Meu Desejo - Capítulo Cinco

Da série Meu Desejo
Um conto erótico de M.K. Mander
Categoria: Gay
Contém 5536 palavras
Data: 20/10/2023 02:05:34

CAPÍTULO CINCO

*** PEDRO FERNANDES ***

— Você pode deixar essa vassoura exatamente onde ela está! — O tom usado não abre espaço para dúvidas sobre ter sido uma ordem. Ainda assim, estendo a mão para o objeto, mas apesar da idade, Monica consegue ser mais rápida do que eu e agarrar o cabo primeiro. Seus olhos estão estreitados quando ela volta a falar. — Vá para casa, Pedro! Você terminou aqui.

Sorrio de canto e ergo uma sobrancelha para a mulher de pele castanha e olhos esverdeados. Monica parece uma daquelas mães dedicadas dos conselhos escolares dos filmes que se passam em subúrbios americanos. Em seus jeans e camiseta listrada verde e branca, ela poderia ser figurante em qualquer um deles.

— E te deixar sozinha? Nem pensar! — Estalo a língua. — Já guardei os materiais Monica, estamos quase acabando. — Passo os olhos pela pequena sala cheia de carteiras escolares, procurando a pá de lixo.

— É domingo à noite, menino! Você é jovem demais pra ficar preso aqui, eu sou uma velha caquética, o chão é minha única esperança de um beijo, mas você não. Já basta ter passado o dia. — Isso me faz gargalhar.

— Velha caquética aonde, Mônica? Um mulherão desses, pelo amor de Deus! — Ela bufa, desdenhando da minha declaração, mas o leve erguer no canto da sua boca me diz que seu ego gostou.

— Meus filhos são mais velhos do que você — argumenta.

— E quando eu tiver a sua idade, se tiver a sua aparência, vou estar beijando bocas, não chão.

— Que tal começar agora?

— Como assim?

— A beijar bocas.

— Aff, Mônica. — Reviro os olhos, percebendo que meu tiro saiu pela culatra. — Na verdade, meus planos envolvem uma tesoura beijando EVA. Eu disse quando tiver a sua idade, não na minha idade. — Dou de ombros, achando que me recuperei muito bem.

— Pois na sua idade, eu estava beijando uma única boca e estava muito feliz com isso, a do meu marido e pai dos meus filhos. Eu estava fazendo meus filhos, na verdade.

— Ah, pelo amor de Deus! — reclamo. — Eu não preciso dessas imagens mentais. — A professora aposentada solta uma gargalhada alta antes de começar a usar a vassoura que tem na mão.

— Já que você é teimoso feito uma porta, pega a pá. Quatro mãos serão mais rápidas que duas e você vai poder voltar para casa pra beijar seu EVA. Se bem que, se esses realmente são seus planos, até minha companhia é melhor.

— Agora você só está sendo convencida — digo, ao atravessar a sala, desviando das cadeiras e mesas vazias até alcançar a pá de lixo e trazê-la para Mônica. — O que você achou da aula de hoje? — pergunto, mudando de assunto.

— Eles estão se desenvolvendo bem, seus métodos estão fazendo toda a diferença! Puxar assunto com você naquela fila de supermercado foi a melhor coisa que eu poderia ter feito por essas crianças — diz e eu estalo a língua antes de dispensar seu comentário com um aceno.

— Fala sério, Mônica. Você estava indo muito bem antes de eu chegar, o que você faz aqui é... — Pauso, buscando uma palavra diferente daquela que eu sempre repito, mas desisto, porque não acho que exista uma melhor. — Incrível, Mônica. É incrível.

Ser uma daquelas pessoas que sempre puxam assunto em filas já me rendeu muitas coisas. Xingamentos, bufares, reviradas de olhos, conversas muito legais ou muito esquisitas, mas Mônica e seu projeto social, com certeza, foram as melhores delas.

No momento em que comentei com a mulher de cabelos escuros e lábios finos sobre como a garrafa de óleo estava custando um rim, eu não imaginava que poderia até precisar deixar um pedaço de um órgão vital no caixa daquele supermercado, mas que estava ganhando um novo motivo para que o meu coração batesse.

O Florescer é um projeto de facilitação para crianças neurodivergentes. Crianças cujos pais não entendem suas dificuldades para além da sua existência. Aos sábados e domingos, Mônica os recebe em uma das muitas salas de uma igreja do bairro e com a ajuda de outros professores, aposentados como ela ou em exercício como eu, a entenderem as próprias dificuldades e a superá-las, passo a passo.

