Minha cabeça doía muito, uma dor insistente e pulsante. Abri os olhos vagarosamente e assim que vi a luz do dia, a dor aumentou bastante de intensidade. Gemi, fechei novamente os olhos e virei para o lado.
_Que vergonha.
Ao reconhecer a voz, abri novamente o olho com cautela para ter certeza de quem se tratava. Sentada numa cadeira ao lado da minha cama, Alice me olhava com braços cruzados e um leve sorriso no rosto. Fechei os olhos novamente, a claridade estava me matando.
_O que você está fazendo aqui?_ perguntei com a voz meio arrastada de sono.
_Eu não queria perder esse momento tão especial da sua vida.
_Que momento?
_Sua primeira ressaca.
_Vai se fuder._ respondi.
_Esse é o espírito!
_Fala baixo!_ pedi quando sua voz ecoou de um jeito doloroso na minha cabeça e ela riu.
_Isso deve ser um novo recorde, como você conseguiu ficar tão bêbado, tão rápido?
_Estômago vazio.
_Burro!
_Não grita!
_Não estou gritando.
Fui abrindo os olhos novamente bem devagar para ir me acostumando com a claridade. Alice me ofereceu um copo de água e um remédio, que eu imaginei que seria para cuidar da minha ressaca.
_O que aconteceu?_ perguntei.
As lembranças da noite anterior iam voltando aos poucos.
_Não sei. O Pedro disse que achou você passando muito mal num canto, me chamou e quando fui te ver você já estava desacordado. Pedi um amigo meu de medicina que estava por lá para dar uma olhada em você, ele disse que não era nada, só uma queda de pressão típica de quem não sabe beber. Então, o Pedro me ajudou a te colocar dentro de um táxi e te trouxemos para casa.
Então foi tudo voltando à minha cabeça: a primeira cerveja, o beijo de Eric, o beijo de João, a intervenção de Pedro. Meus olhos se arregalaram quando me dei conta do turbilhão de coisas que tinha acontecido comigo. Eu nem conseguia direito em me concentrar no que pensar ou no que sentir. Tesão pelo beijo ardente de Eric? Humilhação pelo jeito como João tentou abusar de mim? Medo pelo que Pedro poderia ter interpretado da cena que viu? Acho que aquela confusão passou nos meus olhos, pois Alice percebeu que alguma coisa estava errada.
_O que aconteceu, Bernardo?_ falou de um jeito amistoso e prestativo, bem diferente do seu habitual sarcasmo.
_Como assim?_ tentei disfarçar.
_Tá bem óbvio que aconteceu mais coisa que você não quer me contar.
_Alice, eu...
_Chega, ok._ ela falou parecendo perder a paciência _Quando você vai começar a confiar em mim? Ainda não percebeu que eu te quero bem? Que quero te ajudar a resolver seus problemas? Mas se você continuar se fechando assim, essa amizade não vai pra frente, porque não existe amizade sem cumplicidade.
Suspirei fundo com seu desabafo. Ela estava certa. Já tinha se mostrado confiável o bastante para eu me abrir, mas alguma coisa dentro de mim me impedia de falar. Era como seu ao falar do que se passava comigo em voz alta, tudo se tornava realidade. Só que eu não agüentava carregar esse peso sozinho, eu precisava de um ombro amigo.
_Você tem razão, me desculpe.
_Então?
_É complicado para mim, falar sobre isso, entende?
_Devo deixar mais claro do que já está que estou ao seu lado e não te recriminarei por nada?
_Você meio que já sabe, né?_ falei sorrindo meio encabulado.
_Você é meio transparente._ falou retribuindo o sorriso.
_Mas o buraco é mais embaixo...
E quando eu ia começar a falar, minha mãe entrou no quarto como um furacão, e seu humor não parecia ser dos melhores.
_Que vergonha, meu Deus! Nunca pensei que veria um filho meu chegar em casa desmaiado de bêbado._ ela falou nervosa colocando a mão na minha testa para ver se eu estava febril _Nem seu irmão fez isso comigo!
_Não grita, mãe..._ pedi manhoso me afundando no travesseiro.
_Devia fazer muito pior do que gritar! Você está de castigo até segunda ordem, da casa pra faculdade e da faculdade pra casa, sem desvios. Nem nos fins de semanas, se quiser encontrar seus amigos, eles que venham aqui.
