Belo Horizonte, 6 de março de 2006
Abri os olhos preguiçosamente enquanto o despertador do celular gritava ao lado do meu travesseiro. Os primeiros raios de sol invadiam a janela do meu quarto e traziam consigo a promessa de uma nova etapa da minha vida. Fiquei um tempo olhando para o teto do quarto criando expectativas, boas e ruins, sobre aquele dia tão importante. Era meu primeiro dia de aula na faculdade. Depois de um ano me matando de estudar, me equilibrando entre o último ano do ensino médio e as aulas no cursinho, eu havia conseguido passar para um dos cursos mais concorridos da universidade.
Muitos vinham me dizer que de agora em diante minha vida ficaria mais difícil, que eu teria que me matar de estudar e que eu seria forçado a crescer, o que só servia para me deixar apreensivo. Outros vinham dizer que eu ia curtir, que eu viveria bêbado e faria muito sexo, o que também me deixava apreensivo, porque não era muito da minha índole fazer isso e se um lugar tivesse a capacidade de nos modificar tanto, era para ter medo desse lugar.
Me vinham à cabeça também aquelas inseguranças comuns a todos que ingressam numa universidade, como o medo de não se enturmar e os tão temíveis trotes. Eu odiava passar por essas situações onde eu ficava muito ansioso. Meu organismo até reagia fisicamente mal a elas, com dores abdominais e insônia. Eu, que já sou uma pessoa bastante insegura normalmente, ficava extremamente nervoso em momentos como esses. Às vezes eu desejava dormir e acordar só quando passasse.
Enfim, respirei fundo, olhei as horas no celular e percebei que já tinha enrolado na cama o máximo que eu podia sem me atrasar. Com muita dificuldade, pulei da cama e fui tomar banho. Depois fui para a frente do espelho escovar dentes e me arrumar. Eu não me considerava bonito, mas mais por culpa da minha baixa autoestima e do meu desleixo do que por culpa da genética propriamente dita. Também não era feio, eu era normal, um adolescente de XVII anos normal: rosto magro, cabelos castanhos curtos, olhos sutilmente verdes, nariz e boca normais, sem grandes chamativos. De vez em quando usava também óculos de grau para ver de longe, o que me fazia aparentar ser nerd, mas eu não era, na verdade não compartilhava quase nenhum gosto com a chamada cultura nerd.
Depois de pronto, fui tomar meu café da manhã com o resto da minha família. Sabe aquelas cenas de novela, onde a família toda se reúne à mesa para tomar café da manhã, com comida suficiente para alimentar um batalhão e estão sempre todos sorridentes? Pois então, minha família não é assim. A gente come na cozinha mesmo, geralmente em pé por estarmos correndo atrasados de um lado para o outro, e só conversamos o essencial. Eu nunca havia parada para pensar que aquilo, vivermos na mesma casa como completos estranhos, era anormal. Para mim era o comum, na minha cabeça éramos como qualquer família real. Nos amávamos? Sim, mas nunca verbalizamos isso. Só fui perceber as conseqüências disso tempos depois...
Moramos eu, meu pai Olavo, minha mãe Teresa, e meus três irmãos: Tiago, mais velho que eu, e os gêmeos Caio e Laura, com quinze anos. A cena era típica: meu pai lendo o jornal comendo um pedaço de pão, Tiago saindo correndo para o estágio, as vozes dos gêmeos denunciando que estavam brigando em algum lugar da casa, e minha mãe cozinhando às pressas já com sua roupa impecavelmente branca de médica. Ela era uma daquelas mães melosas, que adoram te abraçar e te beijar, mas cuidava e se preocupava muito comigo e meus irmãos.
_Não deixe eles te passarem trote algum, ouviu? Se precisar peça ajuda a algum professor.
_Uhum._ concordei enquanto bebia meu copo de leite. Não que eu fosse realmente seguir seu conselho, eu não ia, mas era melhor mentir do que começar uma discussão sobre o assunto.
_Deus me livre de acontecer alguma coisa séria com você por lá. Você não imagina as barbaridades que os estudantes de medicina nos contam lá no hospital. Já teve gente até que morreu.
_Eu vou tomar cuidado, mãe.
Terminei meu café, lavei a boca, me despedi da minha mãe e desci pelo elevador. Fui caminhando até o ponto de ônibus, e a cada passo que eu dava, o nervosismo aumentava. O ônibus, que me levava direto para dentro da universidade, estava lotado de outros estudantes. Alguns estavam visivelmente nervosos, provavelmente calouros como eu, outros riam e debochavam, provavelmente veteranos escolhendo a dedo suas vítimas. O meu nervosismo só foi aumentando à medida que o ônibus ia chegando ao seu destino. Desci do ônibus junto com uma pequena multidão de estudantes e fui procurar meu prédio. Não tinha placas de indicação em lugar nenhum, então me deixei ser levado pela multidão de estudantes. Até que não foi difícil achar o tal prédio. Olhei para ele refletindo: eu ia passar os próximos cinco anos, sendo muito otimista, ali. Os cinco anos mais importantes da minha vida, aqueles que definiriam para sempre quem eu sou.