Há seis meses vim ao primeiro encontro e, desde então, faço o meu melhor para vir pelo menos um por fim de semana. E, mesmo que eu não consiga vir, todas as semanas, planejo atividades e avalio a evolução dos alunos. Educação especial é uma das minhas paixões e embora o momento da minha especialização ainda não tenha chegado, eu consumo todo o material que encontro a respeito e muitas das coisas que aprendi vem sendo colocadas em prática e produzindo excelentes resultados.

Paro diante de Mônica, segurando o cabo da pá de lixo e ela empurra a poeira que varreu para o coletor. Uma, duas, três vezes, até que eu tenha conseguido recolher tudo e descarte no saco de lixo preto ao lado da porta.

— Viu só? Acabamos! — declaro. Ela inclina a cabeça para mim, sorrindo, mas não diz nada. — O que foi?

— No dia em que você colocar toda essa teimosia a favor da sua vida pessoal, talvez comece a beijar pessoas, ao invés de coisas.

— Mas aí o que você faria sem a minha presença ou métodos?

— Quem está sendo convencida agora, hein? — questiona com uma sobrancelha arqueada e eu aprumo os ombros antes de movimentá-los sutilmente em uma dispensa silenciosa.

— O que eu posso dizer? Aprendo rápido.

***************

MEL: Tropeçou e caiu no colo de um milionário?

Reviro os olhos e bufo quando leio a mensagem de Melissa na tela e mantenho o ritmo apressado dos meus passos, caminhando da estação de BRT até o IABE. Morar na zona norte do Rio de Janeiro e trabalhar na zona oeste seria um desafio de deslocamento em qualquer circunstância, mas precisando estar no colégio às sete da manhã, também pode ser considerada uma espécie de tortura.

A semana mal começou e eu já estou correndo. Verdade seja dita, ultimamente, eu pareço estar sempre correndo, de alguma coisa, de um lugar para o outro, não importa por quê, mas sempre correndo. Abaixo os olhos para a tela do celular, relendo as palavras ali quando paro no semáforo, esperando que ele fique verde para os pedestres.

Melissa não voltou para casa este fim de semana. Como sempre faz quando vai visitar os pais em Campos do Jordão, só voltou para o Rio hoje, segunda-feira, e foi direto para o trabalho. Isso significa que ainda não tivemos a chance de conversar sobre o aniversário de Beatrice.

Por alguma razão, um rosto anguloso preenche meus pensamentos. Tudo bem, talvez ele já os estivesse preenchendo antes da mensagem da minha amiga chegar. O homem grosseiro, incapaz de aceitar um pedido de desculpas.

Reconheço que eu estava errada, realmente não deveria andar pela casa dos outros distraída o suficiente para não saber onde estou indo. Mas o que exatamente ele quis dizer com “Você deveria prestar mais atenção por onde anda quando estiver na casa alheia ou pode encontrar algo que não quer ver ao invés de simplesmente ser encontrado onde não deveria.”?

Ele estava prestes a fazer algo que eu não gostaria de ver? Quem era ele, afinal? Passei todo o caminho de volta para casa, no sábado à noite e todo o tempo em que não estive ocupada com as crianças do Projeto Florescer ontem, em um debate mental quase interminável e completamente inútil, porque não fui capaz de encontrar uma resposta para essa pergunta, apenas algumas especulações.

Com certeza não se tratava de um funcionário da casa. Ele estava vestido de maneira muito informal para isso; outro convidado não se importaria sobre onde diabos terminava a festa e com o fato de eu estar além desse limite; talvez ele fosse um parente. O tio da Beatrice eu sei que não era, fomos apresentados quando cheguei. Na verdade, pensando bem sobre isso, os dois até se pareciam.

Não consegui ficar na festa depois daquilo. E a culpa não foi apenas do homem estúpido. A simples ideia de voltar para a mesa e continuar sorrindo e acenando me enjoava. Eu havia cumprido minha promessa para Beatrice, fui até o seu aniversário, mas não poderia permanecer, não mais. Nem mesmo me despedi dela. Conhecendo-a bem, sabia que a pequena manipuladora acabaria me convencendo a ficar. Beatrice é uma criança incrível, mas também é um pouco mimada.

