A vida do homossexual é difícil. Isso é o que diz quem não é homossexual, pois quem o é sabe que difícil seria um termo muito simplório para designar uma vida marcada por injustiças de todas as espécies. O homossexual tem que a todo dia demonstrar o quanto é honesto, competente, ético – deveres de todos os cidadãos –, pois seus deslizes não são medidos com a mesma régua com que se medem os dos heterossexuais. Nossas vidas, dos homossexuais, tornam-se verdadeiros testes de sobrevivência, onde só prevalecem os fortes. Cada dia de nossa vida é uma conquista e a cada conquista mostramos o quanto somos vencedores.
Eu acredito que nós, homossexuais, somos mais fortes para enfrentarmos os problemas da vida que qualquer heterossexual. Mas nós não nascemos fortes. Nós nos tornamos fortes, pelo mundo que nos foi imposto ao nascer – hostil, injusto e desumano – pelos próprios heterossexuais.
O homossexual só consegue ser feliz quando deixa de viver uma vida de mentiras e resolve enfrentar os problemas que o cercam. Só é feliz quando aceita ir à luta. Quando não se entrega. Quando diz: Eu sobreviverei.
Todos os dias daquela semana contávamos para nossos pais das nossas conquistas no Campeonato Interno do LG. Meu ficava muito empolgado com tudo aquilo. Dias antes, sem eu saber, ele entrara em contato com a Ariadne e lhe deu uma boa quantia em dinheiro para ser gasta com nossa torcida organizada. Eu só viria a saber disso dias depois do final do campeonato. Era mais fácil para mim, e para o Rafa, enfrentarmos nossos problemas, independente deles serem relacionados à nossa sexualidade ou não, tendo o apoio de nossos pais.
– Amanhã então, os Varões se transformarão em varetas?
– Ah, papai… Aí já não sei… Mas vamos lutar para sairmos de lá campeões.
– Vamos vencer sim, papai. Pode acreditar. – falou o Rafinha com entusiasmo.
– Uca, e aquela professora que pega no seu pé?
– O que é que tem, mamãe?
– Você vai passar de ano com ela?
– Mamãe, eu sempre fui um dos melhores alunos daquela Diaba. Continuo a fazer tudo como sempre fiz. Ela quem modificou comigo e desvaloriza todas as minhas atividades. Tenho certeza que tudo que eu realizei durante o ano me dá condição de ser promovido… Mas… realmente eu não sei o que acontecerá… O conselho de escola será na semana que vem…
A Diaba Loira era um obstáculo a ser vencido bem maior que “Os Varões”, mas quanto a ela, eu nada mais poderia fazer, pois todas as avaliações já tinham sido aplicadas.
Sexta-Feira. Eis o grande dia. Chegamos ao LG e ficamos no vestiário. Quando estávamos todos vestidos, nos encontramos com Monga e com o Luke numa salinha ao lado e nos trancamos lá para ouvir a preleção de nosso técnico.
– Quero parabenizar a vocês todos por tudo que fizeram até agora. O que conseguiram fazer aqui na escola foi algo bem maior do que qualquer título de campeão. Vocês conseguiram se impor e serem respeitados por todos, assumindo suas sexualidades. E o melhor disso, o fizeram numa área que julgam ser coisa de macho, o esporte, o futebol. O que vier daqui para frente é lucro. Mas confio muito em vocês e tenho certeza que serão vencedores.
Todos nós agradecemos o Luke, que nos passou mais algumas instruções e mais uma vez chamou Monga num canto e conversou baixinho com ela, e depois encerrou a conversa com aqueles tapinhas em suas costas.
– Luke, antes de entrarmos em quadra – falou Marcos em nosso nome –, queria te agradecer por tudo que fez pela gente. Não me refiro apenas neste momento do futebol, em que você nos dirige. Refiro-me ao seu trabalho como professor e à sua amizade.
– Poxa, meninos! Não há nada que agradecerem. Faço tudo não só por dever de educador, mas com um imenso prazer…
– Queremos que hoje você use este aqui – interrompeu-o o Rafa, entregando-lhe um boné azul com seu nome bordado, na frente, sobre a palavra inglesa coach, que significa treinador.
Luke colocou aquele boné azul, combinava com o paletó da mesma cor, que ele usava sobre uma camisa social rosa, como a de nosso time. De terno, sem gravata, e boné, Luke parecia um treinador de beisebol ou futebol americano. Abraçamos o Luke e eu dei um beijo em sua face.
– Luke, te amo muito. Você é como um segundo pai para mim.
Os olhos de Luke se encheram de lágrimas. Mas ele amoleceu de vez quando o RB o abraçou e beijou-o. O RB era muito chegado ao Luke, não saía de sua casa, pois ele era o “damo” de companhia da Dona Edith.
– Luke, desculpa pelo que minha mãe fez para você. Você sabe que eu te amo.
– Não tem porque pedir desculpas, R. Você não teve culpa e eu já esqueci aquilo. E eu te adoro também, moleque.
Chegou a hora do nosso jogo e fomos para a quadra. Estava lotada e as torcidas se dividiram igualmente pelos dois lados da arquibancada, que ficou metade verde e metade rosa. Parecia quadra de ensaio da escola de samba Mangueira, do Rio de Janeiro. Ambas as torcidas seguravam balões com as cores de seus times. Os Varões distribuíram um pouco mais daqueles pedaços de madeiras, do tamanho de tacos de assoalho, que eram presos às mãos dos torcedores, que os batiam uns nos outros, fazendo intenso barulho. Mas a nossa torcida tinha a charanga dos Metralha e muito mais animação. Com o dinheiro que meu pai lhe dera, a Ariadne incrementou ainda mais o visual de nossa torcida, que tinha muito mais balões, presos com tufos de fitas cor-de-rosa feitas de crepom, vários pompons, e muita gente, muita gente mesmo, usando o arquinho com chifrinhos de renas.