_Ok,mãe._ concordei, pois não adiantava discutir enquanto ela estivesse naquele estado de humor.
_Eu devia ter te impedido de beber..._ falou Alice com uma expressão de deboche que só eu reconheci.
_Não, minha querida, você não teve culpa_ respondeu mamãe toda carinhosa _Conheço o meu filho bem o suficiente para saber que ele não teria bebido se não quisesse e que ninguém conseguiria impedi-lo se ele realmente quisesse beber. Você foi um anjo se preocupando e trazendo ele para casa.
Alice fez uma cara de quem estava tímida e agradecida pelo elogio, mas eu, que já a conhecia bem o suficiente, sabia que ela estava fingindo e possivelmente gargalhando por dentro. Minha mãe voltou a se virar brava para mim:
_Estamos indo almoçar fora, suponho que você não queira ir.
_Não estou bem ainda._ respondi.
_Que vergonha!
_Mãe...
_Sem “mãe”! Chega! Mais tarde você esquenta qualquer coisa no microondas._ depois virou-se para Alice de novo _Você cuida para ele não fazer mais nenhuma idiotice?
_Se eu conseguir impedi-lo..._ respondeu com um sorriso cínico no rosto.
_Obrigada, querida.
E saiu do quarto sem se despedir de mim. Não foi a primeira vez que levei uma bronca da minha mãe, então não me senti mal com aquilo.
_Você está encrencado, mocinho._ falou Alice, desta vez sorrindo descaradamente.
_E você é falsa!
_E você tem segredos para me contar, não desvie do assunto.
_Vamos esperar eles saírem de casa.
_O seu rabo está tão preso assim?
Nem respondi, voltei a fechar os olhos tentando descansar um pouco. Alice respeitou isso e ficou em silêncio me esperando. Quando ouvimos a porta bater, depois de algum tempo, ela não esperou nem um segundo para começar:
_Então?
Por onde começar? Por “eu sou gay”, óbvio, mas era tão difícil dizer aquilo em voz alta... Era como desistir oficialmente de tudo aquilo que sonhei como uma vida perfeita para mim. Mas eu tinha que dizer, eu tinha que soltar aquilo, eu tinha que dividir o peso com alguém.
_Eu não posso falar por você._ falou Alice _Tem que partir de você, se não você vai ficar preso nisso para sempre.
_Eu... Eu... Eu gosto de meninos.
Saiu fácil, quatro palavrinhas simples, mas foi um alívio enorme. Em nenhum momento eu olhei para Alice. Ela me olhava, mas eu encarava o teto do meu quarto. Dizer isso olhando nos seus olhos já era demais para mim. Eu tinha vergonha daquilo. Naquele momento, eu já aceitava que era gay, mas eu não me aceitava, não via aquilo como uma coisa normal. Na minha cabeça ainda era errado, eu ainda uma aberração da natureza.
_Que bom, eu também gosto._ respondeu me fazendo rir.
_Obrigado por levar numa boa.
_Por algum momento você chegou a achar que eu era homofóbica?
_Não, mas mesmo assim, obrigado.
_De nada. Então, sou a primeira?
_A saber?_ ela concordou com a cabeça _Sim. Bom, tecnicamente você é a quarta, logo depois de Eric, João e Pedro.
_O QUE?!
_Não grita!_ pedi afundando novamente a cabeça no travesseiro.
_Como assim?!_ perguntou com o tom de voz bem alto.
_Como eu disse, é tudo bem complicado.
Calmamente, expliquei tudo a ela, desde as minhas trocas de olhares com Eric até eu desmaiar no colo de Pedro. Ela ouviu tudo com uma expressão estupefata, ela não imaginou que o problema estava num nível tão avançado. Quanto mais eu falava, mais eu ficava aliviado. Era ótimo poder desabafar com alguém. Mesmo que não tivesse um conselho para me dar, Alice já ajudava muito só ouvindo.
_Então, é isso._ falei ao terminar.
_Ok, ok, vamos por partes.
Ela se deitou na cama junto comigo e encarando o teto junto comigo, se pôs a falar novamente:
_Primeiro João. Ele não parecia ser tão escroto assim, parecia ser até bem gente boa. Com isso ele perdeu muitos pontos comigo. Tentando abusar de você quando você estava vulnerável... Ai, que nojo!