Pedro: Com certeza! E eu estava nu.

Não consigo evitar sorrir quando envio uma resposta tão absurda quanto a pergunta que me foi feita. Melissa é louca.

Mel: A sua vida poderia ser tão mais divertida!

Pedro: Se eu tropeçasse em milionários e caísse no colo deles?

Mel: E nu!

Eu gargalho dando uma corridinha ao atravessar mais uma rua, dessa vez, sem esperar que o sinal fique verde para mim. Um carro buzina alto quando estou quase na calçada e franzo as sobrancelhas. Sério? Não dava para esperar cinco segundos?

Balanço a cabeça em negativa e me recuso a dar ao motorista um olhar que seja.

— Bom dia, Graça — cumprimento a porteira do IABE que me espera sorridente.

— Bom dia, menino. Como foi o fim de semana? Descansou? — A pergunta me obriga a lembrar das palavras de Melissa que em algum grau também se pareceram com as de Mônica. Adorei cada momento do meu fim de semana, desde o tempo que passei com as crianças do Florescer até os recortes de EVA que consumiram o restante do meu tempo e que agora estão perfeitinhos, dentro da minha bolsa, prontos para serem usados amanhã na atividade da aula de ciências. No entanto, emocionante não é exatamente o adjetivo adequado para descrever a forma como meu tempo foi gasto.

— Descansei. — Me limito a responder. — E a sua neta? Como está?

A nora de Graça acabou de ter uma menininha linda da qual a mulher de quase sessenta anos passa o tempo quase inteiro falando. É uma tática muito eficiente para mudar de assunto. Descobrir do que as pessoas ao seu redor mais gostam de falar e quando a conversa com elas estiver indo para um lado que você não gosta, mencionar, como quem não quer nada, aquele assunto. Funciona todas as vezes.

— Está ótima! Sorriu pra mim! Acredita? Nove dias de vida e já sorriu pra vovó — afirma orgulhosa e eu acabo espelhando o seu sorriso.

— Ela é uma garota esperta, Graça. Agora deixa eu entrar que eu ainda preciso arrumar a sala.

— Vai lá! Bom trabalho.

— Pra você também.

*********

Beatrice está chateada.

Não com todos, comigo. O primeiro sinal foi sua chegada à sala de aula. Ao invés de se lançar em meus braços como sempre faz, ela foi direto para sua carteira e sentou, não me dando mais do que um “Bom dia, professor Pedro.” que vindo de qualquer outra criança seria normal, mas vindo dela, foi extremamente atípico.

Primeiro, achei que ela poderia estar se sentindo mal, mas assim que a aula começou, a pequena começou a interagir com as outras pessoas na sala e continuou praticamente me ignorando, entendi que o problema era eu, não ela. Tive vontade rir. Ainda que Beatrice já tivesse dado alguns sinais desse traço de sua personalidade, eu nunca o tinha sentido de maneira tão direta. Beatrice é uma pequena rancorosa, já que há somente um motivo para que ela esteja chateada comigo: o fato de eu ter saído da sua festa sem me despedir.

— Acho que isso também deveria ser levado para a reunião de pais — Bianca diz, parando ao meu lado, atrás da mesa da professora, de onde observo Beatrice interagindo com um grupo de outras quatro crianças, fazendo uma atividade de pintura. — Ela não pode se fechar em si mesma toda vez que ficar chateada com algo ou alguém.

— Você também percebeu? — pergunto e ela dá uma risadinha.

— Nós fomos de “Professor Pedro” gritado e saltos acrobáticos pra uma indiferença quase gélida. Seria impossível não notar. Mas não é a primeira vez, nem a segunda, nem a terceira — afirma, me fazendo virar o rosto com a testa franzida. Bianca tem os braços ao redor da barriga redonda, acariciando-a em um gesto quase automático. Às vezes, me pergunto se ela percebe o que está fazendo.

— Eu já tinha notado alguns sinais — admito. — Mas foram tantos assim? — A cabeça da professora balança para cima e para baixo antes de ela voltar a falar.

— Semana passada quando a Léa não quis emprestar a boneca no dia do brinquedo, lembra-se do que aconteceu?

— Beatrice não quis fazer a atividade da aula de música com o grupo em que a Léa estava.