Rodrigo, Riick e Ariadne sempre à frente da torcida, e eu ainda não conseguira saber quem então estava usando novamente a fantasia de bambi e rebolando e dando tchauzinho pra galera.
Os Varões se recusaram a entrar na quadra antes que nós, então entramos primeiro e fomos recebidos como muita euforia por nossa torcida que cantava, acompanhada pela bandinha, “Vamos Bambinos, é hora de gol! É gay, é show; É gay, é gol!”. Estávamos muito felizes e tranquilos. Acenávamos para a torcida e ficamos batendo bola e nos aquecendo enquanto a partida não se iniciava.
Nossa torcida tinha aumentado substancialmente ao longo da semana, e naquele dia da final muitos se uniram a nós, não tanto por simpatia com nosso time, mas por revolta à maneira violenta como os Varões conseguiram sua classificação. A torcida dos Malucos Beleza, em peso era do nosso lado. As torcidas do Apolos e do Les Bleus se dividiram quase que por igual, com uma pequena vantagem para nosso lado. Os Manos não apoiaram ninguém – nós porque éramos gays e os Varões porque eram mauricinhos. Os Comensais e o Al Qaeda ficaram quase que na totalidade do lado dos Varões. Mas muitas pessoas que torciam pelo nosso time, inclusive professores, optaram por permanecerem calados para não se comprometerem e serem associados aos gays.
E os Varões entram em campo. Foram anunciados no microfone. Na entrada da quadra colocaram um grande painel pintado em papel duro. O painel representava um grande muro de tijolos à vista onde estava pixado “Varões – Campeões”. Ao ouvirem o nome de seu time, a torcida dos Varões silenciou-se imediatamente. Depois, em uma ação previamente combinada, começaram a bater os tacos que tinham nas mãos. Faziam um som que lembrava o de soldados marchando. Ouvimos um grito: “Varões, é guerra!”, e apareceram os jogadores varonis rompendo aquele muro estilizado, fazendo um imenso buraco no painel, e adentraram a quadra correndo um atrás do outro em fila, deram-se as mãos e saudaram sua torcida que passou a gritar o refrão:
“Alô! Alô, avisem a cidade: O nosso time é bom, e só tem homem de verdade!”
Aqueles gritos emudeceram por um momento nossa torcida, não por outro motivo que não fosse a surpresa de tamanha manifestação homofóbica dentro de uma escola. Luke, que estava em pé, de braços cruzados, próximo ao nosso banco de reservas, notou que aquele grito de guerra nos abalara, e apenas nos olhos e com as mãos abertas, movimentando-as levemente para cima e para baixo, nos deu sinal para nos mantermos calmos.
– Aproveito esta ocasião para fazer uma homenagem àquele que é, sem dúvida nenhuma, uma unanimidade nesta escola. É o nosso professor mais querido. É aquele que nos brinda com trabalhos tão divertidos e interessantes como o Projeto Literatura e Geografia. Peço que venha aqui ao centro da quadra o Professor Luke, que aniversaria hoje.
Imediatamente a charanga que acompanhava a nossa torcida puxou o “Parabéns A Você” e toda a escola cantou e bateu palmas. Quando terminaram de cantaram passaram a gritar “Luke! Luke!”. Uma aluna vestida de branco, que carregara uma plaquinha no dia da abertura lhe entregou um arranjo de flores. Luke começou a chorar e não quis falar nada. Apenas tirou o boné da cabeça e passou a acená-lo para os alunos.
Muitos alunos na escola sabiam que Luke era gay, e isto aconteceu principalmente pelo fato do diretor Jorge ter espalhado isso pela escola, pois o Luke, até a ida de Jorge para o LG, nunca comentara de sua vida particular com ninguém. E não que Luke algum dia tenha comunicado para o diretor Jorge que fosse gay, mas frequentavam os mesmos lugares. Apesar dos alunos saberem da sexualidade de Luke, nunca nenhum aluno fizera qualquer piadinha com ele, lhe afrontara, ou queixara-se de que ele tivesse feito algum gracejo sequer. O respeito e o carinho dos alunos por Luke era enorme e ele agradava tanto aos gays como aos manos. Amir usara um termo correto ao homenagear Luke, “unanimidade”.
E chegou a hora da partida decisiva. Caio, o capitão dos Varões ganhou o sorteio e escolheu a saída de bola.
Ele toca a bola para Fedo que está ao seu lado. Este simplesmente a rola para trás, outro jogador dos Varões dá uma paulada em direção ao nosso gol. Monga nem vê a cor da bola. 1 x 0 Varões. Com menos de cinco segundos de jogo. Com aquele lance percebemos que Monga estava bem nervosa. Fui até o fundo do gol, peguei a bola bem devagar. Tranquilizei Monga.
– Tenha calma. Você foi pega de surpresa, pois estava nervosa. Fique calma e vamos virar o jogo.
Olhamos para o Luke e ele nem se abalou. Mas o Winston e o RB mal conseguiam permanecer sentados no banco de reservas. O jogo se tornou disputadíssimo. Era um ataque lá e outro cá. Estava equilibrado, mas se continuasse daquela forma, os Varões sairiam vencedores.
Já estava quase no final do primeiro tempo. A bola estava com Marcos em nossa defesa e um atacante dos Varões se aproximou para roubá-la. Enquanto disputava a bola, ouve-se o barulho de um apito. Marcos para imediatamente e olha para o juiz, como que perguntando o que aconteceu. O juiz continua a olhar para a bola que agora está nos pés do atacante inimigo que corre em direção à nossa meta. Antes que Monga pudesse esboçar qualquer reação, ele chuta e é o segundo gol dos Varões.