_Ele também não cometeu um crime..._ falei tentando aliviar.
_Porque não teve oportunidade! E por que está defendendo ele? Não vai me dizer que gostou, que quer mais?
_Não, de jeito nenhum. Ele não é feio, mas depois disso tudo não tem mais como nem olhar para ele.
_Aff, se eu vir ele na minha frente...
_Você não vai fazer nada. Deixa pra lá.
_Mas...
_Promete que não vai fazer nada? Por favor?
_Ah..._ ela bufou em conformação _Ok!
_Obrigado.
_Agora, sobre o candidato número dois, o senhor Pedro...
_Candidato a que? Não tenho nada com ele e pelo jeito nunca terei. Me pareceu bem um homofóbico.
_Uma pena ser tão bonito, mas idiota assim. Mas enfim, não é esse o ponto. Acho que ele não sabe de você.
_Mas se ele viu o João me agarrando.
_Exato, ele viu o João te agarrando e você indefeso. Tanto que ele te ajudou depois. Acho que você não precisa se preocupar com hostilidade vinda da parte dele. Porém, é recomendável que você não conte nada sobre suas preferências sexuais para ele...
_Tá louca, claro que não vou contar. Tô custando a contar para você.
_Te incomoda tanto assim ser gay?
_Claro, não é para incomodar?
Ela suspirou e balançou a cabeça negativamente.
_Esse assunto a gente deixa para outro dia, quando você não estiver debilitado numa cama. Voltando ao assunto, o candidato número três, Eric...
_Chegamos ao ponto crítico do problema.
_Sim. Você está apaixonado por ele?
_Não._ respondi com toda a sinceridade possível _Mas não sei definir exatamente o que sinto por ele, afinal. É uma espécie de encantamento, entende? Tipo, é mais do que tesão, mas menos do que amor.
_É bom?
_É ótimo!
_Então por que se privar disso?
_Porque é errado!
_Não é, isso é coisa que botaram na sua cabeça e você não vai ser feliz enquanto não tirar daí.
_Mas...
_Não tem “mas”, Bernardo. Eu entendo que isso é um fardo enorme para se carregar e que não passo nem perto de entender o que você passa, mas de uma coisa eu sei, ninguém consegue ser feliz sem estar bem consigo mesmo. E você não está, por isso você é infeliz.
_Quem disse para você que sou infeliz?
_Você tem uma certa tristeza estampada no olhar típica de quem não é feliz. Vamos dar exemplo extremo, o que você vê quando olha para Rafael?
Bufei em desagrado ao ouvir o nome dele.
_O que você enxerga no seu arquiinimigo?_ perguntou reforçando a ironia na última palavra.
_Sei lá...
_Ele parece feliz?
_Sim, eu acho...
_Porque ele se aceita como é!
_Você acha que ele é...
_Não foi isso que eu disse. SE, veja bem, SE ele for gay, não tem o menor problema com isso. Ele está em paz consigo mesmo e isto acaba se externalizando como felicidade. Se ele estiver mesmo brigando mesmo com você por Eric, está aí a razão para ele estar na sua frente.
_Eu não estou brigando com ninguém por ninguém.
_Não, só está brigando com você mesmo e, estatisticamente falando, isso não tem como acabar bem. Quando mais essa briga interna se prolongar, mais ferido você vai sair dela.
Quando ia lhe responder, ouvimos o som da porta se abrindo. Minha família tinha voltado do almoço.
_Bom, essa é minha deixa para ir embora._ falou se levantando _Até amanhã e, por favor, pense no que eu te falei. Pare de se preocupar com Pedro, João, Rafael e Eric. Comece a se preocupar consigo mesmo, pois essa é a batalha mais importante.
E foi embora.
Se eu dissesse que foi aquela conversa com Alice que mudou meu modo de encarar a vida e me fez aceitar minha homossexualidade, eu estaria mentindo. Mas foi com aquela conversa que eu comecei a olhar mais para dentro de mim. Foi com aquela conversa que percebi que minha felicidade passava necessariamente por me aceitar como eu era. Mas isso ainda era só o início de uma mudança de pensamento, antes de eu me aceitar gay, ainda era preciso encarar muitos demônios internos...