Fiquei muito chateado ao ver se afastando de mim aquele moleque que no dia anterior me causara tanta surpresa e orgulho; que há anos demonstrava ser meu amigo, sempre fazendo brincadeiras que ao mesmo tempo em que me irritavam alegravam-me. Eu já tinha até me acostumado às suas tentativas de furto dos docinhos que Marcos me dava. Era doloroso aquilo. E o pior é que ele não falou nada. Não veio pedir explicações, não veio me xingar, sequer me olhou. Puniu-me com seu silêncio. E isso me doía.
Doía mais ainda por saber que o que motivara aquela ração de Rodrigo fora sua descoberta de minha homossexualidade. Meu melhor amigo era homofóbico.
Fiquei perdido e sem saber o que fazer. Naquele dia fui muito mal nas atividades avaliatórias aplicada pela Diaba. Também pouco me importou aquela avaliação, pois em minha cabeça eu só pensava no Rodrigo e no que eu poderia fazer para não perder sua amizade.
Quando chegou o intervalo ele também não se aproximou do nosso grupo. Não sei se deduzira a respeito da homossexualidade do Rafa e do RB também, ou, se apenas não chegou perto para não conversar comigo e com o Marcos.
Eu estava com muita vontade de chorar. E eu já havia chorado tanto no dia anterior.
No restante das aulas, pós intervalo, Rodrigo continuou a agir da mesma forma.
As aulas daquele dia foram muito longas e angustiantes para mim.
Soou o sinal de fim de período, rapidamente todos os alunos arrumaram suas mochilas e saíram com tanta pressa que pareciam estarem fugindo de um terremoto. Apesar de estar louco para sumir daquele lugar, não arrumei minhas coisas com a mesma pressa. Minha tristeza não me dava ânimo algum. Quando sai da sala de aula já não havia mais nenhum aluno, e talvez nem mesmo nas outras sala de aulas ainda houvesse.
Ao atravessar a porta da sala e colocar meu pé no corredor fui agarrado pelo braço.
- Eu fiquei magoado. Por você não confiar em mim, de- Mano, precisamos conversar.
Era Rodrigo, continuava sério.
Levou-me até o banheiro desativado, o mesmo local em que eu e Marcos flagramos o Globeleza sendo molestado pelo Breno. Ele usou uma chave qualquer para abrir a porta e nos trancamos lá.
Eu não fazia idéia de como seria esta conversa. Aguardei que ele a iniciasse.
- Lucas, você não tem nada para me falar? – Perguntou-me com uma voz firme e nada simpática
- O que você gostaria de saber?
- Você sabe muito bem.
- Rodrigo, o que era segredo você já descobriu. Quer que eu lhe conte mais o que? Você já sabe de tudo que não sabia. Que sou gay. Que Marcos é meu namorado.
Eu disse estas palavras e já comecei a derramar lágrimas e comecei a chorar. Encostei minhas costas em uma parede qualquer daquele banheiro e fui a escorregando até ficar meio que agachado meio que sentado no chão. Coloquei meus braços deitados sobre os dois joelhos e apoiei nele minha testa e comecei a chorar.
Eu não o via. Eu chorava baixinho.
Ele passou uma de sua mão na minha cabeça e agachou-se ao meu lado.
- Pare de chorar. Por favor, pare. Não te queria ver chorando. Desculpe-me.
- Eu não tenho culpa de ser gay. E eu não queria perder sua amizade.
Eu falava com ele chorando, mas sem conseguir encará-lo.
- Lucas, não me importa que você seja gay. Jamais deixaria de ter amizade com você por causa disso. Não sou homofóbico. Se fosse, não teria ido me exibir naquele festival de ontem.
- Mas, você me ignorou hoje o tempo todo...
Porque depois de tantos anos de amizade. Eu não escondo nada de você. Eu senti que você não confia em mim, e fiquei triste.
Parei de chorar. Senti-me aliviado de que o que motivara Rodrigo a se afastar de mim não era o preconceito aos homossexuais que, erradamente, eu julguei que tivesse.
- Rodrigo, só posso te pedir desculpas e mais nada. Sua amizade é muito importante para mim. Realmente não tive confiança para contar para você. Mas, a palavra certa não é confiança, talvez fosse coragem. Eu não tive coragem de te contar.
- Coragem?
- Sim, tinha medo de perder sua amizade. Então, para não correr este risco, preferi o silêncio.
Ele voltou a ficar um pouco bravo.
- Mas, cara, como você pode pensar isto de mim? Você achou que eu jogaria no lixo tantos anos de amizade? Pelo simples fato de você ser gay? Sinceramente, Lucas, eu me senti traído.
- Mais uma vez peço que me perdoe. Somente agora vejo como fui tolo em pensar que você não me aceitaria. Quero que você entenda que tudo isso, eu ser gay, eu namorar o Marcos, ocorreu há muito pouco tempo, e é tudo muito novo para mim... E o preconceito contra os gays é muito grande. Ninguém estampa no rosto se irá me aceitar gay ou não vai. Até uma tia que sempre gostei muito rejeitou o Rafa...
- O Rafa também?! – Ele perguntou meio que surpreso.
- Sim. Mas por favor, aguarde que ele te fale. Não diga que eu contei...
- Agora algumas coisas me fazem sentido. – Ele disse isso calmamente e meio pensativo. E ainda perguntou: - O RB também, né?
- Sim.
Ele começou a rir sem parar e sentou-se ao meu lado. Enrolou o seu braço esquerdo em meu pescoço me abraçando de forma carinhosa.