Corremos todos em direção do juiz e explicamos que paramos a jogada porque ouvimos um apito. O Luke foi reclamar a mesma coisa na mesa de arbitragem. Mas o gol não foi anulado. Depois disso, alguns professores foram colocados junto às torcidas para inibir que algum fizesse aquilo novamente, mas o nosso prejuízo não fora reparado.
Termina o primeiro tempo. A torcida dos Varões está eufórica. Voltaram a gritar o refrão homofóbico. Mas desta vez nossa torcida reagiu e começou a cantar bem alto nossas musiquinhas e fizeram a galera varonil se calar.
– Meninos, esqueçam a torcida, esqueçam o placar. Entrem agora no segundo tempo como se o jogo estivesse no seu início. Lembrem-se do que eu disse no vestiário, vocês já fizeram algo bem maior que vencer um campeonato. A obrigação de vencer é deles, os machos, o que vier pra nós é lucro. O peso de vencer está nas costas deles e não na nossa. Eles que estão gritando que são machos, que são os bons e que inclusive já são campeões. Vocês jogam dez vezes melhor que eles. Estão apenas nervosos. Tranquilidade e venceremos.
O Luke conseguira nos acalmar. Não precisávamos de mais nenhuma estratégia de jogo, e sim de cabeça no lugar.
Esfriei a cabeça. Lembrei-me do travesti do nordeste que fora violentamente morto no início do ano, lembrei-me de Paulinho, que tivera que mudar da escola após sofrer bullying e ainda teve que mudar de igreja para praticar sua fé, apenas pelo fato de ser homossexual, lembrei-me de minha tia Eneyda que proibira a ida do Rafa à sua casa acompanhado do namorado. Nós tínhamos que vencer. Aquela vitória não seria contra os Varões e sim contra o preconceito e a intolerância.
Começa o segundo tempo. Nossa galera canta incessantemente nos empurrando para frente. Nosso jogo melhora muito. Ao roubar uma bola dos Varões que nos atacavam, Marcos a toca para mim, rapidamente estico o passe para o Rafa que de calcanhar, passa para Alynson que faz o nosso primeiro gol. 2 x 1, e ainda faltam 15 minutos de jogo.
A torcida Rosa canta “Vamos Bambinos, é hora de gol…” A nossa reação e o canto de nossa torcida enfurecem nossos adversários que passam a chutar a tudo e a todos. Até a própria mãe chutariam se ela estivesse dentro da quadra.
Num determinado momento, um dos Varões chuta maldosamente o Rafa, perto do nosso banco de reservas, e o derruba, sem que o juiz o visse. O RB se levanta e vai pra cima daquele jogador.
– Nele não, moleque! No meu namorado ninguém bate! Pega eu, filho da puta!
O juiz não vira a agressão contra o Rafa, mas viu a reação do R e o expulsou do banco de reservas impedindo-o de entrar em jogo. O Rafa não se machucou.
A partida continua. Já estávamos na metade do seguindo tempo, faltando 10 minutos para o término da partida e continuávamos atrás no placar. Entretanto, já dominávamos o jogo. Rafa e Alynson faziam um escarcéu no ataque. Pareciam dois demônios. E o tempo passava e nada de empatarmos.
Os varões chutam em nosso gol. Monga defende com facilidade. Ela olha para Luke e ele acena com a cabeça. Monga ergue a bola com a mão direita, dá dois passos para a esquerda olhando para esse lado no fundo da quadra. Toda a marcação dos Varões se inclina para o lado onde estava Alynson que se encontrava deste lado de nosso ataque. Monga, entretanto, executa a jogada que tanto ensaiara com Luke e arremessa a bola para o lado direito, sem ao menos virar o rosto nesta direção. O Rafinha fica livre na cara do gol e empata a partida. 2 x 2, faltando quatro minutos para o final.
A partida pega fogo. Se terminasse empatada teríamos prorrogação e pênaltis, caso o empate persistisse. Os Varões davam muita pancada, mas o juiz não via, ou fingia não ver.
Apesar de querer nos animar e nos entusiasmar, nossa torcida, como a dos Varões também, não consegue mais cantar, pois o jogo estava eletrizante. Todos prestavam atenção somente ao jogo.
A todo o momento, os Varões, sem que o juiz ouvisse, xingavam o Rafa e o Alynson, que eram menos avantajados fisicamente que eu e o Marcos, de bichinhas e veadinhos, e vez ou outra, passavam a mão na bunda dos dois para provocá-los. Cansado da provocação, num lance em que Fedô viera lhe roubar a bola, Rafinha passa a bola por debaixo de suas pernas. Fedô se vira, surpreso com o drible e o Rafa volta com a bola e passa ela acima da cabeça de Fedô, dando-lhe um chapéu. Rafa toca a bola imediatamente do outro lado para o Marcos que sobe para o ataque, depois olha para o Fedô e colocando as mãos na cintura da uma reboladinha para aquele que o xingara de veadinho o jogo todo. Fedô fica desconcertado, pois a torcida começa a zuá-lo. Até mesmo os torcedores de seu time.
Rafa já estava correndo para receber a bola novamente. Fedô corre atrás do Rafa. Todos os presentes que assistiam àquela partida já anteveem o que Fedô irá fazer. Fedô dá um chute tão grande nas pernas de Rafa, que este é erguido do chão antes de nele se esborrachar e bater a cabeça, fazendo um corte. A quadra fica manchada de vermelho. O juiz assinala a falta. Os torcedores param de gritar. A atenção ao meu irmão caído no chão é enorme. Todos os jogadores correm para vê-lo. Juntam-se à sua volta alguns professores. Lembrei-me dos meus sonhos em que Rafa morria e senti um calafrio.
