire quase imediatamente e não tenha tempo para me preparar para a visão que me aguarda.
Barba grisalha e cabelos escuros emolduram um rosto de maxilar quadrado, sobrancelhas grossas, um nariz levemente torto que denuncia já ter sido quebrado em algum momento da vida e uma expressão severa. Os olhos do homem, fixos em mim, não deixam dúvida sobre sua completa indignação por me encontrar aqui e a julgar por sua postura, o único indício de que ele não é um segurança da casa são suas roupas: bermuda clara, camisa polo azul marinho e mocassins.
Minha observação silenciosa não o agrada, percebo tarde demais quando a expressão em seu rosto se agrava, e ainda que eu esteja levemente apavorado por ser pego em um lugar não autorizado, não consigo evitar pensar que esse homem pode até não ser o milionário gostoso que Melissa esperava que eu encontrasse, mas ele certamente é gostoso.
Na verdade, ele é mais do que isso. Há uma aura de poder sendo emanada em minha direção que arrepia os pelos curtos da minha nuca e me faz prender a respiração em espera, me faz desejar ouvir sua voz mais uma vez, mesmo que a intensidade dos seus olhos escuros me diga que o homem diante de mim não tem palavras agradáveis para me dizer.
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*** HUGO MALDONADO ***
Olhos escuros, redondos e levemente amendoados nos cantos inferiores me encaram assustados e eu estreito as sobrancelhas tentando controlar meu humor, afinal, pode se tratar apenas de um convidado perdido, mesmo que sua postura corporal grite que ele acabou de ser pego no flagra.
Vir ao escritório no meio da festa de Beatrice não estava nos meus planos e se mesmo sabendo disso meu assistente me ligou, é porque alguma merda muito grande aconteceu ou está prestes a acontecer, o que me deixou sem opções e mais irritado do que de costume. Encontrar alguém tentando invadir meu local de trabalho quando achou que ninguém prestaria atenção definitivamente não melhora meu temperamento.
— Quem é você e o que está fazendo aqui? — A desconfiança fica impressa em meu tom de voz e nas palavras ditas nele.
— E-eu... — ele gagueja antes de fazer uma pausa e fechar os olhos, me dando alguns segundos para observar todo o seu rosto.
As bochechas são altas e os lábios grossos rosados. O nariz não é fino, mas é arrebitado e os cílios parecem ainda mais longos quando fechados. Em um reflexo automático, desço os olhos em uma análise de corpo inteiro do homem pequeno de músculos acentuados.
— Você saiu dos limites da festa, porque... — começo a explicação que quero ouvir sem muita disposição para esperar que ele decida quais palavras usar e cruzo os braços na frente do peito. No entanto, a resposta que recebo é bem diferente da que eu desejo.
— Fora dos limites? — pergunta e pisca os olhos bonitos várias vezes, parecendo surpreso.
Uma das minhas sobrancelhas se ergue à medida que a pouca paciência que tenho se esvai em uma velocidade nada surpreendente para os meus próprios padrões. Levanto o dedo indicador e o giro em seu próprio eixo, trazendo a atenção do homem para o nosso derredor.
— Talvez o silêncio ou a falta de decoração devessem ter sido um indicativo? — pergunto com ironia e a compreensão finalmente toma conta da sua expressão, mas não vem sozinha.
— Oh, Deus! — o cara murmura baixinho e sofrimento se mistura ao óbvio constrangimento agora estampado em seu rosto antes de ele desviar os olhos para o chão. — Me desculpe — pede ainda olhando para baixo e o movimento da sua garganta denuncia a dificuldade em engolir. Ele solta uma expiração profunda antes de voltar a me encarar e balança a cabeça de um lado para o outro. Agora, parecendo consternado. Como tantos sentimentos podem atravessar um único rosto em questão de segundos? Franzo a testa. — Eu estava procurando o banheiro — explica precariamente, parecendo mais preocupado em tentar sumir com a força do próprio pensamento. O homem move as mãos e bate os pés, ansioso por inteiro.
— Você passou por ele pelo menos trinta metros atrás — digo, estreitando os olhos, mesmo que para minha surpresa, a desconfiança esteja começando a dar lugar a algo mais parecido com curiosidade.
— Eu estava distraído. — Pisca mais algumas vezes. — As crianças, meus pensamentos, não devo ter visto.
— Você deveria prestar mais atenção por onde anda quando estiver na casa alheia ou pode encontrar algo que não quer ver ao invés de simplesmente ser encontrado onde não deveria. — A boca carnuda se abre em um “O” que escancara seu choque com as minhas palavras. Tão transparente... Interessante.
— Eu já pedi desculpas — afirma quando uma ruga surge em sua testa. Todo o corpo pequeno vai da postura envergonhada para a defensiva em segundos.
E o canto dos meus lábios treme quando contenho a vontade de sorrir. Inclino a cabeça levemente para o lado e arqueio uma sobrancelha em desafio.
