Do lado de fora da janela do meu quarto, Belo Horizonte já anoitecia sem eu perceber. Havia perdido completamente a noção do tempo. Eu havia passado a tarde inteira deitado na minha cama encarando o teto, ou melhor, olhando para o nada, perdido em pensamentos.
Depois daquele beijo eu me sentia completamente perdido e sem chão. Todos os meus planos para o futuro foram arruinados e todos os meus maiores medos se tornaram assustadoramente possíveis de acontecer. Não foi necessariamente o beijo que me deixou assim, mas o que ele despertou em mim: a vontade de mais. Eu nunca havia sentido tanto tesão na minha vida, foi como se o meu corpo inteiro estivesse em chamas. E eu queria mais, eu queria muito mais de Eric.
Isso era terrível, pois jogava por terra todos os meus planos de um dia me casar com uma mulher e ser feliz com ela. Como ser feliz ao lado de uma pessoa que nunca iria conseguir satisfazer meus desejos? Sim, porque com aquele beijo eu tive certeza que mulher nenhuma poderia me dar aquilo. Como fingir que está tudo bem por anos se por dentro aquele desejo me corrói como o mais feroz dos ácidos? Como levar uma vida heterossexual se eu era gay? Sim, porque se algum dia eu duvidei, agora eu tinha certeza, eu era gay, era daquilo que eu gostava.
E o que iria fazer agora? O que faria da minha vida? Me assumir e assumir uma vida gay estava fora de cogitação. Mas viver constantemente insatisfeito e infeliz era o eu queria para mim? Justo eu que tinha tanta sede de ser feliz e ficar em paz comigo mesmo? O meu estado de catatonia durante aquela tarde foi em razão disso, das dúvidas em relação ao futuro. Eu sempre tive na minha cabeça um plano muito certo do que fazer da minha vida, o que acabou guiando a escolha da minha futura profissão e até minhas relações pessoais, e de repente isso me foi tirado. Eu não tinha a mínima idéia do que fazer. Pela primeira vez na vida, eu não conseguia visualizar meu futuro. Era tudo incerto. E aquela incerteza me aterrorizava.
Lembro que em um certo ponto da tarde eu comecei a chorar. Chorei silenciosamente por horas porque era meu único meio de desabafar. Eu tinha me fechado de tal modo, que não havia ninguém com quem eu pudesse conversar a respeito. Talvez Alice, mas eu a conhecia há muito pouco tempo, não tinha certeza se ela era confiável. Talvez Eric, ele poderia me entender, mas eu tinha medo de cair em tentação novamente e piorar ainda mais a minha situação. Aliás, uma das únicas decisões que tomei naquele tarde foi aquela: evitar Eric a todo custo. Eu não confiava no meu corpo perto dele, eu não sabia se poderia resistir à proximidade.
Dormi vencido pela exaustão mental e só fui acordar no outro dia, sábado, pela manhã. Foi outro dia morto para mim. Depois daquilo tudo eu não tinha ânimo para fazer nada, nem mesmo ouvir música ou ir ao cinema, dois dos meus passatempos favoritos. Passei o dia jogando qualquer jogo no computador, mas sempre com minha cabeça ocupada com os mesmos pensamentos. Tudo mudou no meio tarde, quando meu celular tocou. Algum veterano deixou ele com o porteiro do meu prédio antes de eu chegar do trote no dia anterior. Era Alice, tínhamos trocado números durante a semana. Suspirei fundo, incerto se estava pronto conversar com ela, já que ela é do tipo que pessoa que pega as coisas no ar. Mas acabei me decidindo por atendê-la:
_Alô.
_Nossa, que voz é essa?_ falou.
_Estava dormindo e você me acordou._ menti.
_Preguiçoso. Escuta, vai comigo na festa, né?
_Que festa?
_Que festa? Que mundo você vive? Não prestou atenção nos veteranos falando da festa de recepção aos calouros?
_Aquela festa? Depois do que me fizeram ontem você acha que eu vou aparecer lá?
_Ah, pára de ser chato, foi engraçado.
_Engraçado porque não foi com você!_ falei verdadeiramente bravo e ela riu.
_Aliás, como você voltou para casa?
Nunca eu poderia falar a verdade, que foi com Eric, ela não me deixaria em paz o resto da vida por causa disso.
_Uma senhora bondosa me deu carona._ menti.
_Viu? Não foi tão ruim assim no fim das contas.
“Você nem imagina” pensei.
_De qualquer forma, eu não vou à tal festa.
_Por que não?
_Porque eu não quero._ falei seco.
_Se você não for vai ser pior.
_Como assim?
_Vai ficar parecendo que você ficou ofendido com a brincadeira de ontem.
_Mas eu fiquei mesmo!
_Certo, mas se eles souberem disso, você vai ficar marcado o resto da vida com isso. Se fingir que levou numa boa, vão esquecer rápido e de brinde você vai parecer o cara mais legal do mundo, o que, cá entre nós, é uma grande mentira.
