O Vencedor
Capítulo 5
Sentei de frente pro mar no banco de pedra no calçadão.
“Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.”
Me disse o outro ocupante do banco, o único amigo que eu tinha pra visitar.
Ele estava certo. Tirei da sacola a garrafa de catuaba que comprei num bar no caminho, servi dois copos e ofereci um ao meu camarada. Ele não tocou no copo. Ao invés disso, continuou tranquilo, muito quieto e pensativo, com os braços descansando sobre as pernas cruzadas.
Maurício não me amava. Eu podia inventar as mentiras que eu quisesse, podia dizer que o divórcio dos pais o tivesse mudado, que a criação na França, um outro povo, um cultura diferente, o tivesse tornado mais frio, até a morte do pai ou que se sentisse mal por ser um homem com sentimentos por outro homem... Eu podia inventar mil histórias, e inventava sempre, mas nenhuma delas servia pra esconder a verdade crua: Maurício não sentia nada por mim. Eu tinha sido, e só uma vez, a presa frágil e fácil que ele usara pra descobrir sua força e treinar suas habilidades pra usar com presas mais apetitosas.
Ele não me amava. E se as mentiras que eu me contava não serviam de nada, serviam ainda menos minhas tentativas de me fazer amado. Eu falo francês fluente. Estudei na expectativa de ir visita-lo lá e quando ficou claro que isso não aconteceria, continuei estudando porque talvez, assim, o impressionasse um pouco, conhecendo as bandas e filmes e tudo mais que ele pudesse estar conhecendo lá. Mal como porque sei que Maurício, do jeito que é, nem olharia pra mim se eu fosse gordo. Já nem olha, que diferença faz? Não tenho amigos porque canalizei toda minha energia, toda minha razão de ser em me tornar alguém de quem Maurício pudesse gostar e agora ele está de volta e tudo o que eu ganho é a maldita da indiferença.
“Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.” Meu companheiro disse com sabedoria. Eu já terminava o quarto copo e o dele continuava lá.
“Mas ele não me dá amor nenhum. Nem de graça e nem comigo tentando de tudo, entende?”
“Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.”
“É mesmo? Me diz você que é todo maduro aí e sábio, mas vive sozinho nesse banco.”
“Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.” Ele disse e riu.
“Você está enganado. O amor é a morte em pessoa.” Respondi carrancudo matando o último gole. Ele fez um aceno mostrando pouco caso ao que eu dissera.
“Meu amigo, vamos cantar,
vamos chorar de mansinho
e ouvir muita vitrola,
depois embriagados vamos
beber mais outros sequestros
depois vomitar e cair
e dormir.”
“Tem razão.” Eu me levantei. “E se não se importa vou pegar também este copo. Você não vai beber mesmo.”
Catei o meu lixo e também o copo que a boca de bronze de Carlos Drummond de Andrade jamais beberia.
Tomei um táxi pra voltar e paramos em um sinal bem a tempo de ver a apresentadora Eliana saindo de um restaurante com outras três pessoas. Achei aquilo curioso. Que sorte a minha, passar e ver alguém famoso vivendo a vida normalmente. Quase como ver uma estrela cadente. Mas meu sorriso se desfez, não demorou muito. Ela era a Eliana. A Eliana que tinha aquele sideshow, o Melocotom.
Maurício ganhara um boneco dele um vez num natal. Tinha sido alguém qualquer das relações dos pais dele quem tinha mandando o presente. Alguém que não fazia ideia de que aquele brinquedo em nada serviria a quem o estavam enviando. Ele já era adultinho demais para que brincasse com bonecos, principalmente bonecos idiotas como aquele. Fala sério! Melocotom não é presente que se dê a um menino de dez anos. Talvez, se o tivessem oferecido para o menino de oito que ali também morava, teriam recebido um cartão de agradecimento bastante mais agradecido.
No dia vinte e cinco de noite, ele e eu estávamos jogados no tapete fofo. Eu até hoje não sei que nome tem aquele material, pra mim é tapete fofo que tinha no quarto de Maurício. Ele estava me ensinando a jogar no GameBoy Advanced que ele mesmo tinha me dado de presente. Um pouco cansado de vê-lo jogando o tempo todo, virei meus olhos em uma direção qualquer cujo caminho revelou um roxo-rosa forte que me atraiu de volta. Meus olhos brilharam! Eu amava Eliana, o Melocotom e a tesoura sem ponta, mas o boneco não era meu pra que pusesse as mãos e apertasse seus botões de fala.
“Quem mandou você pegar o que é meu?” A voz dele soou imperativa como sempre, o pequeno rei a quem eu servia.
“Eu achei que...”
“Você achou errado. Deixa ele aí.”