Luke manda que todos se afastem para poder ver o Rafa. Uma professora de Ciências da escola, que também fizera curso de enfermagem, vem ao socorro de meu irmão. Ele não desmaiou. Estava relativamente bem. Ficara apenas atordoado, mas com aquele corte e sem exames maiores, Luke não permite, e nem Rafa tinha mais condição voltar a partida. Retiramos o Rafa no colo, eu, o Marcos e o Alynson e o colocamos no banco de reservas. Faltava menos de 1 minuto para o final. Aquela cena do Rafa sendo retirado da quadra segurado por nós, com a cabeça sangrando, foi muito triste e constrangeu a própria torcida dos Varões.
. Enquanto carregávamos meu irmão, os árbitros providenciavam a limpeza da quadra. Escutei um grito bem agudo. Na verdade não era um grito. Era o início de um canto. Sem acompanhamento musical, sem microfone, fazia sua voz ecoar na quadra toda.
Olhei para a direção da nossa torcida e bem à sua frente, em pé na mureta que a separava da quadra, estava David, que cantara o Hino Nacional na abertura. Sem acompanhamento musical, sem microfone, fazia sua voz ecoar na quadra toda. Logo nos primeiros versos reconheci a música de língua inglesa que David cantava com ênfase e expressão corporal – “I Will Survive”.
Se tinha alguém falando, naquele momento se calou. Todos observavam David que cantava com toda emoção a música que é considerada um ícone gay e que fala de sobreviver. Todos entenderam perfeitamente a mensagem que David queria passar. Ele cantava de uma forma vibrante, porém, triste, mas quando chegou no refrão, fez um sinal para a galera de nossa torcida, que começou a acompanhá-lo com palmas a dançar, e cantar o refrão junto com David.
“Oh no, not I! I will survive!
Oh, as long as I know how to love
I know I’ll stay alive!
And I’ve got all my life to live.
And I’ve got all my love to give.
And I’ll survive. I will survive! I will survive!”
Sinceramente, não sabia que essa música era tão conhecida. A nossa torcida concentrava todos os gays e lésbicas do LG, que não eram, poucos, mas não só eles cantavam. E quando eu menos esperava, grande parte da torcida dos Varões – os machos de verdade – cantava com nossa galera aquele hino gay, como se daquele momento pra frente todos torcessem para o mesmo time.
Soube que o professor de Educação Física, quando viu esta cena, comentara: “meu Deus! O mundo é gay!”.
A violência tamanha dos Varões, somada ao gesto covarde e criminoso do Fedô, fez com que perdessem a simpatia da maioria dos alunos que foram por eles torcer naquela final de campeonato. O Juiz esperou David e as duas torcidas terminarem de cantar aqueles refrões que nos emocionaram e a todos os presentes. Fez-se silêncio outra vez e ele puxa o cartão vermelho do bolso e expulsa Fedô do jogo. O juiz nunca foi tão aplaudido na vida como naquele dia.
Winston entre em quadra para substituir o Rafa. O Juiz mede a distância entre a bola e a barreira e Marcos vai para a cobrança. Luke observa o posicionamento da barreira e do goleiro, o João, meu primo, e de braços cruzados e sem esboçar muita emoção, cochicha para Marcos – “no canto de cá, por trás da barreira”. Marcos chuta e atende Luke. Viramos o jogo, 3 x 2.
A nossa torcida quer invadir a quadra, mas os professores que estavam próximos dela não permitem e explicam que ainda falta pouco mais de um minuto de jogo.
Os Varões não sabem o que fazer. Nós estávamos eufóricos, já querendo comemorar o título. Luke deu um berro e mandou prestarmos atenção ao jogo. O juiz autorizou a saída de bola que rolou mais uns 30 segundos e ouvimos o apito final. Éramos campeões. As duas torcidas invadem a quadra e nos abraçam. A charanga começa a tocar “Hang On Sloopy” e a multidão grita “É gay, é show; É gay, é gol!”. Até uns moleques, machões, que jogaram no time dos Manos cantavam o refrão mais famoso do campeonato interno. Na saída, o João, encontrou-se casualmente conosco e acanhadamente pediu desculpas pelo que fizera.
– Espero que não tenha raiva de mim, Lucas. Nem você e nem o Rafa.
– João, raiva eu não tenho e nunca tive. Só tenho pena de você por ser assim. Suas desculpas estão aceitas, mas espero que você tenha mudado…
– Mas eu nunca tive preconceito, eu apenas não queria que pensassem que eu…
– Basta, João, você diz não ter preconceito e ao mesmo tempo diz ter preocupação que pensem que você seja gay. Por quê? Por qual razão não quer que pensem que você é gay? É muito ruim ser gay? É criminoso, vergonhoso ou doentio ser gay? Vá embora João, seu lugar é com os Varões, os “homens de verdade”.
Viramos as costas e fomos embora.
Foi mais um momento de emoção daquele ano que foi inesquecível em minha vida. No outro dia, sábado, fizemos um churrasco em nossa casa, onde comemoramos o título e o aniversário de Luke, que não nos revelou sua idade. Cantamos e nos divertimos. Estava nossa turma toda. As Panteras, os Metralha, os Internet, o Alynson, o Riick, a Ariadne, o Matheus – que naquela noite ficara com o Luke novamente – e o Paulinho, que eu fiz questão de convidar. Nesse dia aconteceu algo marcante para o Rodrigo, e muito desejado por ele, beijou e ficou a noite toda com Ariadne.
– Ariadne, essa eu não entendi! – exclamou Fabinho.
– Não tem muito o que entender… Eu sou bi e não sabia. Sempre pensei que eu curtisse somente mulheres…
– Mas depois que ela experimentou este lindão, tesudo e gostoso aqui, de olhos azuis e loiro, ela viu como é gostoso ficar com um macho. – disse Rodrigo fazendo troça.
– Concordo perfeitamente com você, Rô Rô, e depois dela então é a minha vez. – falou Fabinho.
Todo mundo caiu na risada.
– Riick, tô curioso de uma coisa…
– O que foi, Lucas?