- Quer dizer que dos “Amantes sem Fronteiras” sou o único que não é gay? – Perguntou-me rindo.
- Você e os “internets”. Eu acho que eles não são. Pelo menos não sei nada a respeito deles.
Ele parou de rir. Continuou a me abraçar e pediu que eu olhasse para ele.
- Lucas. Eu fiquei chateado pelo fato de você não ter me contado. Somente isso e mais nada. Não quero perder sua amizade por nada deste mundo. Hoje eu somente me afastei de você porque estava muito magoado, e só seria possível termos esta conversa após a aula.
- Você vai me desculpar?
- Lógico que vou. Na realidade, amigo não precisa pedir desculpas. Estamos apenas nos esclarecendo um para o outro.
- Obrigado, Rodrigo.
- Pára moleque. Não tem de falar obrigado não. Sua amizade também é muito importante para mim e eu não quero perdê-la
Rodrigo me abraçou muito. Relembramos alguns acontecimentos que passamos juntos durante toda nossa longa amizade. Juramos que a partir daquele dia nenhum de nós deveria ter medo de confiar no outro.
- Lucas, só quero que saiba mais uma coisa...
- Fale Rodrigo.
- Você é meu irmão e conte comigo para o que der e vier.
Falou isso e me deu um beijo no rosto. Fiquei meio surpreso.
- Você não vai retribuir não? – Perguntou-me meio que exigindo que o beijasse.
Eu sempre beijei meus primos. Não vejo o beijo entre homens como sinônimo de homossexualidade, mas como nunca tínhamos nos beijado até então, e como agora ele sabia que eu era gay, estranhei ele me beijar e, mais ainda, querer que eu o beijasse.
- Lucas, que preconceito bobo é esse? –Perguntou-me rindo – Beija logo minha bochecha. – E virou o rosto para que eu o beijasse.
Saímos do banheiro e demos de cara com o Globeleza.
- Hummmmmmmmmmmmm!!! – Ele faz um ar de surpresa colocando uma mão no queixo e outra na cintura – Que vocês dois estavam aprontando aí? Posso saber?
- Nada que te interesse. – Falou Rodrigo bem bravo – E agora “xispa” daqui.
Marcos já havia ido embora. Devia ter se cansado de me esperar e de e me procurar.
Já no portão do LG, Rodrigo ainda me fez uma pergunta.
- Lucas, que quer dizer Sloopy?
Eu cai na risada. Expliquei para ele que não se tratava de alguma gíria gay, como as várias que Fabinho havia nos ensinado. Contei que era o apelido que o Rafa dera ao RB.
- Eu escutei um dia o Rafa chamá-lo assim. Por isso que quando você me contou que o Rafa também “curtia o lance” eu achei que o RB também curtisse.
- Rodrigo, por que você começou a rir sem parar quando soube que de nossa banda você é o único que não é gay?
- Simples. Felicidade. Faremos sucesso e todas as fãs serão minhas. Não terei de disputá-las com nenhum de vocês.
Gargalhamos e fomos para nossas casas.
A primeira coisa que fiz quando cheguei foi ligar para Marcos e contar tudo que aconteceu.
Eu estava feliz. Já havia contado para meus pais e para meu melhor amigo. Todos me aceitaram e assim, pouco me importava a opinião do resto da humanidade.
Dias antes do festival eu terminara de ler “O terceiro travesseiro”. O livro teve um final muito triste. Um amor tão bonito não merecia ter um fim como aquele. Durante muito tempo aquele livro, sua história e, principalmente, seu final dramático me vinham à cabeça. Recordava-me também o que o “meu” Marcos me explicara sobre a morte. Que se esta não existisse, nossas vidas seriam um castigo de Deus e não uma dádiva... Que como nunca saberíamos quando ela – a morte de alguém ou a nossa - aconteceria não deveríamos cansar de declararmos o nosso amor para aqueles que gostávamos.
O final do “terceiro travesseiro” fez com que eu a cada dia com mais intensidade declarasse meu amor ao Marcos, Dei-me conta que ele fazia isso todos os dias me mandando bilhetinhos e bombons e eu nunca havia feito nada semelhante.
Eu tinha que fazer um gesto semelhante que demonstrasse não só o meu amor, mas toda a minha consideração ao Marcos. O quanto ele era bom para mim, o quanto aqueles bilhetinhos que me lembravam de seu amor me deixavam feliz.
Um dia, em cumplicidade com dona Zezé, mãe de Marcos, quando ele não estava em casa, pois ela, para ajudar-me em meu plano pedira que ele fosse pagar umas contas no centro da cidade, fui para seu quarto e pus em prática um plano que elaborara.
Comprei diversos bombos, e outros chocolates, Escrevi diversos bilhetinhos com declarações de amor e versinhos. Em alguns escrevi apenas pequenas declarações como “eu te amo” ou “sempre te amarei”. Em outros, versinhos bem bregas e infantis que retirei do Orkut – “Queria ser poeta, Poeta não poso ser, Poeta pensa em tudo, Mas eu só penso em você” ou ainda “Passei pela água e não me molhei, passei pelo fogo em ao me queimei, passei por você e me apaixonei”. Coloquei cada bilhetinho em um chocolate. Eram dezenas. E os espalhei por cada canto do quarto de Marcos. Muitos os deixei bem a mostra.