Tive que me concentrar para controlar minha tremedeira. Eu estava muito nervoso. Alguns estudantes caminhavam junto comigo em direção à entrada. Passei pela roleta e dei de cara com uma placa indicando que os calouros deviam se dirigir ao auditório, e lá fui eu. O local, onde devia caber umas quatrocentas pessoas, estava cheio, mas não lotado, pois o sinal ainda não tinha tocado. Me sentei mais ou menos no meio do auditório. Poucas pessoas cochichavam com seus colegas do lado, a maioria, como eu, estava calada devido ao nervosismo. Depois de alguns minutos, não parecia que ia chegar mais ninguém, então o diretor do prédio se posicionou de frente para nós em cima do palco e começou a falar.
_Sejam bem vindos. Primeiro eu gostaria de parabenizá-los por chegarem aqui, por terem conquistado um lugar entre os melhores...
E seu discurso continuou por um tempo, mas uma parte em especial me chamou a atenção:
_Sabem qual a diferença entre estudar numa faculdade e numa universidade? A diversidade. Não me refiro à diversidade de cursos, mas sim à diversidade de pessoas. Aqui vocês conhecerão gente dos mais variados credos, pensamentos, raças, sexualidades, culturas e até das mais variadas línguas, devido ao nosso programa de intercâmbio. O convívio com essas pessoas mudará quem você é e como você pensa. Pode ter certeza que a pessoa que você é hoje morre aqui, para dar lugar a uma outra, bem mais evoluída. Aqui vocês deixarão de vez a adolescência para entrar na vida adulta. Hoje é primeiro dia do resto das suas vidas.
Era o que todos vivam me falando nas últimas semanas. Parecia ser certo que eu sairia daquele lugar sendo outra pessoa. Aquilo me amedrontava. Se um lugar poderia me modificar daquela maneira, eu deveria temer aquele lugar, certo? Mas e se fosse isso que eu precisasse, uma mudança na minha vida? Não que pudesse reclamar muito da minha vida. Eu tinha meus amigos (poucos, mas tinha) e meus pais me davam uma vida confortável. Mas era como se alguma coisa estivesse errada. Eu não era feliz. Eu não era daquelas pessoas tristes, depressivas, eu só não me sentia feliz. Sim, eu tinha momentos de felicidade, mas eram justamente só momentos. Eu queria aquela coisa duradoura que eu tanto lia em livros ou via em filmes. Eu queria conseguir dormir com um sorriso sincero no rosto. Será que era aquele lugar, será que era aquele prometido “novo eu” que me traria essa felicidade que eu tanto desejava?
Lógico que isso eram coisas que eu pensava e guardava só para mim. Eu sempre fui retraído, ensimesmado, não gostava de falar com ninguém sobre o que se passava na minha cabeça. Eu não gostava de deixar as pessoas entrarem na minha mente e me conhecer. Eu não queria que elas descobrissem meus segredos... Eu não queria que as pessoas fizessem parte da minha vida desta maneira. Eu tinha muito defeitos, mas esse era de longe o maior deles. Ele era a razão da minha infelicidade. E agora, com aquele discurso do diretor, eu me enchia de esperança. Será que aquela seria a grande virada da minha vida?
A frase com que o reitor terminou seu discurso me marcou pelo resto da vida:
_E eu acredito que os próximos cinco anos que vocês passarão aqui serão os melhores das suas vidas.
Sorri sem motivo. Alguma coisa dentro de mim dizia que eu seria muito feliz naquele lugar.
O diretor fez um sinal como se nos liberasse e todos se levantaram. Foi quando eu o vi pela primeira vez. Aliás, todos viram, porque ele era uma daquelas pessoas que são sempre notadas. Parecia um anjo, uma entidade etérea. Seus cabelos eram extremamente loiros e charmosamente bagunçados. Seus olhos eram de um azul cintilante, e se destacavam no meio de qualquer multidão. Seus traços eram finos, perfeitamente simétricos. Sua pele era muito branca, mas tinha uma aparência saudável, e contrastava com seus lábios vermelhos suculentos. Antes de se levantar ele estava sentado num dos primeiros lugares. Acho que ele sentiu que era observado e seus olhos correram até achar os meus. Foi como se pudesse ver toda a dor do mundo naquele olhar. Era uma tristeza profunda, quase um pedido desesperado de socorro. Que garoto era aquele?