– No desfile de abertura você usou a fantasia de bambi, mas nos jogos não era você. Quem a usava?
Riick caiu na risada.
– Nossa, Lucas! Não acredito que não tenha percebido aquele bambi dançante.
Quando ele usou a expressão bambi dançante, na hora já me veio a cabeça quem vestira aquela fantasia.
– O Globeleza?!
– Exatamente… O Globeleza. Quando ele me viu com a fantasia no primeiro dia, exigiu que eu a deixasse usá-la, pois segundo ele aquele personagem fora “escrito” para ele e ninguém desempenharia tão bem aquele papel como ele.
– Aquela “Ana Cláudia” é fogo… – falei rindo e lembrando que fora o Globeleza o grande responsável pela divulgação da nossa homossexualidade pelo LG.
Já de madrugada, quando Luke estava indo embora, eu o chamei de lado.
– Tô preocupado com a Diaba, Luke.
– Lucas, tem um filme muito famoso chamado “E O Vento Levou…” em que a personagem principal sempre dizia “amanhã é outro dia”, e esse era o seu lema de vida.
– O que você está querendo me dizer?
– Para que não sofra por antecipação. Curta este fim de noite com seu namorado. Divirtam-se amanhã, domingo. Segunda-feira é o conselho de sua classe, e aí então pensaremos no assunto. Mas não creio que a Eme terá coragem de te reprovar.
Fiquei mais tranquilo com as palavras de Luke. Ele já estava indo embora quando eu ainda lhe falei mais uma coisa.
Eu ri.
– Não se lembra?
– Não, Lucas. Me fale.
– Quando você nos trouxe para casa, você pediu para entrar pois queria beber água…
Ele caiu na risada.
– Poxa! Eu falei beber água?!
– Falou. E eu estava tão nervoso pensando que o Marcos e o Riick tinham ficado, que não percebi.
O Marcos dormiria em casa naquela noite. Assim que todos se despediram ele se aproximou, me abraçou por trás, e segurando minhas mãos beijou-me na face, e depois disse num tom romântico e ao mesmo tempo malandro:
– Vamos, bambino! É hora de show…
Fomos para o meu quarto e terminamos de comemorar o título de campeão do LG na minha cama, como muito amor e carinho. A comemoração se estendeu pelo domingo todo.
No conselho de escola a Eme tentou, sim, me reprovar. Isso só não ocorreu graças ao Luke, segundo me contou posteriormente a Luana, que representava os alunos de minha classe nesta reunião. Segundo a Luana, o Luke não foi nada comedido na defesa de minha aprovação pelo conselho.
– Precisava ver, Lucas, quando a Eme disse que “Português é uma matéria importante para a compreensão de todas as áreas do saber” e que sendo assim, como você não terminara o ano com bom rendimento nesta disciplina, não poderia ser promovido. O Luke pediu a palavra e falou que as avaliações aplicadas aos alunos do terceiro ano exigiram apenas memorização, e que “o aluno Lucas não está fazendo curso para ator de teatro ou TV para ter sua memória avaliada” e que estranhava o fato de “o aluno Lucas compreender os textos de Geografia, História, Filosofia, os enunciados dos problemas de Matemática, Física e Química, etc., mesmo sem dominar a Língua Portuguesa, como alega a senhora, professora Emengarda.”
– Ele a chamou de Emengarda?! – perguntou Rodrigo surpreso.
– Chamou sim, Rodrigo. Foi muito engraçado porque ela ficou vermelha e não podia reclamar, afinal, ele a chamou pelo seu nome. Além de mim, tinha mais alguns alunos na sala dos professores. Olhamos um para a cara do outro e quisemos rir, mas, seguramos…
– Mas, Luana, e depois que o Luke falou tudo isso? O que aconteceu?
– Não, Lucas. Ele não falou somente isso. Ele ainda disse que “caso o aluno Lucas Augusto Trevisan Zanini” fosse reprovado, ele mesmo recorreria junto à diretoria de Ensino quanto àquela decisão arbitrária, ilegal e discriminatória. A Diaba já estava puta da vida de ter sido chamada de Emengarda e sentiu também que não teria o apoio do conselho de classe para te reprovar e ela mesma recuou e disse “se o Luke quer empurrar todo mundo pra frente, vamos empurrar”, e mudou sua nota.
Mais uma vez o Luke fazia com que eu o admirasse. E sei que ele fez isso não por nossa amizade, mas sim por acreditar que eu estivesse mesmo sendo injustiçado.
Se eu tivesse que escolher algo que representasse aquele ano em minha vida, com toda certeza eu escolheria uma montanha russa. Foi o ano de minha descoberta, que por si só foi uma revolução dentro de minha alma. Conheci um novo mundo. Encontrei um companheiro que amo e que me ama e amigos verdadeiros. Ao lado deles vivi momentos alegres e tristes.
Naquele ano, o Luke fora escolhido como paraninfo de todas as turmas que concluíram o ensino médio. Eram oito turmas ou mais. Foi muito homenageado e o aluno Tomas, filho da dona Circe, o mesmo aluno que brigara com Luke no início do ano por uma brincadeira tola, fez um número musical especial para ele, cantando ao seu lado, “Ao Mestre Com Carinho”. Em seu discurso, Luke ainda pediu desculpas aos alunos se algum dia não rendeu o que eles esperavam, e que se algum dia ele cometera algum erro, fora por amar demais sua profissão e seus alunos.
– Se o Luke pediu desculpas, mesmo sendo o mais adorado dos professores, o que deveria fazer a Diaba? – perguntou-me Rodrigo.
– Aquela desgraçada não merece perdão. Cadeia é pouco pra ela. Tinham que cortar sua boceta com gilete e jogar sal e limão. – falou Fabinho.
– Nossa Fabinho, você foi tão cruel que agora até eu fiquei com dó da demônia.