Porém, muitos outros, muitos mesmo, eu os escondi para que fossem achando-os ao longo dos dias. Coloquei-os dentro do travesseiro em que dormia, dentro de seus calçados, alguns a mostra em cima da cama, dentro de suas roupas nas gavetas e no guarda-roupa - inclusive dentro das cuecas e meias – dentro dos livros em sua estante, dentro de seu violão... Enfim, seu quatro ficou parecendo supermercado nas vésperas do domingo de Páscoa. Apesar de todas as declarações que escrevi e dos diversos versinhos bregas, fiz questão de escrever um grande cartaz que coloquei na parede da em que encostava-se a cabeceira de sua cama. Nele uns versos muito bonitos que me foram passados por meu pai.
“O Amor é Tudo”
Eu pensei, saber de amor pensei
mas só agora eu sei
quanto me enganei
Você chegou e veio me ensinar
que o amor é o Sol
é o calor, é a vida a cantar
Hoje eu sei o que é amar
E o amor é tudo quanto eu sonhei
Vem, amor, que estarei a esperar
e ao dizer seu nome a vida
Renascerá
Quando o Sol em sombras se apagar
acende em teu olhar uma estrela azul
Então o amor que eu tenho pra te dar
saberá encontrar o caminho
que iremos seguro maor e
Hoje eu sei o que é amar...
Marcos ficou muito feliz com minha surpresa. Durante dias ele foi recolhendo bombons pelo quarto e sempre com uma mensagem diferente.
Naquele dia chamou-me para dormir em sua casa pela primeira vez. Seus pais, assim como os meus, permitiam que dormíssemos juntos, mas somente nos finais de semana.
Como ele não tinha cama de casal juntávamos ao chão dois colchões de solteiro.
Enquanto ele me abraçava de conchinha nos conversávamos baixinho
- Não achava que eu seria capaz desta surpresa? – Perguntei.
- Realmente foi muita surpresa. Dei-te tantos bilhetinhos e bombons e confesso que me decepcionava por nunca ter sido retribuído,
- Mas, em algum momento você teve dúvida de que eu te amava.
- Lógico que não. Você nunca deixou de ser carinhoso comigo, me abraçar, me beijar, transar comigo...
- Então, gato...
- Mas Lucas, essas surpresas, estes bilhetinhos, presentinhos, que “aparecem” quando menos esperamos, na realidade, daqui a alguns anos serão como fotografias em nossas lembranças do amor que sentimos um pelo outro. Não nos lembraremos de todos os momentos juntos, de todas as vezes que nos beijamos, que transamos, que fomos ao cinema, que rimos, que jogamos futebol juntos... Mas, com certeza nos lembraremos destas surpresas que fazíamos um par o outro.
- Eu não me esquecerei de nada que fiz ao seu lado nunca.
- Ótimo, mas, por segurança, uma surpresinha marcante de vez em quando vai bem.
Beijamos-nos enquanto ele já palmeava meu corpo todo retirando minha cueca com as mãos e depois quando já não as alcançava empurrava-a com seus pés para desenroscá-la de minhas pernas.
- Ai!! – Gritou ele enquanto passava a mão pelas costas.
- Que foi Marcos?
- Tem um negócio aqui debaixo do lençol me espetando.
Ele retirou o lençol e embaixo dele mais um chocolatinho com um bilhetinho. Ele abriu o bilhetinho e declamou os versinhos que nele estavam escrito: “Um beijo pode ser curto, longo, suave, molhado, carinhoso, apaixonado... Mas, para ser bom basta ser teu.”
No LG nosso sucesso no festival GLS se espalhou. Os gays todos, que na sua imensa maioria estiveram presentes ao evento, nos cumprimentavam e sorriam para nós, mesmo aquele com quem nunca tivemos amizade e nunca sequer havíamos conversado.
Decidimos doar o dinheiro do prêmio para um projeto de geografia idealizado pelo Luke e que até então não o colocara em pratica por falta de verba.
O projeto consistia em cada grupo de alunos ler um livro, que não deveria ser cientifico ou didático, mas sim um romance. Após ler o livro, o grupo deveria apresentá-lo para a classe e debater um tema paralelo apresentado no livro. Meu grupo viria a escolher “O terceiro travesseiro” e como tema paralelo à história de Renato e Marcos, discutiríamos o preconceito e a discriminação aos homossexuais, bem como diversas questões relacionadas à sexualidade. Vários livros seriam trabalhados: “O velho e o mar”, onde se discutiria as questões relacionadas ao idoso; “ A dama das camélias”, tendo como tema paralelo a prostituição; “Ao miseráveis”, onde se discutiria a exclusão social”. No total eram mais de quarenta livros, na maioria clássicos da literatura, que seriam usados como base de estudo para temas relacionados a geografia. Era uma idéia fabulosa.
Procuramos o Diretor, professor Jorge e Dona Circe tesoureira da APM.
- E o dinheiro será aplicado na compra dos livros? – Nos perguntou o professor Jorge.
- Não – respondi a ele – depois que todos os grupos expuserem, em sala de aula, as histórias de seus livros e as questões paralelas de cada um deles, relacionadas à geografia, faremos uma grande exposição para os demais alunos da escola e para nossos pais, em que usando das artes - pintura, canto, teatro, dança, etc – em diversos tipos de instalações, mostrando o conteúdo de nossos trabalhos.
- Maravilhoso! – Exclamou o diretor.
- O dinheiro será usado para a montagem destas instalações para a exposição – Explicou Marcos.
Doamos o dinheiro para a APM, seis mil reais, e ficou combinado com o diretor e com a Dona Circe, que o professor Luke passaria a eles a lista do material necessário e que a APM faria as compras destes e os repassaria aos alunos.
- Diretor, mas, não é necessário comprar um livro sequer, pois o professor Luke só trabalhará com livros que estão no acervo da biblioteca da escola ou da biblioteca do bairro, ou os que os alunos já possuem. – Esclareci para ele.