— Desculpas não mudam os fatos — digo antes de passar a mão pelos cabelos, decidindo que isso foi o suficiente. — Se você me der licença. — Estendo o braço, indicando a ele o caminho de volta à festa e o homem abre e fecha a boca várias vezes enquanto pisca os cílios longos rapidamente, uma vez atrás da outra. Por fim, ele abana a cabeça rapidamente de um lado para o outro como se não pudesse acreditar na minha audácia e eu estreito os olhos não podendo acreditar na dele.
— Me desculpe, mais uma vez — diz em um tom irritado e minha única resposta é um acenar em concordância.
Com passos apressados para suas pernas curtas, o moreno toma o caminho que apontei, e quando passa por mim seu cheiro me arrepia. Uma mistura de algo cítrico com madeira. Uma sensação estranha me percorre, mas não dou atenção a ela. Não tenho tempo para isso. Assim que tenho certeza de que ele está de volta aos limites da festa, posiciono meu dedo sobre o leitor de digitais e giro a maçaneta.
*********
— Imaginei que te encontraria aqui. — Ergo os olhos para a porta e encontro Breno parado no batente pouco mais de meia hora depois de eu ter entrado no escritório.
— Já estava terminando — aviso, mas isso não o faz ir embora. Meu irmão olha para os lados, confirmando que estamos sozinhos e eu solto o corpo na cadeira porque sei o que isso significa.
Estamos prestes a ter “a conversa”. Aquela que minha filha tão misericordiosamente me fez o favor de interromper mais cedo, mesmo sem saber. Seria pedir muito que ela fizesse o mesmo agora?
Meus olhos vão para o porta-retrato sobre a minha mesa, onde o rosto alegre de Beatrice me encara e eu espelho seu sorriso. Estico as pontas dos dedos e toco a imagem estática. O som de Breno sentando-se na cadeira diante de mim leva minha atenção em sua direção.
— Mamãe está com a Be? — pergunto, ainda que eu já saiba a resposta. Conhecendo minha aversão a eventos, minha mãe assumiu para si o papel de anfitriã dos aniversários de Beatrice há anos.
— Como se fosse uma sombra. — Assinto e fecho as últimas janelas abertas em meu computador antes de desligá-lo.
— Não sabia que vocês tinham convidado os professores.
— Beatrice fez questão. Ela anda muito apegada — comento, e meu tom sai mais amargo do que eu pretendia. Meu irmão nota.
— Ainda preocupado com a mudança?
— Com a escola, principalmente. Tenho uma reunião em algumas semanas. Vamos ver o que conseguimos decidir. — Breno assente.
— Você tem razão sobre a Be estar apegada. Ela me apresentou a cada um dos professores e a mamãe precisou de muitos argumentos para conseguir tirá-la do colo de um deles.
— Pedro?
— Conhece?
— Não, mas é de quem a Beatrice mais fala. É o professor auxiliar da turma. Geralmente só as professoras estão presentes nas reuniões, mas vou pedir pra conhecer o rapaz na próxima — digo, guardando alguns papéis nas pastas de onde os havia tirado e conferindo se ainda há alguma coisa fora do lugar.
— Deixa de ser metódico, porra. — Levanto apenas meus olhos, deixando claro para Breno que realmente não me importo com sua opinião sobre a minha necessidade de organização. — E talvez você a conheça antes. — Isso sim conquista toda a minha atenção.
— O que você quer dizer? — pergunto com a testa franzida para o meu irmão.
— Que eu pretendo convidá-lo pra sair antes de a festa acabar e quem sabe aonde isso pode dar... — responde com simplicidade, um sorriso sacana se acumula no canto dos seus lábios e eu engulo o grunhido de irritação ansioso para fugir da minha garganta.
— Nem fodendo — digo, no lugar.
— Por que? — Breno abandona a postura relaxada e desgruda as costas da cadeira, se aproximando de mim.
— Porque ele é a porra do professor da sua sobrinha, Breno. Ele está fora dos limites — explico o óbvio e a expressão inconformada que toma conta do seu rosto me faz balançar a cabeça de um lado para o outro, em negação.
— Ele é o auxiliar! — argumenta e eu reviro os olhos.
— Foda-se! Auxiliar ou não, ele ainda é uma figura importante. Você realmente quer que sua sobrinha seja usada como pretexto pra homem te procurar depois que você se cansar e parar de retornar às ligações dele? Ou, pior, quer ser o culpado pela decepção da Beatrice quando o professor se afastar dela porque teve o coração partido por você?
— Quem disse que eu vou partir o coração de alguém? — Minha única resposta para essa pergunta é um olhar condescendente. Tanto quanto eu tenho alergia a lugares lotados, Breno tem a compromisso.
— Você supera.
— Diz isso porque não a viu. — Meu irmão faz uma pausa dramática cuja única serventia é me irritar. — Gato pra caralho! — declara por fim.
— Eu tenho certeza que você vai encontrar alguém pra te consolar dessa perda antes que o relógio alcance a meia noite.
— Pode apostar que eu vou — confirma e eu bufo. Um silêncio confortável se instala entre nós enquanto eu termino de esvaziar minha mesa.
— Sete anos. Dá pra acreditar? — Estreito os olhos. Merda! Achei que ele tivesse se distraído o suficiente para esquecer para que veio atrás de mim, em primeiro lugar.