— Exatamente. E na semana retrasada, quando a Malu não quis combinar com ela de vir de pijamas no dia de roupa livre, Beatrice passou as primeiras horas da manhã ignorando a colega e só voltou a falar com ela quase no fim da aula. — Faz uma pausa, me dando tempo para processar. — Na semana anterior, foi o Davi que discordou que o carrinho laranja era o mais bonito. — Inclino a cabeça, pensando.

— Ela não briga. Não tenta impor a vontade dela sobre a dos outros — considero, baixinho.

— Não, mas constrói muros entre ela e quem quer que manifeste uma opinião ou vontade diferente. Passa rápido, mas se não for tratado com seriedade... É só uma questão de aprender a lidar com o não.

— Entendi.

— Vou colocar no relatório, porque se meu menino souber o que é bom pra mãe dele… — Faz uma pausa e olha para a barriga protuberante. — Vai nascer antes dessa reunião acontecer, então informar isso a Hugo Maldonado vai ser um problema seu e da Cássia. — Isso me faz rir.

— Ruim assim? — pergunto, sabendo bem o que as palavras que Bianca não disse querem dizer. Alguns pais são... difíceis, para dizer no mínimo. Eles colocam os filhos num pedestal e não há opinião profissional capaz de tirá-los de lá.

Curiosamente, me dou conta que apesar de adorar a menina, nunca realmente pensei sobre o seu pai até o momento em que ele se tornou o assunto na mesa, no dia do aniversário de Beatrice e, mesmo depois daquele momento, não lhe dei um segundo pensamento.

— Em breve você vai ter o prazer de descobrir.

— Sua fuga não fez parecer muito prazeroso — comento, rindo.

— Para os olhos? Muito. Para a mente? Nem tanto, mas não se pode ter tudo, não é mesmo?

— Não, não se pode — concordo e olho para o relógio, confirmando que o tempo designado para a atividade em que as crianças estão envolvidas está prestes a acabar. — Vou tentar ensinar isso a uma garotinha. — Pisco para Bianca e pego a cesta onde guardamos os pincéis. Me dirijo à mesa redonda onde Beatrice está sentada e paro ao lado das crianças. — Uau! Que pintura mais linda! O que vocês pintaram? — Eu sei que estou olhando para um balão, mas fazer com que as crianças desenvolvam a capacidade de se expressar e apresentar seus projetos é um dos pilares do IABE.

— Um balão, professora Pedro — João, um garotinho de cabelos longos e escuros, responde.

— E por que vocês fizeram um balão?

— Porque ele é um meio de transporte, como a professora Cássia pediu pra pintarmos. — Agora, quem responde é Marcel. O outro menino do grupo de quatro crianças. Seus cabelos crespos e quase ruivos são cortados rente ao couro cabeludo.

— Muito bem! Quem vai pendurá-lo para secar?

— Eu vou! — Evellyn se oferece e todos colocam seus pincéis dentro do copo de água no centro da mesa.

— Ótimo — digo e olho para Beatrice, a única que ficou em silêncio. Seus olhos permanecem baixos, evitando os meus. — Beatrice, você pode me ajudar a guardar os materiais? — pergunto e ela finalmente olha para mim. Talvez rancorosa não seja um adjetivo correto para defini-la, porque a menina não me olha com raiva, ela parece triste. Como se o afastamento imposto por ela mesma mais a chateasse do que lhe desse satisfação. — Por favor? — reforço e ela balança a cabeça, concordando.

Beatrice se levanta e recolhe os pincéis não utilizados sobre a própria mesa antes de se dirigir às outras duas mesas e fazer o mesmo. De um em um, ela deixa os potes dentro da cesta que seguro enquanto seus colegas retornam para as carteiras individuais, do outro lado da sala.

— Pronto, professor Pedro.

— Obrigado, Beatrice. Agora você pode pegar os copos de água e as tintas? — Sua resposta é um balançar tímido de cabeça. Rapidamente, ela vai juntando tudo o que está espalhado até que todas mesas estejam vazias e minha cesta cheia. — Vamos organizar? — Ela me acompanha até a bancada nos fundos da sala, onde eu separo os materiais secos dos molhados, deixando os molhados dentro da pia para cuidar depois.

Entrego os pincéis secos para Beatrice que sabe exatamente onde colocá-los e depois de fazê-lo, volta para buscar mais. Quando todos os materiais estão em seus devidos lugares e as mãos da menina vazias, me abaixo, ficando da sua altura.