Apesar do tom deboche, ela tinha razão. Eu era obrigado a ir àquela festa, caso contrário eu seria conhecido pelo resto da vida como “aquele que não agüenta brincadeiras”. Eu tinha que ir, e ir com o meu melhor sorriso.
_Ok, eu vou.
_Eba! Vai ser no próprio prédio da faculdade. Tem alguém aí na sua casa para nos levar?
_Essa conversa toda foi arranjar uma carona?
_Foi, ou você achou que eu gostava tanto assim da sua companhia.
_Puta!
_Viado.
Fiquei em silêncio por alguns milésimos de segundo digerindo a informação. Ela não estava me insultando, era uma brincadeira, mas eu a senti bater lá no fundo e doer. Eu estava preparado para ouvir essa palavra, porém de forma bem mais agressiva, pelo resto da vida?
_Vou pedir meu irmão para nos levar._ emendei o mais depressa possível para ela não perceber meu ato falho.
_Certo, passe aqui lá pelas seis.
_Certo, tchau.
_Tchau, e vê se melhora esse humor, porque se acha que eu caí nessa de que você acabou de acordar está muito enganado._ e desligou.
Ri sozinho tentando descobrir se ela era muito esperta ou eu era muito transparente. Talvez os dois.
Depois de insistir um pouco, Tiago concordou em nos levar para a festa. Minha relação com ele era boa, mas nada extremamente carinhoso. Podemos dizer que somos amigos. Ele tinha 23 anos e tinha acabado de se formar em direito. Em aparência ele tinha saído mais parecido com meu pai, era mais forte, grande, mas não necessariamente musculoso. Ao contrário de mim, era bastante expansivo e extrovertido, porém pouco simpático. Talvez por causa dessas diferenças nos déssemos bem, um sabia respeitar quando o outro não queria companhia. Ele, que me conhecia muito bem, percebeu que aquele era um daqueles momentos. Fomos para a casa de Alice no mais total silêncio e estava muito bem assim.
Estou citando esse momento porque, durante aqueles minutos calados, foi a primeira vez que pus a pensar “e se ele soubesse que eu sou gay?”. Nas próximas semanas isso viraria um exercício recorrente com todos à minha volta, mas Tiago foi o primeiro. Qual seria a sua reação? Iria me rejeitar ou me aceitar? Por mais que eu quisesse acreditar na segunda opção, acho que a primeira combinaria mais com ele. Tiago sempre foi o típico macho-alfa, o líder, o pegador, devia ter umas dez namoradas espalhadas por aí. Apesar de ouvi-lo contar piadas sobre gays, nunca vi aquele traço de homofobia nele. Tiago parecia fazer o tipo “nada contra, contanto que não seja na minha família”, e aí estava o problema. Isso me fazia duvidar sobre sua reação, mal eu sabia que ela seria a mais inesperada entre todos...
Pegamos Alice na sua casa, que era relativamente próxima à minha e fomos para a festa. Chegamos um pouco depois das seis da tarde e a festa já estava animada. Todos com seus copos cheios de cerveja na mão. Alguns já assustadoramente bêbados. Vimos alguns rostos conhecidos ao entrar, entre eles João, o meu algoz do dia anterior. Ao me ver ele já foi rindo e correndo para mim. Suspirei fundo, e Alice me deu um beliscão, como se para me lembrar de sustentar um sorriso, o que fiz.
_Meu calouro favorito!_ falou me abraçando, obviamente bêbado.
_Olá._ falei sem jeito.
_E como voltou para casa ontem? A gente ia te buscar, mas você já tinha ido.
_Uai, a idéia não era pedir carona? Então, pedi e ganhei._ respondi com audácia e ele sorriu.
_Você não ficou bravo com a gente, né?
_De jeito nenhum._ brinquei _Levei na esportiva. E além do mais, vou poder me vingar nos calouros do próximo semestre.
_É assim que se fala!
Ele passou o braço sobre meus ombros, me virou para a área onde a maioria das pessoas estava concentrada e gritou:
_Gente, esse é o Bernardo. Ele é o cara!
Todos uivaram, igualmente bêbados, em resposta. Devo ter ficado da cor de um tomate devido à vergonha, mas tentei sorrir. João me entregou um copo de cerveja e falou no meu ouvido, como se não quisesse que ninguém mais ouvisse:
_Eu quero te ver bem bêbado hoje.
Me arrepiei inteiro enquanto o assistia se afastar com um sorriso afastado. Só ali fui perceber que João tinha segundas intenções comigo. Era só o que me faltava mais um cara com quem me preocupar, e era bonito ainda por cima! Virei o copo de cerveja de uma vez.
_Uai, você não falou que não bebia?_ perguntou Alice.
_Uma hora eu iria ter que aprender.
_Ponto pra você!