Apesar de essa não ser a abordagem que eu esperava, não tenho dúvidas de para onde ela vai nos levar. Expiro profundamente quando as palavras de Breno invocam um milhão de memórias que flutuam até a superfície dos meus pensamentos.
— Não. — Rio sozinho das imagens se desenrolando por trás dos meus olhos. — Parece que foi ontem que a Thaís me contou que estava grávida. — Breno assente e cruza uma perna sobre a outra, apoiando o tornozelo esquerdo sobre o joelho direito. — Diz o que quer e vamos acabar logo com isso — peço ao espelhar sua posição e meu irmão vira o rosto, movendo sua atenção de mim para o ambiente ao nosso redor.
— Você é feliz? — pergunta diretamente, me pegando de surpresa pela segunda vez nos últimos minutos. Meu rosto provavelmente denuncia isso, porque Breno ri sem humor quando volta a me olhar. — Sete anos, Hugo. — Faz uma pausa, considerando suas próximas palavras. — Eu não costumo dizer isso em voz alta com frequência, porque Deus sabe que seu ego não precisa de ajuda para ser inflado, mas você sempre foi o meu herói. Mais até que o papai. Meu irmão mais velho fodão que resolvia todos os problemas, o cara que todos os meus amigos queriam ser ou ter como irmão.
— Essa sessão gratuita de massagem ao meu ego tem algum propósito? — desdenho, porque vulnerabilidade é uma abordagem com a qual não sei lidar. Breno não cai na minha provocação. Um sorriso triste entorta seus lábios e ele balança a cabeça para cima e para baixo.
— Eu sempre fui o bobo, mas você costumava ser o irmão divertido.
— As pessoas crescem, Breno. — Faço pouco caso do seu comentário e ele inclina a cabeça, me estudando, antes de dobrar o lábio inferior para fora.
— Crescimento! Tudo bem, vamos falar sobre isso, então. Você realmente acha que a Be vai ser mais feliz crescendo ao lado do homem que você é hoje do que daquele que você costumava ser? — Recuo, sentindo o impacto das suas palavras me atingirem com tanta intensidade quanto um soco teria feito. — Eu não estou dizendo que eu não entendo, Hugo — afirma e busca meus olhos, como se quisesse que eu visse em suas íris castanho-escuras que ele está dizendo a verdade. Quando volta a falar, sua voz sai algumas oitavas mais baixa. — Eu me lembro da Thaís, eu me lembro de você sorrindo bobo pelos cantos e fazendo um milhão de planos, irmão. Eu me lembro de tudo isso e não quero diminuir nada do que você viveu com ela, mas já faz sete anos.
Empurro a bochecha com a ponta da língua, engolindo a pergunta ansiosa para ser feita. Ele acha que eu não sei? As pessoas continuam repetindo que já se passou muito tempo como se esse fosse o requisito para que a vida volte ao normal quando a verdade é que não se pode fazer a bala voltar para o cano da arma uma vez que o gatilho foi disparado.
A pessoa que eu era... Apoio o cotovelo sobre o braço da minha cadeira e passo os dedos sobre meu queixo coberto pela barba cheia. Inclino a cabeça e deixo que meus olhos vaguem sem destino por alguns segundos antes de desistir.
— Vamos lá!
— O quê?
— Diz que é hora de eu seguir em frente e a gente pode encerrar essa conversa e voltar pra festa.
— Hugo — ele começa, mas eu simplesmente não posso mais lidar com essa conversa.
— Hugo o quê, porra?! — o interrompo, e Breno me encara em silêncio. — O que você quer de mim? — pergunto num tom que poucas vezes usei com meu irmão e ele mantém o silêncio impassível, apenas me observando, como se pela primeira vez em todos esses anos estivesse conseguindo ver além da superfície.
— Que você seja feliz, irmão. Só isso. — Passo as mãos pelos cabelos e aperto os olhos com força. Quando volto a encarar o rosto do meu caçula, o descontrole já foi devidamente guardado em uma caixa de onde não deveria ter saído.
— Eu sou, Breno — afirmo, porque é verdade. Mas guardo para mim o pensamento de que sou mais do que mereço. — Beatrice é toda a felicidade que eu preciso. Mas o que você precisa entender é que o homem que eu fui ninguém pode ser duas vezes. Há algumas coisas que só se deve viver uma vez — recito em voz alta as palavras gravadas ao redor do buraco em meu peito. Meu irmão passa a língua sobre os lábios antes de acenar.
— Eu espero que você esteja errado. — Sorrio e me levanto. Dou a volta na mesa e paro diante dele. Levo a mão ao seu rosto e dou dois tapinhas leves ali antes de beijar sua testa.
— Vamos, Breno. Eu já fiquei ausente por tempo demais. — Ele me encara de baixo, como fazia quando éramos mais jovens e nós não tínhamos a mesma altura. Seu olhar ainda é aquele de que vê mais do que já enxergou antes quando ele me responde.
— Com isso eu concordo. Por tempo demais — diz, me dando a impressão de que não é sobre a festa que está falando, antes de se levantar também.