Quando estávamos de saída de sua sala, o Diretor Jorge fez alguns comentários.
- Gostei da apresentação de vocês no festival.
- O senhor estava lá? – Perguntou o Rafa.
- Eu e meu marido, Márcio – Nos respondeu ele, que como já sabíamos, era gay assumido.
- E votou em nossa banda? – Perguntou-lhe Marcos brincando.
- Lógico que votei. Quero parabenizar a quem fez a versão de “Meu grito”. Caso não saibam eu sou professor de inglês. Estava excelente.
- Obrigado, foi eu quem a fiz – Disse RB.
- Mas ela não seria nada se não fosse minha interpretação marcante – Completou Rodrigo.
- A nossa apresentação – Gritaram juntas as panteras.
- Calma, não precisam brigar. - Disse o Diretor Jorge aclamando-as.
O Diretor era muito simpático, nos atendeu com cordialidade. Ele usava barba. Não era velho, aparentava ter a mesma idade que Luke. Era um pouco afeminado, mas se mantinha discreto.
Saímos da sala da sala da direção muito contentes em podermos ajudar a viabilizar um projeto tão criativo como aquele de Luke.
- O Luke merece – Disse Marcos – e é uma forma de fazermos alguma coisa pela escola e agitá-la, já que até agora a diretoria do grêmio não fez nada que o Amir prometeu.
- Mas eu não confio nessa bicha – disse Fabinho se referindo ao Diretor Jorge – ele tem uma cara de “Ana Cláudia”.
O Luke ficou muito feliz pelo nosso gesto. Imediatamente colocou o projeto em curso. Este seu trabalho viria a fazer muito sucesso entre os alunos, mas fez com que a inveja da Diaba em relação a Luke aumentasse ainda mais
.
- A professora de literatura sou eu. Não sei a razão do professor de geografia se meter na minha disciplina e promover um projeto literário. – Esbravejou ela em diversas de suas aulas.
Nem adiantava explicar para a Diaba que Luke não estava a desmerecendo como professora. Que ao contrário, ele estava incentivando os alunos a lerem mais e assim a ajudaria em seu trabalho como professora de literatura. E que dos textos literários seriam extraídos temas de estudo de geografia.
Nada disso conformava a Diaba, que passou a demonstrar, de forma indisfarçável, seu ódio a Luke.
As visitas de nosso quarteto, eu, Marcos, Rafa e RB, à casa de Luke se tornaram cada vez mais freqüentes. Era muito prazeroso ir até lá.
Numa destas visitas ele nos contou do “falecido”.
- Onde você o conheceu Luke? – Perguntou-lhe Rafa.
- Rafael, eu conheci o Ayrton no local menos provável para se arranjar um namorado.
- Onde? – Perguntei curioso.
- Num “cinemão”.
- Que é “cinemão”? – Minha curiosidade aumentava.
- Os gays chamam de “cinemão” os cinema onde se projetam filmes pornográficos e onde diversos gays lá se encontram com o intuito de praticarem um sexo rápido. É um local para fazer “pegação”.
- Só projetam filmes pornô-gays? – Indagou RB.
- Ao contrário, passam filmes pornôs heteros também, assim aqueles que são gays enrustidos entram com a falsa desculpa de quererem assistir a um filme heterossexual.
- Mas e ai Luke... Como você conheceu o Ayrton? – Marcos lhe perguntou.
- No banheiro do cinemão eu o encontrei e ficamos fazendo pegação em um dos boxes. Não me senti bem naquele local e perguntei a ele se gostaria de ir a um local melhor que aquele cinema. Sugeri um motel e ele aceitou.
- É muito ruim cinemão Luke? – Agora era o Rafa quem perguntava.
- Sim. Demais. É sujo, pois tem uma alta freqüência de pessoas passando por lá e fazendo sexo. Camisinhas sujas e outras coisas mais jogadas por toda a parte. Não se tem privacidade, pois outros freqüentadores ficam lhe observando e querendo participar de sua pegação. E finalmente, é muito perigoso. Você pode ser roubado naquela escuridão e até ferido por alguém. Sem dizer que algumas pessoas usam drogas no cinemão.
- Nossa! – me assustei – E você ia lá, Luke?
Não era tudo que Luke comentava perto de Dona Edith. Tinha algumas coisas que ele não queria que ela soubesse por respeito em não querer constrange-la, ou, para evitar que ela se preocupasse.
Neste dia, ela estava em seu quarto e não ouvia nossa conversa.
- Lucas, serei bem sincero. Fui algumas vezes em que estava carente de sexo. Trabalhava muito e nem podia sair. Acabei dando umas passadas no cinemão na hora do almoço ou entre um trabalho e outro. Mas não aconselho que ninguém freqüente este tipo de lugar.
- Mas conte do falecido Luke. – Pediu-lhe RB.
- Bem... Fomos para o motel e foi tudo muito bom. O Ayrton tinha um corpo lindo que me fez pensar que ele freqüentasse academia. Era mais alto que eu, 1,90m, cabelos claros e olhos verdes. Muito educado e carinhoso. Tinha dezenove anos e me contou que namorava uma garota de seu bairro.
- Ele não era assumido? – Perguntei.
- Não era e tinha passado por poucas experiências com homens até então.
- Como vocês começaram a namorar, então? – Questionou-o Marcos.
Luke parou uns instantes, respirou e continuou a explicar sobre aquele assunto que parecia lhe trazer tristeza.