E a demônia, para não dar o braço a torcer a Luke, não compareceu a nossa cerimônia de colação de grau. Após seu discurso, Luke foi aplaudido de pé por todos os alunos.
Depois da cerimônia de colação de grau fomos para um jantar dançante num clube de nossa cidade. Minha família e a de Marcos sentaram-se na mesma mesa, juntamente com o Luke e a dona Edith.
– Luke, vou aproveitar e te entregar os convites para a minha peça de teatro.
– Obrigado, Rafa. O RB já tinha comentado com minha fazia tempo, mas depois não falou mais nada.
– É porque nós adiamos a estreia várias vezes. Mas acabou sendo bom, pois o final do ano foi muito agitado no LG.
– E quando será a estreia, Rafa?
– Trinta de janeiro.
Prestei o vestibular na faculdade de Direito municipal, aqui de nossa cidade, e passei. O Marcos foi fazer Jornalismo, também na faculdade de nosso bairro, uma das melhores do Brasil. Sem muitas obrigações, depois do Natal, fomos pra praia passar o ano novo e as férias, eu e Marcos; Rafa e RB; Rodrigo e Ariadne, que agora namoravam; Riick, Paulinho, que se tornou um grande amigo nosso e Matheus, que ia somente nos finais de semana por causa do trabalho.
Um dia estávamos todos nós papeando e Rodrigo virou-se para Riick e perguntou algo sem cerimônia alguma.
– Afinal, Riick, você é veado ou não? Porque apesar de eu gostar de uma buça, de tanto andar no meio gay eu já tenho o meu radarzinho e tem hora que ele apita pra você, tem hora que ele fica quieto, mas eu não aguento mais essa dúvida…
Riick há muito tempo já estava acostumado com o jeito de Rodrigo, de quem era muito amigo, e respondeu com bom humor:
– Rodrigo, é uma pergunta tão fácil de ser respondida, pois é sim ou não. Mas, quero te deixar curioso por um bom tempo e descubra sozinho.
E o Riick nunca respondeu a esta pergunta, mas tem perguntas que não precisam ser respondidas e que suas respostas não fazem a mínima diferença em nossas vidas. Para mim, o que era importante era estar lá junto com meus amigos.
Ficamos quase todas as férias no litoral. Todos os dias, eu e Marcos íamos ao entardecer para a praia e esperávamos o por do sol, e ficávamos deitados na areia nos beijando, acariciando e conversando sobre o futuro.
– Marcos, será que nas férias do ano que vem também estaremos aqui, juntinhos, nos amando da mesma forma que hoje?
– Você se lembra a frase do filme que o Luke te falou?
– Do “E o vento levou…”? “Amanhã é outro dia”?
– Sim. Essa mesmo. Se nos preocuparmos com o amanhã deixamos de aproveitar o hoje. Não sei o amanhã, o que me importa é que hoje te amo muito e se sou feliz, um dos motivos é por ter você ao meu lado.
– Será que todo mundo tem um namorado tão inteligente como eu… e tão gatinho?
Ele estava deitado ao meu lado e beijei-o novamente e rolamos na areia enquanto nos beijávamos. Estávamos muito afastados do calçadão e já estava quase escurecendo e dificilmente alguém poderia nos ver, mas não demorou muito escutamos um grito de voz masculina.
– Aí suas bichas… Não tem dinheiro pra pagarem o motel?
O Marcos deixou de me beijar por uns instantes e gritou:
– Não tenho não, agora me deixa continuar aqui! – e voltou a me beijar.
Já passava da segunda quinzena de janeiro quando voltamos pra casa. Já estava com muita saudade de casa e de Luke. No dia seguinte à nossa chegada, nosso quarteto, ou melhor, agora septeto, pois a todo lugar que íamos também nos acompanhavam o Rodrigo, a Ariadne e o Riick, fomos visitá-lo.
– Oi, Tia! – cumprimentou o RB todo amoroso a Dona Edith – Cadê o Luke?
– Ai, amorzinho – falou ela quase chorando –, que bom que vocês apareceram. Desde o início do mês ele só fica no quarto, dorme sem parar, não come, não fala nada e tá super magro. Sei que aconteceu alguma coisa com ele, mas ele não me conta…
– Ele não come quase nada, eu preciso levar comida no quarto pra ele e forçar ele a aceitar. Ele também não sai mais de casa, não atende nenhum telefonema e se alguém o procura ele manda dizer que não está. – disse Dona Lúcia, que agora também trabalhava na casa do Luke, a quem conheceu por nosso intermédio, apesar do Luke também ter sido professor de seu filho Marcel.
– RB, vai somente você lá no quarto e fala com ele. Ficamos aqui com a Dona Edith. Depois, se ele quiser, nós vamos lá dar um “oi”.
O R não demorou muito e voltou e nos chamou a todos no quarto do Luke. Ele não estava dormindo. Estava sentado na poltrona do computador. Cumprimentou a nós todos com muito carinho. Estava muito magro e com olheiras. Tinha um aspecto doentio e estava irreconhecível. Por um momento pensei que ele estivesse com AIDS, pois o meu preconceito, como o de várias pessoas, me faz pensar que toda vez que vejo um gay doente, que ele esteja com essa doença.
O Luke tratava o RB como seu filho. Presenteava-o no Natal, no aniversário, lhe dava dinheiro para sair com o Rafa, emprestava seu computador para que fizesse os trabalhos escolares, vivia lhe perguntando se ele precisava de alguma coisa. Fazia isso porque sabia do tratamento que os pais do RB lhe dispensavam.
