No domingo pela manhã, continuei deitado enquanto o Sol já aparecia alto lá fora. Se domingo já é considerado um dia morto, aquele mais ainda, pois as lembranças da minha primeira vez com Eric continuavam a ir e vir na minha cabeça. Eu temia a hora de encará-lo no dia seguinte.
Ele já tinha desistido de me ligar depois de algumas tentativas, nove para ser mais exato. Do fundo do meu coração eu esperava que já tivesse entendido o recado, mas era bem mais provável que ele só estivesse esperando para me confrontar cara a cara.
Alice havia ficado em minha casa me consolando durante toda a manhã de sábado e passei o resto do dia tentando me distrair ouvindo música e navegando na internet. Minha família estranhou o fato de eu ter chegado cedo, sendo que eu havia avisado que dormiria na casa de um amigo, mas inventei qualquer coisa e eles pareciam ter acreditado. Eu estava tão afundado na lama que uma mentira a mais ou a menos não iria fazer diferença.
Aquele domingo começou a mudar quando meu celular tocou em cima do criado mudo. Suspirei fundo pensando ser Eric. Peguei o celular para desligá-lo, mas estranhei quando vi um número desconhecido no visor. Podia ser Eric ligando de outro número para me enganar, mas nem pensei isso na hora, só atendi e me surpreendi com a voz do outro lado:
_Alô?
_Pedro?
_E aí, Bernardo, beleza?
_Beleza._ respondi ainda meio surpreso _Como você conseguiu meu número?
_Peguei com a Alice.
_Ahh, tá.
_Então, cara, eu e galera vamos beber um pouco aqui em casa, só pra relaxar, não tá afim de vir também, não?
_Ah, cara, não sei...
Eu não tava no clima para beber com meus colegas de sala. Aliás, não tava no clima para fazer nenhuma atividade social naquele domingo.
_Quando liguei pra Alice, ela mandou avisar que sua presença era obrigatória, você não tem opção.
_Ela disse é?_ falei rindo.
_Disse. Se eu fosse você vinha rápido, ela parecia falar sério quando ameaçou ir te buscar em casa se você não viesse.
Ela queria me distrair, me fazer esquecer dos meus problemas por alguns instantes. Talvez fosse bom.
_Ok, ok, me passa o endereço._ falei me dando por vencido.
_Isso aí!
E lá fui eu para a casa de Pedro. Eu ia tentar me divertir e me enturmar com meus colegas, mas eu ainda tinha dúvidas se queria desenvolver uma amizade com Pedro. Ele era homofóbico, e, por mais que eu estivesse tentando sufocar minha homossexualidade, eu tinha certeza que acabaria muito mal quando ele descobrisse. Por causa desse pensamento, decidi que o melhor a se fazer era manter uma distância segura de Pedro. Eu não seria frio com ele, o trataria como um colega como os outros, mas quando ele se aproximasse demais, eu daria um jeito de afastá-lo. Era o mais sensato a se fazer.
Ele morava numa espaçosa casa alguns bairros mais ao sul do que o meu. Apesar de grande, sua casa não era luxuosa ou ostensiva, era aconchegante, aquele tipo de casa na qual a gente imagina que moram pessoas de verdade e não aquelas saídas de telenovelas. Esse detalhe me chamou a atenção por dois motivos. Primeiro: aquilo combinava perfeitamente com a personalidade de Pedro e sua família (o que fui descobrir com o tempo), pessoas que subiram na vida sem nunca perder sua humildade. Segundo motivo: era numa casa daquelas em que eu me imaginava no futuro, cercado de filhos e netos que vinham visitar a mim e minha esposa todos os domingos. Sim, esposa. Eu tinha retomado o plano de casar-me com uma mulher. Eu estava decidido a nunca mais me relacionar com homens, nem mesmo por diversão, pois sabia bem agora que após o prazer vinha uma onda enorme de sentimentos ruins em relação a mim mesmo. Lógico que isso seria abandonado por mim mais tarde. Vocês perceberão com o correr da história que eu sou péssimo em cumprir minhas próprias resoluções.
Além de Pedro e Alice, havia mais dez dos nossos colegas de turma lá. Graças a Deus, entre eles não estavam Eric e Rafael. Nem tinha pensado na possibilidade (bem grande) de encontrar um deles lá. Acho que fiquei tão ansioso para esquecer meus problemas, que nem pensei que poderia estar indo de encontro a eles.