- Após sairmos do motel, trocamos telefones. Eu, sinceramente, achei que ele jamais fosse me ligar novamente. Eis que dois dias depois, minha secretaria me diz que um tal de Ayrton estava ao telefone e gostaria de falar comigo. Nem me lembrava de quem se tratava. Atendi a ligação, e acabei me lembrando dele e o convidei para que almoçássemos juntos. Ele aceitou e durante o almoço ele ficava me olhando como se tivesse enfeitiçado. Era até constrangedor. Disse que gostou muito de mim. Naquele dia a tarde fomos para o motel novamente. E no dia seguinte também, e no outro e no outro.
- Nossa Luke! Gastou uma grana em motéis ... – Disse Rafa rindo.
- Rafael, naquela época minha mãe não sabia de mim, eu não podia levá-lo para minha casa. Eu ganhava relativamente bem e fomos a cada um dos motéis da rota dos motéis.
Em nossa cidade existe uma pequena estrada de terra, perto da Via Anchieta, que liga São Paulo a Santos, onde se localizam dezenas de motéis, de todos os tipos, para todos os gostos e de todos os preços.
Luke continuou.
- Eu nunca havia penado em namorar um outro cara. Sabia que outros gays namoravam, mas não me via com namorado. E eu adorava aquela vida de independente em que eu podia cada dia catar um carinha diferente. Ele terminou com sua namorada e passamos a ficar juntos. Saímos juntos por três meses. Ele era super carinhoso e bonzinho comigo. Mas, eu já tinha me enjoado e não o agüentava mais no meu pé.
- Você não gostava dele Luke?
- RB, eu gostava, mas não pra namorá-lo. Eu queria liberdade. Eu não queria estar preso a ninguém.
- Que você fez?
- Marcos, veja como fui insensível, hoje me condeno por isso. Chegou o dia de seu aniversário e levei-o para jantar, para dançar e depois fomos para o motel. Já na hora de vir embora, passei a fazer o discurso que ensaiara antes em que eu o dispensaria e colocaria um ponto final naqueles três meses de encontros...
- Poxa, Luke, bem no dia do aniversário dele! – Exclamou Rafa.
- Eu já disse que fui insensível e que me arrependo disto...
Continuo a nos contar.
- Falei aquela conversa fiada de que minha vida era agitada e que eu não poderia da atenção para ele, que ele merecia alguém melhor que eu, da idade dele – era 14 anos mais novo que eu - que ele era bonito e inteligente e arrumaria alguém. Toda aquela papagaiada que as pessoas falam quando querem se livrar de alguém.
- Qual foi a reação dele, Luke?
- Nenhuma, Lucas. Apenas chorou muito. Chorava de uma forma tão sentida igual a que eu nunca tinha visto alguém chorar por amor a outra pessoa.
- Você não se comoveu com o choro dele?
- Rafael, me comovi como até então nunca tinha me comovido antes. Observei aquele rapaz, que eu achava lindo, gostoso, bom caráter, trabalhador... Que poderia escolher muita gente para ficar, mas que queria estar ao meu lado. E pensei o quanto é difícil achar alguém que goste de você. Se apaixonar por alguém é fácil, difícil é conseguir que alguém se apaixone por você. Resolvi dar uma chance para meu coração. Já que aquele rapaz gostava tanto de mim, embora eu não correspondesse daquele forma, apenas tinha um grande carinho por ele, resolvi dar uma oportunidade para meu coração e passamos a namorar.
- Quer dizer que você começou a namorar o Ayrton sem ao menos gostar dele? – Perguntou surpreso o RB.
- Somente um carinho e consideração e mais nada.
- Você ficou com pena dele, Luke? Foi isso?
- Não Marcos. Apenas resolvi construir um amor com aquela pessoa que gostava tanto de mim. O mais difícil eu já havia conseguido, mesmo sem ter tido esta intenção, que era ele se apaixonar por mim. Agora só precisava era me apaixonar por ele.
- Meu Deus! Nunca ouvi nada assim. E demorou para você se apaixonar por ele, Luke?
- Lucas, pelo menos mais uns seis meses.
- Você ficou então 9 meses com o Ayrton sem gostar dele?
- Rafael, não é assim também, sem gostar... Tudo foi acontecendo num crescente. Ele era muito bom, carinhoso e atencioso comigo. Não deixava de me ligar e se preocupar. Passamos a conviver juntos. Ele passou a dormir aqui em casa quando minha mãe voltou a morar no interior com minha irmã. Ficava mais aqui que na casa dele. Eu já havia me acostumado com a presença dele e passei a sentir sua falta quando ele não estava ao meu lado. Quando percebi, estava perdidamente apaixonado.
- Quer dizer que seu plano de construir um amor deu certo?
- Deu sim Marcos, pois no meu entender, amar é se acostumar com alguém ao seu lado e sentir sua falta quando este não está presente. E mais que isto, desejar aquela presença ao seu lado.
- Luke, que bonito este seu início de namoro. Achei estranho, mas achei bonito. E durou muito.
- Rafael, durou quase seis anos. Eu acabei contando para minha mãe, como já disse outro dia para vocês, e ele veio morar aqui comigo. Ele dizia que não morava na minha casa, mas dormia apenas um dia da semana na casa da mãe dele.
- A mãe dele sabia de vocês?
- Não Lucas. Ele dizia para ela que éramos amigos e que era mais fácil ele ficar aqui para ir a faculdade e arrumar emprego. E ela fingia que acreditava, porque...
- “Mãe sempre sabe” – Completamos, nós quatro juntos, a frase de Luke que já havíamos cansado de ouvir.