Após o R insistir muito, o Luke abriu uma gaveta de sua escrivaninha e entregou um papel para que nós o lêssemos. Tratava-se de um notificação da Secretaria de Educação. Nela, Luke estava sendo informado que, por denúncia de professores, pais e alunos, seria processado administrativamente, e que se comprovadas as acusações, estava sujeito à pena de demissão do serviço público. As acusações eram:
1) Prática pedagógica que não condizia com nenhuma teoria pedagógica “séria”;
2) Adotar temas de aula para exposição que colocavam os alunos em situação de constrangimento. Ex: Popó, Paca e Pênis;
3) Colocar uma questão na prova que causou constrangimento ao alunos, perguntando se “O professor é lindo, inteligente, gostoso, tudo que pedi pra Deus”;
4) Participar de uma reunião do conselho de escola, do qual não fazia parte, onde incitou os alunos a se revoltarem contra a decisão deste colegiado;
5) Constrangir o aluno Amir a usar uma saia em atividade escolar e também presenteando-o com meias cor-de-rosa, fazendo com que o aluno fosse ridicularizado diante da classe;
6) Assediar o aluno, menor, Tomas, inclusive lhe mandando um e-mail onde diz “gosto muito de você”;
7) Viajar sem autorização de sua genitora com o aluno menor, Ricardo Bruno;
Cool Ter ameaçado de morte, em seu local de trabalho, a professora Emengarda.
Num documento anexo, estavam relacionados os nomes das testemunhas de acusação: diretor Jorge, Professora Emengarda, alunos Amir e Tomas, e a mãe do aluno Ricardo Bruno, Helena.
– Mas essa bicha cantou em sua homenagem na cerimônia de formatura! Temos até o vídeo em casa, Luke. Como ele poderá te acusar de assédio? – falou Rafinha, nervoso, referindo-se ao Tomas.
– Luke, nós testemunharemos que sua aula era excelente, que a questão da prova era penas uma brincadeira para relaxar… – falou Ariadne.
– Todos na escola sabem que o Amir colocou saia de escocês contra a sua vontade, Luke, e ele mesmo me contou quando você deus as meias para ele que era uma brincadeira. E o desgraçado fez homenagem a você no dia do seu aniversário… – esbravejava Rodrigo.
– Luke, eu irei lá e desmentirei minha mãe. Você nunca me assediou. Nunca me fez mal. Ao contrário, foi uma das pessoas que mais me ajudou na vida… – falou o RB chorando.
– Do conselho de escola que você participou o diretor permitiu sua presença, foi naquele dia que eles nos expulsaram por causa da briga, não foi ? – perguntei a Luke.
O Luke só nos escutava enquanto falávamos todos ao mesmo tempo. Num determinado momento, ele resolveu falar. Estava muito triste e as lágrimas escorriam de seu rosto.
– Meninos, estou sendo vítima de uma vingança armada pelo Jorge e pela Eme. O Jorge, pelo fato de eu tê-lo denunciado sobre o desfalque do dinheiro do projeto e a Eme, por inveja e bronca do fato de contrariá-la tanto na expulsão de vocês, como quando ela quis te reprovar, Lucas, já que não há outro motivo. Eu sempre soube que estava lidando com pessoas de caráter duvidoso, mas jamais pensei que formariam uma quadrilha, já que não existe outro nome para este agrupamento de pessoas, que se unem para caluniar-me e prejudicar-me…
Ele falava pausadamente. Em nenhum momento demonstrou medo do processo, mas sim um desgosto, uma revolta, por ser vítima de tantas mentiras.
– Vejam vocês que todos os fatos de que me acusam foram deturpados e distorcidos de sua verdade. As minhas aulas, que sempre foram motivos de elogios por parte de meus alunos, agora são usadas para mostrarem que sou um maluco, ou inconsequente. Eu dizer no e-mail que eu gostava do Tomas, mas que não admitira que ele me destratasse, teve a palavra “gostar” pinçada do contexto e me acusam tal qual um pervertido sexual, que não poupa nem seus alunos…
E continuou a nos explicar a verdade sobre todos aqueles fatos que, na realidade, já conhecíamos e que sabíamos de suas distorções.
– Vejam vocês que a Eme registrou um boletim de ocorrência de que eu a ameacei de morte dentro da sala de aula no LG.
Eu olhei no papel e vi a data da alegada ameaça feita por Eme.
– Luke, não se preocupe. Neste dia, você estava conosco arrumando os materiais de Geografia na biblioteca. As aulas já tinham se encerrado e você nos pediu para te ajudar. Eu, o Marcos e o Rodrigo te ajudamos e vamos testemunhar isso.
– Vou precisar mesmo, pois esta acusação ela formulou na Vara Criminal e o julgamento será daqui a um mês.
Continuamos a conversar sobre tudo aquilo.
– Lucas, porque o Tomas, depois de cantar junto com você na formatura, vai agora te acusar de algo que ocorreu no início do ano passado e que ele sabe que é mentira?
– Riick, a mãe dele é a tesoureira da APM. Quando eu denunciei o Jorge, ela correu o mesmo risco que ele de ser incriminada.
– Sloopy, mas e sua mãe? Por que ela vai fazer isso com o Luke?
– Rafinha, eu não sei. Eu tô super envergonhado… – falou chorando – Que eu posso fazer?
– Rafa, deixe isso pra lá. – disse Luke, dando uma piscada para o Rafa enquanto passava a mão na cabeça do RB.
Já tínhamos conversado bastante sobre todas aquela mentiras até que Marcos fez uma pergunta que também me intrigava.
– Luke, nós sabemos que são mentiras e que eles formularam todas estas acusações para prejudicá-lo, mas por qual razão formularam estas de assédio sexual?
– Pô Marcos! Tá achando que o Luke assediou esses alunos aí? – perguntou Rodrigo bravo.
– Lógico que não, Rodrigo. Pois inclusive uma das pseudovítimas do assédio seria o RB, que tá aqui na nossa frente desmentindo tudo. Eu quero saber porque escolheram este tipo de acusação. O que eles têm em mente?
– Marcos, vocês ainda não enxergaram a razão da acusação de assédio?