Eu já tinha colocado o boneco de volta. Nem tinha necessidade dele me mandar deixar lá, mas ele como ele ficou sem ter o que me mandar fazer, preferiu deixar claro que não era pra pegar o Melocotom que ele nem queria.
Maurício ficou bem uns três dias sem brincar comigo, mal falava. E isso durou até o tédio consumí-lo por completo:
“Quer brincar com o Melocotom?”
“Quero.” Eu respondi vestido da minha personalidade fraca e falta de vergonha na cara.
“Mas tem que ser do jeito que eu disser.” Como em tudo.
Subimos pro quarto dele e, uma vez encerrados lá, ele começou:
“Vamos brincar de família. O Melocotom é o filho. Eu sou o pai e você vai ser a mãe.”
Eu não questionei. E dessa vez, não apenas pelo hábito de não contrariar Maurício. Só o que fiz foi esforço pra não deixar muito óbvio o quanto eu estava contente de brincar daquele jeito. Que estava contente de ganhar justamente aquele papel.
A brincadeira de “família” perdurou por alguns meses e logo detalhes precisaram ser arrematados a fim de verossimilhança. Sabe, tínhamos que fazer a coisa parecer real. Quando íamos ao mercado imaginávamos que comprávamos coisas para a casa da nossa família; se víamos TV, dizíamos que estávamos em nossa casa – volta e meia, Maurício mandava Melocotom fazer silêncio que era pra ele ouvir o jornal; quando almoçávamos, eu tinha que dar “aviõezinhos” na boca do nosso filho... E até deitávamos juntos para fazer de conta que dormíamos até quase a hora de dormir de verdade. Isso tudo em segredo, porque ainda que não entendêssemos muito sobre as coisas, sabíamos que não era certo que dois meninos brincassem daquele jeito.
“Meu pai beija minha mãe.” Maurício disse numa daz vezes em que deitamos pra dormir em sua cama. Minha cabeça descansava sobre o peito dele que tinha o braço em volta do meu pescoço.
“Mas a gente não pode.” Lembro bem que não falei por escrúpulo. Falei mesmo foi pra não deixar transparecer que aquilo era justamente o que eu queria.
“Não seja bobo. A gente beija com a mão na frente.”
Beijamos assim por um tempo, enganando-nos a nós mesmos sem nem darmos mais trela para o Melocotom que já nem era importante; como se tivéssemos dado nosso filho pra adoção ou coisa assim. Para beijar, beijávamos só com a mão de Maurício entre nossos lábios, mas nada havia entre nossos corpos quando deitávamos agarrados, eu normalmente de costas para ele, sentindo-o roçar-se em mim e respirar na minha nuca, sentindo seu calor e a sensação de derretimento que parecia infligir ao meu corpo.
Passaram-se alguns anos em que representamos esse teatrinho secreto de família, ainda que sem filho quase, até o dia em Maurício tirou a mão, me beijando direto na boca. Eu, que tinha os olhos fechados, fui tomado pelo susto e os abri arregalados para o sorriso safado estampado no rosto dele.
E fomos tirados da nossa fantasia com os gritos da briga que pôs fim ao casamento de Sônia e Armando. Maurício foi embora com o pai e o inferno todo começou.
Cheguei sem nem ter me dado conta da viagem. Digitei a senha no portão e entrei sem fazer barulho, mas a porta dos fundos estava trancada. Não acredito que minha mãe tinha dado aquele mole. Ela sabia que eu ia chegar tarde. Que mancada. Não tinha jeito senão entrar pela porta da frente com a chave reserva em baixo de uma das pedras do jardim. Nossos quartos não tinham entrada privativa. Morávamos na casa dos outros e isso era sempre muito bem deixado claro.
Abri a porta com todo o cuidado, tinha que passar pelas salas de estar e de jantar para então chegar ao hall que dava no corredor para a cozinha sem fazer barulho e no escuro. Eu ia já passando impune pela sala de jantar, cuidando dos meus passos quando o silencio foi cortado por um barulho de líquido sendo servido.
Eu me senti gelar inteiro porque tinha certeza de quem estava ali. Olhei na direção do som com olhos mais acostumados ao escuro e pude discernir o formato de Maurício levando uma taça à boca. Fiquei congelado sem saber o que fazer. Não sabia se devia continuar e desaparecer ou se devia pelo menos cumprimenta-lo.
“Sua mãe tá preocupada com você.” Maurício falou com sua voz grave e indiferente. “Vai lá avisar pra ela que chegou.” Ordenou.
“Eu já ia fazer isso.” Me permiti essa rebeldia.
“E volta aqui que você ainda não respondeu minha pergunta.” Outra vez o tom altivo de ordem.
Continua...