- Ele ficou muito tempo desempregado e acabou abandonando a faculdade de engenharia no quarto ano, já que não tinha como pagar as mensalidades. Limpava o apartamento, fazia comida e cuidava de minhas coisas melhor que qualquer outra empregada. Eu via isso e fica bravo com ele. Dizia “amor, eu não quero você como minha empregada doméstica e sim como meu namorado, deixe isso prá lá”. Mas, ele insistia em fazer todos os serviços e ainda ficava bravo, pois dizia que eu gastava muito e ele fazendo estava ajudando a economizar o meu próprio dinheiro. Ele não desperdiçava nada, pedia para ficarmos em casa, se negava a receber presentes, tudo para que eu não gastasse dinheiro algum. Eu via que ele se incomodava pelo fato de morar aqui em casa e não contribuir com as despesas. Mas, estas despesas da casa eram o que menos me importavam. Eu ganhava muito bem e os gasto que tinha com o fato dele morar comigo eram mínimos – um prato a mais de comida e um pouco mais de conta de luz. Pelo amor sincero que ele me dava, por tudo que ele me fazia, e pela alegria que eu sentia em tê-lo ao meu lado, não havia dinheiro no mundo que pagasse. Éramos muito felizes. Nunca houve uma briga sequer.
- E como terminou, Luke?
- RB, certo dia ele conseguiu arrumar um emprego. Mas era em Campinas, lá na sua cidade Marcos. E ele me consultou se deveria ir ou não. Se deveria aceitar o emprego fora de São Bernardo ou não. Eu sabia que se eu dissesse não, ele não iria. Mas, achei que seria injusto eu não permitir que ele tivesse uma vida financeira independente e se valorizasse profissionalmente e como ser humano. E que tivesse oportunidade de voltar a estudar, já que naquele momento eu não tinha condições de pagar sua faculdade.
- E você deixou, Luke?
- Deixei Rafa. E cometi o maior erro de minha vida e que aconselho para todos não o cometer. Não há amor que sobreviva à distância. Ele foi trabalhar lá. No começo falávamos todos os dias ao telefone e ele vinha quase todas as semanas para cá. Depois passou a vir de quinze em quinze dias. Ficávamos apenas parte do sábado juntos e ele passava o domingo com sua família, e antes de retornar à Campinas passava aqui para se despedir. As vindas acabaram se tornando mensais e eu passei a achá-lo mais frio comigo.
- Como assim Luke?
- Lucas, percebi pelo beijo. Foi a primeira coisa que notei, o beijo diferente. Mas também uma mudança de comportamento. Ele dizia que, quando vinha para cá, tinha que ficar perto da família, o que até poderia ser verdade, mas que eu via tratar-se de uma desculpa para não ficar comigo.
- Por que então ele não te deixava? Por que agir desta forma?
- Simplesmente por um motivo, Marcos, falta de coragem. Ele sabia que já havia se acostumado comigo como parte da vida dele e tinha medo de não saber prosseguí-la sem mim. Como já disse, amor é acostumar-se um com o outro ao seu lado.
- E como terminou?
- Rafa numa das vindas dele eu disse pela centésima vez o quanto ele estava “estranho” comigo. Ele desconversou e foi embora para Campinas. No meio da semana eu abro a caixa de e-mails e tinha uma mensagem dele “Aqui é o Ayrton – Por favor, leia”. Antes de abri-la eu meu coração já dizia do que se tratava aquela mensagem.
- Dizia que realmente as coisas mudaram... Que não tinha mais tempo para nós dois, pois quando vinha prá cá precisava dar atenção a sua família...Que era melhor darmos um tempo... Que eu não tinha culpa de nada...Que eu era uma pessoa maravilhosa...Resumindo: aquele discursinho barato que todo mundo faz quando vai dar um pé na bunda de alguém.
- Igual aquele que você fez quando ia terminar dele, no começo do namoro, e que ele chorou e você desistiu de terminar?
- Sim Rafael...Igualzinho, porém, o fez por e-mail.
- Que falta de consideração da parte dele. Terminar por e-mail um relacionamento de quase 6 anos.
- RB, durante muito tempo eu o condenei por ter agido assim, terminar por e-mail, mas hoje eu compreendo que ele fez desta forma por covardia. Não teve a coragem de dizer na minha cara, pois sabia que eu sofreria e talvez ele também. E hoje eu o perdôo.
- E ele nunca disse nada pessoalmente? Nunca veio se explicar?
- Lucas, eu não respondi ao e-mail dele, não telefonei e não mandei recados. Ele por sua vez não mais se comunicou comigo também Até que um dia achei que aquilo não era correto, que eu merecia uma satisfação da parte dele, já que ele quem terminara nosso relacionamento. Marcamos de nos encontrar. Isso aconteceu uns 50 dias depois do e-mail fatídico.
- E como foi? Ele estava nervoso?
- Quem estava muito nervoso era eu Marcos, pois, no fundo no fundo, eu tinha esperança de que ao nos reencontrarmos, reataríamos. Ele me trouxe algumas roupas minhas que estavam com ele e também alguns livros meus. Eu chorava muito e ele disse que não sentia mais a mesma coisa por mim. – Luke ia nos contando enquanto suas lágrimas escorriam por seu rosto – Que nem eu iria querer que ele ficasse comigo por pena. Que eu era uma pessoa maravilhosa e que desejava tudo de bom para mim, pois eu merecia.
Nós quatro ouvíamos o Luke contar sua história de amor com o Ayrton atentamente, e muito constrangidos por termos tocado naquele assunto que o deixara tão triste. Aquele cara super legal que todos gostavam na escola., amigo de todos os alunos, que ajudava a quem precisava sem dizer que o fazia, não merecia sofrer ter aquele seu romance encerrado, ainda mais daquela forma.