— Eu preciso me desculpar com você, Be — digo, e uma ruga suave se instala na testa infantil. — Precisei ir embora da sua festa e não pude me despedir. Você pode me desculpar? — pergunto.

— Por que você foi embora? — pergunta, cabisbaixa.

— O tio estava se sentindo um pouco doente. — Isso imediatamente causa uma mudança em sua postura que vai de evidentemente triste para algo que se parece muito com preocupação.

— Doente? — Não deixa que eu termine de falar. — E quem cuidou de você? — Beatrice leva a mãozinha até a minha bochecha enquanto investiga meu rosto, como se pudesse encontrar nele algum sinal de que não estou bem, ou mais, como se pudesse fazer algo caso encontrasse. Meu Deus, essa menina é tão fofa!

— Como assim, Be? Quem cuidou de mim?

— Quando eu fico doente, meu papai e minha vovó cuidam de mim. — A voz infantil explica e eu ergo as sobrancelhas, entendendo seu raciocínio. — Até o tio Breno cuida, mesmo que o papai diga que ele não sabe — divaga, me fazendo rir e sequer percebe. — Quem cuidou de você? — repete a pergunta. — Seu papai e sua vovó? — Sou totalmente pego desprevenido pelas sugestões. Pisco os olhos algumas vezes antes de esconder a surpresa atrás de um sorriso, porque faz muito tempo que aprendi a me cuidar sozinho. É a minha vez de levar a mão ao rostinho de Beatrice. Faço um carinho ali. A tristeza que passou boa parte da manhã preenchendo os olhos escuros foi substituída por um interesse e preocupação comoventes. Meus olhos ardem, emotivos, e a menina, achando que já não me surpreendeu o suficiente, continua: — Se você fosse meu papai, professor Pedro, eu cuidaria de você — diz com simplicidade antes de me abraçar e eu agradeço aos céus por isso, porque não sei o que ela veria se estivesse olhando para o meu rosto nesse momento.

Aceito o abraço e o retribuo, lutando internamente para colocar meus sentimentos em ordem. Se ela fosse minha filha... Há alguns desejos que nos são tão íntimos que nós sequer os dizemos em voz alta, para mim, filhos são um desses.

— Obrigado, Be. — Consigo responder e ela se afasta, agora, vestindo um sorriso imenso.

— De nada, professor.

— Pode sentar, amor — digo, a soltando, e ela assente antes de caminhar de volta para sua carteira.

Eu me levanto e estico os braços sobre a bancada de mármore à minha frente. Fecho os olhos e puxo uma inspiração profunda e silenciosa, me dando alguns segundos antes de voltar a me concentrar no trabalho. Ah, Beatrice...

****************

*** HUGO MALDONADO ***

— E eles viveram felizes para sempre. — Termino a história e fecho o livro em minhas mãos antes de olhar para uma Beatrice muito mais acordada do que deveria estar.

Quem quer que visse sua maratona nas últimas três horas enquanto minha filha tentava brincar com todos os novos brinquedos que ganhou de presente em seu aniversário, pensaria que a essa hora a menina estaria no décimo sono.

Olho uma vez mais ao nosso redor. O quarto está cheio de novas bonecas, ursos e uma infinidade de outras coisas que somente foram organizadas hoje, enquanto Beatrice estava na escola, mas que agora já estão completamente espalhadas ao nosso redor outra vez.

Minha filha senta na cama e seu olhar segue o meu. Mas enquanto eu apenas admiro todas as novidades, ela já está se movendo, pronta para alcançar Bob, a motocicleta elétrica estacionada ao lado da sua cama. Sem dúvida alguma, esse foi seu presente favorito, para minha frustração. Embora ela tenha adorado meu Cockpit, Breno ganhou essa rodada, porque o vídeo game em formato de carro de Fórmula 1 não sai do lugar, a motocicleta, sim.

— Be? — chamo e ela olha para mim com um sorriso sapeca, piscando seus longos cílios castanho-escuros sem qualquer constrangimento. Isso é o suficiente para que eu saiba que sem o estímulo adequado, Beatrice não vai dormir tão cedo. Talvez isso seja um sinal. Minha mente me alerta e mesmo que eu esteja muito inclinado a ignorá-la, reconheço que sim, talvez seja.