O gosto da cerveja era horrível, mas nem liguei, qualquer coisa com a promessa de aliviar minha cabeça era muito bem-vinda. Alice já foi nos enturmando a uma rodinha de conversa de colegas nossos de sala. Foi aí que conheci Pedro, aquele que viria a ser, junto com Alice, meu melhor amigo. Ele era alto, bronzeado e cabelos num tom entre o loiro e o castanho. Estava usando regata e bermuda, então pude perceber que ele tinha um corpo legal, todo definido, me parecendo ser bem atlético. Ele era a alegria em pessoa, ria e brincava com todos. Não nos tornamos amigos ali, logo de cara, mas ele me pareceu ser uma daquelas pessoas que é bom de se ter sempre por perto, para os bons e maus momentos. E isso ia se provar uma verdade ainda naquele dia.
Em certo momento vi Eric e Rafael chegando juntos. Para variar, claro que eu morri de ciúme. E indignação. Num dia me beija e no outro já tá com outro cara? Novamente repito que nada indicava que Rafael e Eric pudessem ser mais do que amigos, a não ser é claro minha cabeça. Talvez por já estar um pouco fora de mim (descobri naquela ocasião que sou fraco pra bebida), não desviei o olhar quando Eric me viu o encarando. Parecia um daqueles jogos infantis de ficar encarando o outro para ver quem desiste primeiro. Alguém chamou a atenção de Eric e ele foi o primeiro a desviar o olhar. Só uma coisa passava pela minha cabeça: eu precisava ter mais daquele beijo, eu estava viciado em Eric.
Tomado pela coragem que a bebida me emprestou, saí disfarçadamente da rodinha de conversa onde eu estava, e olhei bem para Eric antes de entrar em um dos corredores de sala de aula. Torci para que ele tivesse entendido o recado e viesse atrás de mim. Eu não estava raciocinando direito, agia por impulso, como um viciado que faz tudo para obter sua droga. Parei num corredor escuro e deserto, encostei minhas costas na parede e fiquei esperando por ele, que não tardou a aparecer. Ele parou de frente para e ficamos nos encarando em silêncio, contemplando a respiração um do outro.
_Por que você me beijou?_ perguntei enfim.
_Por que você fugiu?
_Porque eu não posso fazer isso com minha vida.
_Então, por que está aqui agora?
_Porque é o que meu corpo mais pede nesse momento.
Sem pedir permissão, mais uma vez, ele avançou sobre mim num beijo. Não foi um beijo delicado e temeroso como no dia anterior. Foi um beijo agressivo, cheio de desejo. Eu segurava sua nuca com as duas mãos, o puxando para cima de mim ainda mais, como se tivesse medo de separar nossas bocas. Não era mais sangue que corria pelas minhas veias, era puro tesão, e exalava por cada um dos meus poros.
Só nos soltamos ao ouvir um barulho. Ele olhou assustado para os lados, e ao identificar o barulho como os passos de alguém, saiu correndo na direção contrária. Eu, ainda atordoado com o efeito da bebida, fiquei lá na mesma posição, tentando botar a cabeça em ordem e entender o que estava acontecendo. Então, apareceu alguém e ao me ver se aproximou. Só quando chegou bem perto, vi que era João.
_Ora, ora, ora, veja só quem eu encontrei perdido.
_Não, não posso ficar perto de você..._ falei meio grogue, meio sóbrio.
_E por que não?_ falou me segurando me impedindo de ir embora.
_Porque eu não estou em pleno controle das minhas atividades. Posso fazer coisas das quais eu vou me arrepender muuuuuito.
_Quais, por exemplo?_ falou maliciosamente.
_Me deixa ir...
_Não._ falou me prensando contra a parede _O que você quer que eu faça com você?
Seu rosto está muito próximo ao meu, nossas bocas estavam a milímetros de distância, o beijo foi inevitável. Não vou falar que foi ruim, não foi, de jeito nenhum, mais alguma coisa parecia errada. Eu não devia estar ali, não devia estar fazendo aquilo, principalmente com ele. Essa percepção me deixou mais sóbrio, ao menos o suficiente para afastá-lo.
_O que foi?_ perguntou.
_Eu preciso mesmo ir.
_De jeito nenhum, fica aqui comigo, está muito gostoso.
_Me deixa ir, cara._ pedi quase implorando, mas ele me segurava.
_Não, você é muito gostoso para eu te deixar ir.
Ele então começou a beijar meu pescoço, enquanto eu tentava desviar e fugir. Eu lembro de ficar repetindo para ele parar e me deixar ir embora. De repente um vulto passou rapidamente por mim e quando olhei, vi João caindo no chão gemendo com a mão na boca. No outro lado estava Pedro, meu novo amigo, em posição de ataque com uma expressão raivosa no rosto. Pedro tinha socado João e o mandado longe. Ele partiu pro ataque novamente, mas teve que se concentrar em me segurar quando eu perdi os sentidos e fui ao chão. Juntou-se o álcool e aquela confusão sentimental (e hormonal) na minha cabeça, e senti o mundo girar. Pedro me ajudou a levantar passando meu braço sobre meus ombros, estava praticamente me carregando.
_Que nojo dessa bicha nojenta te atacando enquanto você não tinha condição de se defender._ falou com um tom de asco na voz, bem diferente do Pedro brincalhão de minutos atrás _Se eu pudesse eliminava todas essas bichas do mundo!
Grunhi em resposta antes de desmaiar em seus braços.