- Quando ele disse que desejava tudo de bom para mim eu falei para ele o seguinte:
“Eu não te perdôo porque quando comecei com você, e não tínhamos nada sólido um com o outro, e eu quis terminar nossa paquera de 3 meses, você chorou e eu achei melhor rever minha posição. Nós nunca brigamos ou tivemos problema algum nestes seis anos de relacionamento, mas num primeiro momento de dúvida, de crise, invés de você lutar para vencê-la em nome de um amor de seis anos, você prefere terminá-lo de vez. Por fim a nossa história feliz. Ayrton, você foi o único cara que amei em toda minha vida, e que ainda amo, mas, se mesmo sabendo que te amo tanto eu não sirvo para você, então eu não te desejo tudo de bom não. Quero mais é vê-lo em desgraça, velo sofrer, vê-lo na sarjeta. Se eu souber que você está com câncer eu vou comemorar”.
- Luke, você disse isso mesmo? Você não exagerou? - Eu ficara muito surpreso ao saber que uma pessoa que eu julgava tão bondosa e compreensiva pudesse dizer tais palavras, quanto mais para a pessoa que amava.
- Lucas, eu exagerei e muito. Estava embebecido pela minha paixão. Eu não minto. Eu realmente desejei por muito tempo a desgraça daquela pessoa eu mais amava na vida, juntamente com minha mãe. E desejava isso simplesmente por pensar que se um dia ele estivesse na pior, ele me procuraria para ajudá-lo, pois sabia que o amava e o ajudaria. Eu o socorreria e ele voltaria a enxergar o quanto era grande o meu amor por ele e voltaria para mim. Foi um raciocínio, no mínimo, ingênuo de minha parte.
- Nunca mais se viram, Luke?
- Rafael, tempos depois ele me mandou mensagem dizendo que sentia falta de transar comigo, pois no sexo nos dávamos muito bem. Transávamos todos os dias, às vezes duas ou três vezes. Ele tinha uma bunda linda, diga-se de passagem... – Falou e deu uma risadinha.
- Mais que a do Sloopy? –Perguntou Rafa já sorrindo com a reação que a pergunta pudesse causar ao RB.
- Que você tem de meter a minha bunda no meio da conversa, moleque?! Cala essa boca e deu um beliscão no braço do Rafa.
- Rafael, não conheço a bunda do R, mas, a bunda do Ayrton foi a bunda mais perfeita que conheci. E te garanto que já vi muitas e muitas bundas na minha frente.
- Eita pegador!!! – Brincou o Rafa com o Luke.
- Pegador nada Rafa. Só catei tanta gente assim por ser bem mais velho que vocês. Talvez quando tiverem minha idade terão ficado com bem mais carinhas do que eu já fiquei.
- Mas, então Luke... Ele te chamou apenas pra transar e você se sujeitou a ir?
com ele com a vã esperança de poder reconquistá-lo. Mas logo de cara eu percebi que ele queria apenas sexo mesmo, e nada mais. Enquanto eu mantinha a relação com ele, fazendo tudo que eu sabia que ele gostava que se fizesse em nossas intimidades, na cama... Eu chorava baixinho sem que ele percebesse... Chorava porque eu notava que a único desejo que restara por parte dele em relação a mim, era sexo...
O Luke contava tudo isso a nós quatro com uma tristeza que nos contagiava. Olhei para o Rafa e já vi que seus olhos estavam cheios de lágrimas. Marcos, Rb e eu estávamos calados, mas também não sabíamos se em pouco tempo não cairíamos em choro. Talvez se aquela história não tivesse Luke como personagem, não nos sensibilizaria tanto, pois gostávamos dele. Talvez se aquilo tudo tivesse ocorrido com um estranho não estaríamos tão tristes.
Um pensamento apenas permeava minha cabeça, “o Luke não merece sofrer assim”.
Pra quebrar a tensão do ambiente e completou com uma brincadeira.
- Pelo menos vi o quanto eu era bom de cama...
Todos nós rimos muito.
- Luke, e quanto tempo faz que vocês terminaram e que você já não o vê?
- Lucas, faz já cinco anos que recebi aquele e-mail desgraçado. E faz mais ou menos quatro anos que não o vejo e sequer nos comunicamos por fone ou e-mail. Um dia havia ligado para parabenizá-lo de seu aniversário e ele foi muito frio. Questionei-o por email da frieza e ele me falou que tinha outra pessoa. Achei que ele não precisava me dizer isto. Não havia necessidade de dizer que tinha outro sabendo que eu ainda gostava dele e não estava pedindo nada em troca, apenas sendo educado em seu aniversário. Magoou-me gratuitamente. Nunca mais me comuniquei com ele e vice-versa.
- E você ainda gosta dele ou se lembra dele?
- Se eu me lembro dele Marcos? Lembro-me dele em todos os dias de minha vida, em todos os instantes, em todos os momentos. Se vou ao supermercado, quando passo pela prateleira onde estão os biscoitos de chocolate que ele tanto gostava, meus braços querem se esticar para pegá-los. Cada vez que mudo de canal na televisão me vem a mente em colocar nos seus programas preferidos. Sinto ainda seu cheiro. Adormeço e sonho com ele. Rezo todas as noites pedindo a Deus que me dê ele de volta – Luke falava e chorava como se tivesse morrido alguém que amava. Talvez por isso que ele chamasse o Ayrton de falecido.