Estamos a apenas um mês da mudança para Florianópolis e eu ainda não contei isso para minha filha. Desculpa atrás de desculpa, eu sempre encontrava uma justificativa para adiar essa conversa, mas mesmo eu preciso admitir que a situação está começando a beirar o insustentável.

Passo a mão pelos cabelos, empurrando alguns fios mais longos que caiam sobre minha testa para trás e Beatrice sai debaixo das cobertas e lança seu corpinho pequeno em meu colo.

— Outra? — pede, mesmo sabendo que não, eu não vou lhe contar outra história. Estreito meus olhos e passo meus braços ao redor da cintura estreita, vestida por um pijama com estampa de carrinhos.

— Quantas histórias o papai conta por noite, Be?

— Uma — diz. — Mas, por favor, papai. Por favorzinho. — Deixa que seus olhos caiam, pedintes, e porra, eu poderia lhe dar o mundo inteiro quando ela me olha assim.

— Beatrice.

— Tá bom, papai. Tá bom. Mas eu tô sem sono — explica e eu expiro profundamente. Bem, parece que esse é o momento, então.

— Então vamos conversar — digo e agora seus olhos se arregalam.

— Mas eu não fiz nada de errado, papai. — Mordo um sorriso de canto que tenta se apossar dos meus lábios antes de deixar um beijo na testa da minha filha.

— Eu sei, amor. Eu sei.

— Então por que a gente tem que conversar? — pergunta baixinho, subitamente preocupada.

— Você não gosta de conversar com o papai? — pergunto, mesmo já sabendo a resposta. Sim, ela gosta. Hoje, por exemplo, o assunto da noite foi que o professor Pedro foi embora mais cedo de seu aniversário porque ficou doente.

Aparentemente, Beatrice só não entende ainda que o que ela faz constantemente é conversar. Seus olhos me observam, ponderando, como se achasse que a pergunta é algum tipo de armadilha.

— Quando eu vou pra disciplina, não — responde, por fim, e eu balanço a cabeça, concordando e entendendo seu ponto de vista.

Criar um filho sozinho é difícil de muitas maneiras diferentes, mas a correção, com certeza, é a pior delas. Saber que um ser pequeno e indefeso depende de você para aprender e exercitar as noções de certo e errado já seria complicado o suficiente se esse mesmo ser não fosse a razão do seu coração continuar batendo.

A frase “Isso vai doer mais em mim do que em você.” ganha um significado completamente diferente quando se é pai. Depois de muitas pesquisas, muitos livros lidos e muitas tentativas fracassadas, encontrei um ponto ideal para Beatrice e eu, o cantinho da disciplina.

Quando ela faz algo que não deve, eu lhe aviso e explico o porquê é errado. Se ela insiste, conversamos. Se, ainda assim, ela repete o comportamento, então ela vai para o cantinho da disciplina que nada mais é do que qualquer parede que esteja a pelo menos um metro do lugar onde ela quer estar. Ela fica lá pela quantidade de minutos equivalente à sua idade.

Começamos com um minuto quando ela tinha um ano e o fato de ela expressar sua preocupação me diz que ela sabe que, se hoje é seu aniversário, a partir de agora, o tempo no cantinho da disciplina, quando ele for necessário, também será maior.

— Você fez alguma coisa que devesse te levar pra disciplina? — questiono e ela se apressa em balançar a cabeça de um lado para o outro, negando. — Então não há o que temer. Alguma vez o papai já te mandou pro cantinho da disciplina sem explicar o porquê antes? — Outra vez, sua resposta é um balançar de cabeça negativo. Beijo sua testa. — O papai quer conversar com você sobre uma viagem.

— Pra ver a Elsa? — Mal espera que eu termine de falar antes de fazer a pergunta e, dessa vez, não seguro a risada.

O peso em meu peito parece ser significativamente aliviado por alguns segundos. Desde que assistiu a um vídeo da Disney no Youtube, alguns meses atrás, Beatrice está enlouquecida querendo conhecer as princesas, de que tanto gosta, ao vivo e a cores.

Meus pais e Breno se prontificaram para levá-la na mesma semana, mas eu fui o sensato e disse que ela precisava esperar até o final do ano. Por mais que eu goste de mimar minha filha, sei que facilidades demais podem incentivar certos traços de caráter nada admiráveis. E, quanto mais velha, mais ela vai aproveitar as atrações dos parques. Sete anos e meio parecia muito melhor do que seis anos e oito meses.