– Não.
– Pelo fato de eu ser gay. É uma acusação mais fácil de colar num gay do que num heterossexual.
– Mas ninguém nem nunca comentou que você fosse gay,Luke. – falei nervoso – Acho que a grande maioria nem sabe que você é gay.
– Mas saberão. E quando souberem, esquecerão de todo meu passado e passarão a ter dúvidas se eu fiz isso ou não. E tem mais, meninos, acusação de assédio é o tipo de acusação que mesmo você comprove ser inocente, te deixa manchado, pois ninguém se lembra que você foi inocentado, apenas que fora acusado.
Resumindo o que o Luke estava querendo nos dizer, é que depois de muitos anos no magistério, de bons serviços prestados, ele estava sendo vítima do preconceito contra os gays. Estavam usando o preconceito para atingi-lo com acusações de crimes de ordem sexual. O Luke já há muito tempo dizia que estava cansado de lecionar, pois após mais de 20 anos atuando na educação, achava que já havia cumprido sua obrigação com a sociedade. Ele já havia exercido todos os cargos da carreira da educação. Além de professor, fora diretor de escola e supervisor de ensino (acima do diretor). Ele ministrava palestras sobre educação em diversas faculdades e pretendia lecionar no ensino superior e exercer a Advocacia na plenitude, se possível até prestar um concurso na área jurídica.
Pensando nisso tudo, desgostoso com tudo que sofria, Luke resolveu antecipar algo que planejava há muito tempo, se exonerar do cargo de professor para advogar.
– Mas, Luke, você se exonerando, não precisa mais responder a este processo administrativo? – perguntei a ele.
– Não precisaria, pois deixo de ter qualquer vínculo com o estado. Mas eu vou me defender sim e provar que sou inocente e fui vítima de uma campanha difamatória.
Luke solicitou a exoneração do cargo de professor alguns dias após nossa visita e passou a aguardar o julgamento da acusação de ameaça, no fórum criminal, e as audiências para o processo administrativo.
Chegou o dia da estreia da peça do Rafa e do RB, “A Ópera Do Malandro”. Encontramos nessa noite com o Luke e a Dona Edith, que agora já sabia de tudo que acontecia com seu filho.
– Ele está melhor, Dona Edith?
– Lucas, estou a cada dia mais preocupada, pois ele está cada vez mais triste. Só veio aqui hoje por causa do Rafa e do Amorzinho (era assim que ela chamava o RB).
Doía demais olhar para o Luke. Ele já não trazia mais aquele semblante alegre e demonstrava desânimo e tristeza.
O musical foi muito divertido. Estava muito bem ensaiado e produzido. Gostei muito quando o RB e mais três rapazes, representando malandros, cantavam o Tango do Covil. Gostei demais deste momento de comédia da peça. Entretanto, o ponto alto do espetáculo, e talvez o mais triste, era quando o homossexual, Geni, representado pelo Rafa, cantava a canção “Geni e o Zepelim”.
O bandido queria que deitasse com ele. Geni dava para a cidade toda e não discriminava ninguém, mas se recusou a deitar-se com o comandante do Zepelin. O prefeito, o bispo, o banqueiro, e toda a população da cidade imploraram para Geni transar com o comandante. Ela ficou com pena da população e atendeu os seus pedidos, deitou-se com aquele homem e salvou a cidade. O zepelim foi embora, e quando a cidade já estava a salvo, todas aqueles pessoas que pediram ajuda para Geni, voltaram a xingá-la e discriminá-la. Rafa representou o papel muito bem e passou muita emoção.
Ao fim da peça meus pais aplaudiam muito orgulhosos. Fomos aos bastidores cumprimentar o Rafinha e o RB.
– Rafel, a mamãe tá tão orgulhosa de você! – falava minha mãe enquanto beijava o Rafinha.
– Lucas, viu o Luke e a tia Edith?
– RB, ele mandou um abraço para você e para o Rafinha. Pediu para vocês desculpá-lo e foram embora.
– Putz. Ele tava muito triste?
– Estava sim, R.
Fui testemunha, junto com Marcos e Rodrigo no processo criminal que Eme moveu contra Luke. Testemunhamos que seria impossível ele tê-la ameaçado no local e data e horário que ela citou, pois estávamos com ele em local diverso. As testemunhas de acusação neste processo foram o diretor Jorge e Snape, marido de Eme. O juiz considerou ambas as testemunhas suspeitas. Jorge por ter animosidade com Luke, que representara contra ele. E Snape por ser marido da acusadora. A própria promotora ficou convencida da inocência de Luke e solicitou sua absolvição.
No processo administrativo, além de mim e meus amigos, vários alunos testemunharam a favor de Luke. Declararam ser ele um excelente professor e o mais querido da escola, e procuraram esclarecer todas as mentiras que foram ditas contra ele. A própria mãe do RB se retratou e testemunhou a favor de Luke. Mas nada disso adiantou e Luke foi considerado culpado de todas as acusações e somente não foi demitido do serviço público porque já houvera pedido sua exoneração antes do processo se iniciar. Luke se abateu em uma tristeza profunda.
Um dia recebi um vídeo que ele produzira. Ele enviara o vídeo para todos os seus amigos. Assisti ao vídeo junto com o Marcos, o Rafa e o R. Ao som da música “My Way”, de Frank Sinatra, ele mostrava fotos de toda a sua vida, ao mesmo tempo em que apresentava a tradução da canção. Ao final dizia que sempre agiu com honestidade, solidariedade e justiça, e que podiam tê-lo vencido, mas não o haviam derrotado. Fazia ainda no final uma homenagem a Dona Edith, sua mãe. Terminamos de assistir àquele vídeo, que naquele momento nos pareceu uma carta de despedida e corremos para a casa de Luke. Fui abatido por um mal pressentimento de que nunca mais veria meu amigo vivo.