- Chora não, Luke – Disse o Rafinha enquanto chorava também – Você ainda vai encontrar alguém que te ame. Você é uma pessoa excelente. Muita gente gostaria de ter um namorado assim como você.
- Rafael, eu choro de saudade, choro de tristeza por não tê-lo mais ao meu lado, mas choro também de arrependimento por ter sido tão tolo. Sempre as pessoas que me elogiaram me chamaram de inteligente. Mas eu não fui inteligente com o “falecido”. Nosso amor era perfeito, nunca havia tido uma briga sequer e durante os seis anos nunca ficamos um dias sem nos vermos, mas o idiota aqui foi permitir que ele se mudasse para outra cidade. Eu até poderia ter deixado ele ir, mas eu então deveria ter ido junto. Como me arrependo desta burrice.
Nisso a dona Edith sai do quarto e vê Luke chorando. Ela fica assustada e olha para nós. Pergunta se aconteceu alguma coisa, se alguma de suas filhas do interior havia ligado e dado alguma notícia qualquer que causasse tristeza em Luke. Ele mesmo responde.
- Não mamãe. Não aconteceu nada. Eu estava conversando com os meninos e fiquei triste.
- Já sei. Você estava falando do Ayrton, não é? – Ela perguntou.
- É
- Meu filho, sei como é duro perder um amor. A única coisa que posso te dizer para consolá-lo é que o Ayrton perdeu bem mais que você. Pois, você é um filho exemplar, amoroso e presente. Um amigo que todos gostariam de ter, tanto é que essa casa vive cheia. Seus alunos o idolatram e o homenageiam todos os anos. E eu, que tenho quase setenta anos, nunca vi ninguém, após cinco anos de término de relacionamento, ainda se lembrar e sentir falta daquele que o abandonou. Sinal de que seu amor por ele era e é muito grande. Então, volto a dizer, quem deveria chorar seria o Ayrton, pois ele sim perdeu muito.
A dona Edith consolou o Luke, e ele, mais para não deixá-la triste, se recompôs e parou de chorar.
Quando se acalmou um pouco mais, Luke ainda nos aconselhou.
- Meninos! Não sei o quanto vocês gostam de seus namorados. Sei que ainda são novos e talvez tenham muitos outros. Mas um verdadeiro amor é raro encontrarmos e por isso, quando os corações de vocês sentirem que encontraram o verdadeiro amor, façam de tudo para não perdê-lo, para não sofrerem o quanto eu sofro.
A dona Edith deu um sorriso e brincou com Luke.
- Luke, o que você está falando para os meninos é letra de música. – E cantou um trecho de uma música que eu nunca tinha ouvido em minha vida – Lábios de mel - e que depois ela disse tratar-se de um sucesso de uma tal de Ângela Maria, que eu também nunca ouvira falar.
“Quem tem amor, peça a Deus
"pro" seu bem, lhe amar, de verdade,
para mais tarde, não ter desenganos
e chorar de saudade...
Quem foi, na vida, que teve um amor?
e esse amor, sem razão, lhe deixou?
e, até hoje, não guarde no peito
a marca da dor?”[i/]
Logo após ela cantar este trechinho, Marcos, para agradá-la, pegou o violão, que sempre levava, justamente porque ela, e Luke, gostavam de cantar, e convidou-a para cantar.
- Vamos lá dona Edith. Vamos cantar aquele da Maísa que a senhora tanto gosta.
E cantaram “Ouça” e um monte de outras músicas.
Apesar daqueles momentos de tristeza que passamos quando ouvimos Luke contar sua história de amor, que tivera um final nada agradável, o restante da tarde foi alegre e com muita música.
esse moleque de sorriso lindo.”
Sempre que saíamos do apartamento de Luke tínhamos muito a conversar uns com os outros e a refletir. As visitas em sua casa tinham os mesmos efeitos de suas aulas, nos deixavam muito reflexivos e sempre aprendíamos alguma coisa, que nos ajudava muito.
- Lucas – falou Marcos – veja que ironia do destino o romance do Luke.
- Como assim?
- Ele não amava o “falecido” quando iniciou seu namoro, que na realidade foi um casamento, pois moraram juntos seis anos. Ele construiu seu amor por saber que o Ayrton gostava muito dele. Quando o amor que tinha pelo Ayrton estava consolidado ao ponto dele abrir mão de sua presença; não ser egoísta e pensar em si próprio; pensar que aquele que amava precisava prosperar, trabalhar e crescer de forma independente... O que acontece? É abandonado. E o amor que construira resiste até hoje e ele não consegue se livrar deste sentimento que lhe causa tanto sofrimento.
- Verdade Marcos, em 9 meses o Luke construiu seu amor, mas em 5 anos não conseguiu desmanchá-lo.
- Lucas, agora, somente agora, é que tenho uma noção do que seja um verdadeiro amor e consigo defini-lo ao ouvir a história de Luke.
- E como você define o verdadeiro amor, Marcos?
- Aquele que é eterno - Respondeu-me.
- Mas “eterno enquanto dure”. Como no soneto de Vinícius de Moraes?
- Não, Lucas. Eterno. Para sempre mesmo. Igual ao amor que o Luke sente por este Ayrton, e que nem sabemos se o merece. Um amor tão forte, que mesmo sem ser correspondido persiste em existir.
Até hoje nunca vi um amor como de Luke pelo “falecido”.
O engraçado é que muita gente acha que entre gays não existe amor. Que tudo que existe é sexo e “sem-vergonhice”. O amor de Luke, além de existir e ser por uma pessoa do mesmo sexo, era um exemplo para qualquer casal, hétero ou homossexual.