— Ainda não, Be. Outra viagem.

— Pra onde?

— Florianópolis.

— Florianópulis? — repete, mas troca o O pelo U.

— FlorianóPOlis — digo, dando ênfase à sílaba que ela trocou.

— Florianópolis — diz corretamente e eu assinto. — O que tem em Florianópolis, papai?

— O trabalho do papai.

— Mas o trabalho do papai não fica no box? — questiona, fazendo referência ao meu escritório.

— Fica também. — Beatrice inclina a cabecinha, pensativa.

— Não entendi. — Levo uma mão até seus cabelos soltos e prendo uma mecha atrás da sua orelha.

— O papai trabalha no box, mas agora ele vai precisar trabalhar em Florianópolis, por isso a gente vai precisar viajar.

— Os vovôs e o tio Breno também vão? — O peso em meu peito retorna com muito mais intensidade.

— Não.

— Mas a gente vai voltar pro almoço de domingo?

— Não meu amor, nós vamos precisar ficar lá por um tempo.

— Até quando?

— Até o natal. — Beatrice pisca os olhos e abre a boca, surpresa.

— Mas o natal ainda tá longe, papai — explica, parecendo realmente acreditar que eu não sei. Ela ergue as mãozinhas no ar. — Ainda tem a festa julina, e o dia dos pais, e o aniversário da vovó, o dia das crianças, o dia dos professores e o aniversário do vovô antes — argumenta e abaixa um dedo para cada data comemorativa citada. Balanço a cabeça, concordando.

— Eu sei, meu amor. Eu sei. — Penso em como responder a isso e quando não encontro uma resposta adequada, tento outra abordagem. — Por isso nós vamos ter uma casa nova até lá.

— Uma casa nova? Mas eu gosto da nossa casa. — Franze as sobrancelhas, demonstrando que eu não estou fazendo qualquer sentido para ela.

— O papai sabe, por isso vai ser só até o natal, depois a gente volta pra essa casa.

— Eu não quero uma casa nova, papai — conclui com simplicidade antes de se dar conta de uma coisa. — E eu não posso viajar, eu tenho que ir pra escola.

— Você também vai ter uma escola nova, Be.

— Mas eu gosto da minha escola.

— E quando nós voltarmos, no natal, você vai voltar pra ela.

— Mas no natal não tem aula, papai.

— Depois do natal, então.

— Mas e os meus amigos?

— Eles podem ir nos visitar.

— Podem?

— Podem.

— E os meus presentes? — pergunta, olhando ao próprio redor.

— Você pode levar todos. Pode levar o que quiser.

— O que eu quiser? — pergunta e inclina a cabeça, pensativa.

— O que você quiser.

— Posso levar a vovó? — Porra! Eu sabia que isso seria difícil, mas caralho.

— Não, amor. Mas eu prometo que a vovó vai nos visitar muitas vezes. E nós também viremos pra muitos almoços de domingos. — Beatrice franze a testa, demonstrando que a resposta não a satisfez. — E eu posso levar o tio Breno? — Puta que pariu.

— Também não, amor. O tio Breno precisa ficar aqui pra cuidar da vovó e do vovô.

— Eu posso levar um cachorro?

— Você não tem um cachorro, Be.

— Mas eu poderia ter e poderia levar. — Espertinha. Minha resposta para ela é um estreitar de olhos, ao que ela responde espelhando meu gesto.

— Não, Be.

— Então eu não posso levar tudo o que eu quiser — constata, e seus ombros caem, me desmontando. Fecho os olhos brevemente e puxo uma inspiração profunda.

— Pode, Be. Desde que não seja nenhuma dessas coisas, você pode — prometo, considerando que ela já eliminou dessa equação todos os seres humanos e um cachorro. Não há outra coisa impossível que ela possa querer.

— Eu posso levar o professor Pedro? — pergunta, ainda com a cabeça baixa e os ombros encolhidos e eu pisco os olhos, atordoado.

— Quem? — questiono, mesmo tendo ouvido perfeitamente. Eu sabia que Beatrice estava demasiadamente apegada ao homem. Se eu já não soubesse antes do seu aniversário, teria pelo menos desconfiado quando ela ficou extremamente decepcionada ao descobrir que o professor havia ido embora antes de a festa chegar ao fim, e hoje também, quando ela voltou da escola completamente em paz sobre isso somente porque o tal Pedro lhe explicou que havia ido embora porque ficou doente.