Ao despertar do meu transe e perceber que fui pego olhando para outro cara, rapidamente abaixei a cabeça, envergonhado. Não teve um momento que eu me descobri gay, eu sempre soube que era diferente dos outros meninos, não tinha o mesmo gosto que eles para brincadeiras e esportes. Ao entrar na puberdade, a coisa se tornou mais sexual, digamos assim. Eu entendi o que queria dos meninos: sexo. Mas eu sempre acabava me apaixonando por meninas. Nada sério, até aquele momento, nunca tinha namorado ninguém. Acho que foi isso, me apaixonar por meninas, que me deu força para sufocar meus desejos homossexuais. Eu fui criado numa família muito tradicional, onde a homossexualidade é tratada como uma doença que pode ser curada através da negação. Lógico que só eu cheguei a essa conclusão anos mais tarde, mas já negava meu desejo por meninos desde os meus onze, doze anos. O meu plano era achar uma garota bacana, me casar com ela e ter filhos, uma vida tranqüila pelo resto da vida. Pensando nisso hoje, depois de tudo o que aconteceu, parece uma tremenda idiotice, mas na época parecia o plano perfeito e, pelo menos até aquele momento, eu pretendia segui-lo.
Vocês já devem ter visto a relação óbvia que há entre minha constante infelicidade e a negação da minha homossexualidade. Era óbvio mesmo, mas eu não via. Ou via e fingia não ver...
Só voltei a levantar a cabeça quando tive certeza que o garoto loirinho já tinha ido embora. Respirei aliviado e pedi a Deus que ele fosse de outra turma. Seria difícil ficar evitando aquele garoto pelos próximos quatro anos. Ao caminhar entre as fileiras de cadeiras do auditório, a essa altura quase vazio, notei uma garota de cabelos castanhos claros dormindo toda desajeitada numa cadeira. Fiquei com pena, engoli a minha timidez e a cutuquei para acordá-la. Ela se levantou num sobressalto, olhando assustado em volta.
_A palestra já terminou._ falei.
Ela demorou mais alguns instantes para digerir a informação, e quando fez, soltou um exagerado bocejo.
_Ai, que cara chato!
Ri do seu aparente mau humor.
_Ele nos liberou por hoje, aula só amanhã.
_Amém, preciso dormir._ falou se levantando e pegando sua mochila, que estava jogada aos seus pés.
Ela era bonita, mas claramente pouco vaidosa. Seu cabelo estava todo desarrumado e preso num rabo de cavalo mal feito. Tinha um rosto forte, mas nem por isso pouco feminino. Sabe quando de cara você já simpatiza com a pessoa? Pois é, foi assim com ela. Não tem explicação, não teve uma conversa animada onde descobrimos interesses em comum. Foi uma simpatia gratuita.
_Bernardo._ falei me apresentando.
_Alice._ respondeu me estendendo a mão.
Sorri para ela, que não cedeu, e continuou com cara fechada.
_Pare de mostrar os dentes, eu não vou dar pra você.
Tomei um susto com suas palavras e meu sorriso se desfez na hora. Ela era bem direta.
_Até amanhã._ falou e saiu do auditório antes que pudesse formular uma frase para respondê-la.
Ali começava uma das minhas grandes amizades, daquelas que levaria para a vida inteira.
Saí do auditório e fui para o ponto de ônibus. Não demorou muito tempo para eu notar o mesmo garoto loiro lá também. Ele me viu primeiro e ficou me encarando, mas sem demonstrar nenhuma emoção. Desviei o olhar e fiquei olhando para o nada, fingindo que ele não estava ali. Era só o que me faltava, aquele cara sabia que eu gostava de meninos e agora ia fazer da minha vida um inferno. Não ficamos muito naquilo porque o ônibus chegou menos de cinco minutos depois. Suspirei aliviado, mas quando olhei para trás o garoto estava subindo no ônibus também. Pronto, agora eu estava ferrado. Tentei ignorar sua presença, passei a roleta e fui para a parte de trás do veículo, que estava lotado. Escorei numa das barras próxima à porta traseira e fiquei o observando pelo rabo de olho. Ele ficou na parte da frente, longe de mim. “Pelo menos isso”, pensei. Depois de um tempo, quando já chegávamos à zona sul, ele deu sinal para descer. Ele podia ter saído pela porta do meio, era a mais perto dele, mas ele fez questão de sair pela porta de trás, passando por mim. Prendi a respiração e olhei para o outro lado fingindo não ter nada a ver com a história. O ônibus parou e a porta abriu, mas antes de sair, sem me olhar, ele falou com uma linda e melodiosa voz:
_A propósito, meu nome é Eric.