Eu até mesmo enviei uma mensagem para a coordenadora pedindo que o auxiliar da turma estivesse presente na reunião de pais em alguns dias para que eu finalmente pudesse conhecê-lo, mas eu definitivamente não esperava por esse pedido.

— O professor Pedro. Eu posso levar ele? — Beatrice levanta a cabeça, mas seus ombros continuam caídos. Seu rosto tem uma expressão desanimada que denuncia que ela espera ouvir mais um não e eu suspiro com pesar. Levo a mão à bochecha da minha filha e deslizo o polegar ali e tomo uma decisão.

— Pode, Be. — Beatrice arregala os olhos e inclina a cabeça para trás para mantê-los bem focados em mim.

— Posso? — Seus olhinhos brilham com a percepção e a pedra que se instalou em meu peito quando a vi cabisbaixa parece ceder um pouco.

O homem é um professor, certo? Basta contratá-lo. Isso é muito mais fácil do que um cachorro e com certeza viável, diferente de levar meus pais ou Breno para morar comigo.

— Pode — decreto. — Mas você tem que prometer que não vai contar isso a ninguém enquanto o papai não disser que tudo bem contar, tá?

— E aí eu vou poder levar o professor? — pergunta com os olhos estreitados.

— Vai, Be.

— Então tá bom, papai — concorda, e pelo sorriso que ela me dá em resposta, eu seria capaz de fazer da Rainha da Inglaterra sua babá.

*************

— Você sabe que tráfico humano é crime, certo? — É o comentário idiota de Breno depois que eu lhe conto sobre a minha conversa com Beatrice na noite passada. Sentado em meu

escritório, reviro os olhos e largo a caneta que tinha na mão sobre a mesa.

— Às vezes, Breno, eu realmente me pergunto se ser um imbecil é da sua natureza ou se há algum esforço envolvido nisso — resmungo.

— Engraçado você dizer isso, Hugo. Porque eu me faço a mesma pergunta, só que sobre a sua arrogância. — Ouço o bufar do meu irmão através da linha telefônica. — Posso saber como você pretende cumprir sua promessa? Porque, até onde eu sei, você ainda não desenvolveu poderes telepáticos, logo, não pode ter tido uma conversa silenciosa com o professor da Be enquanto estava em casa, com a sua filha.

— Dinheiro, óbvio. De que outra forma? — Recupero a caneta abandonada e retomo as assinaturas que eu fazia antes das bobagens do meu irmão me distraírem.

— E se ele não quiser dinheiro? — Sopro o ar por entre os dentes sem qualquer paciência para perguntas idiotas.

— Ele nem é um professor de verdade ainda, Breno. É só um auxiliar de turma. É claro que ele quer dinheiro.

— Você não sabe disso.

— É claro que eu sei. Todo mundo tem um preço, é só uma questão de descobrir qual é o desse homem.

— Uau — responde seco.

— O quê? — Interrompo outra vez as assinaturas, desistindo de vez de concluir a tarefa enquanto falo com Breno. Solto o corpo sobre a cadeira e ela gira levemente. Apoio os cotovelos sobre seus braços e cruzo os dedos embaixo do queixo.

— Você considerou que o cara pode ter outros planos? Você mesmo disse, ele é um auxiliar. Passou pela sua cabeça que ele pode ainda estar em formação? Que pode ter uma família que não planeje abandonar por seis meses? Que ele pode ter um relacionamento que não queira manter a distância?

— Disse o cara que estava pronto para convidá-lo pra sair — alfineto.

— Eu queria uma noite da vida dele Hugo, não seis meses. — Rapidamente faz seu ponto e eu passo a língua sobre os lábios, pensando.

— Eu tenho uma reunião com a coordenadora da Beatrice hoje. A pauta é maneiras de reduzir os impactos da mudança na vida escolar da Be. Vou sugerir Homeschooling, não tem o que dar errado.

— No mundo em que as pessoas vivem pra fazer suas vontades?

Não, não tem.

— Eu te ligo em breve pra dizer que eu estava certo e você errado.

— Eu espero que sim, boa sorte com isso.

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Preciso dos desfechos de Chega de CEO e Contratados. Faz nem que seja um epílogo para eles. Preciso do final das duas histórias.

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