Cumprimentei a todos os presentes, pessoas que com quem eu só havia trocado pouquíssimas palavras, com exceção de Pedro e Alice. Sentei ao lado da minha amiga, que perguntou discretamente se eu estava melhor, e respondi que sim. Pedro fez questão de me incluir na conversa e logo eu fui me soltando, deixando a timidez de lado e participando ativamente do papo. Foi nessa nossa reuniãozinha que descobri que o principal motivo dessas reuniõezinhas era beber enquanto conversava, já que não podíamos fazer isso na faculdade. Lembrando das terríveis conseqüências da minha última tentativa de beber todo o álcool que meu corpo suportava, tentei ir devagar.
_Não tá bebendo por quê?_ me perguntou um dos meninos _Virou um garoto de Deus, agora?
Ri e fiquei sem jeito de responder. Pedro, se lembrando bem do que aconteceu, começou a falar para me salvar, mas Alice foi mais rápida:
_Porque eu não deixei ele beber._ respondeu séria, mas dando um certo tom de piada.
_Já deixou ela te por um cabresto?_ me perguntou.
_Ela na verdade é minha babá, sabe?_ respondi tentando fazer humor com aquilo.
_Ah é?
_Sim._ respondeu Alice _A mãe dele me deu a missão de zelar pela sobriedade dele.
Todos riram e eu respirei aliviado. Se eles insistissem para eu beber, eu acabaria cedendo, e, além de ganhar uma bronca histórica da minha mãe, eu poderia acabar falando ou fazendo alguma coisa que me denunciasse.
O papo se seguiu pelo resto da tarde, até que, com a maioria dos presentes já bem alegrinhos devido ao álcool, tocaram num assunto delicado.
_Já que estamos falando mal dos outros, deixa eu jogar mais um na roda._ falou um dos garotos _E aquele Eric?
Prendi a respiração ao ouvir seu nome. Eu e Alice trocamos um breve e cúmplice olhar.
_O que tem ele?_ ela perguntou.
_Aquilo é uma bichoooooooona!_ respondeu e todos caíram na risada.
Eu já estava oficialmente arrependido de ter ido lá. A impressão que eu tinha era que o meu estômago estava congelado, tamanho era o frio na barriga que eu sentia. Eu nunca havia percebido que Eric dava pinta, isso é, que o resto das pessoas percebia que ele era gay. E isso levantava uma dúvida cruel: se sabem do Eric, poderiam saber de mim também?
_Já viram o jeito que ele arruma o cabelo com a ponta dos dedos, todo delicado?
_E aquela voz afetada?
_Já falei com o Rafael para abrir o olho. Essa bicha tá se aproximando demais dele, quando ele menos esperar ela dá o bote._ falou Pedro.
_Uai, vai ver ele gosta da fruta também, vai saber...
E voltaram a rir. Alice me olhava esperando uma reação, mas eu permaneci calado. Lógico que ouvir aquilo doía, mas eu não podia me dar ao luxo de correr o risco de me descobrirem. Eu tinha que me calar, não importando o quanto isso fosse doer.
_Você são idiotas._ falou Alice. _Nunca conversaram com o garoto e tão aí rindo dele.
_Ah, deixa de ser mal humorada, Alice._ respondeu Pedro _Estamos apenas brincando.
_Isso não é brincadeira que se faça.
_Eu não concordo. Não vejo problema nenhum, não é Bernardo?
Fiquei olhando de Pedro para Alice, ambos me encarando esperando um posicionamento. Nem tinha muito o que pensar, tinha muita coisa em jogo.
_Também achei inofensivo. A gente não pode ficar tomando as dores de todo mundo.
_Assim que se fala!_ falou Pedro me forçando a bater em sua mão.
Alice me olhava com raiva. Tentei pedir desculpa com o olhar, mas ela desviou os olhos de mim.
_E mais,_ continuou Pedro _eles estão dominando o mundo, é melhor a gente abrir o olho.
E todos riram, menos Alice, que se levantou do chão revoltada.
_Bom, acho que o papo está muito ruim. Hora de ir embora.
_Ah, para com isso._ falou um dos meninos.
_Vamos, Bernardo?
Ela me olhou de jeito que parecia querer me fuzilar, fiquei com tanto medo que concordei em ir. Me levantei e comecei a me despedir do povo.
_Ah, qual é, vai na dela?_ perguntou Pedro.
_Tava falando sério quando disse que ela é minha babá._ falei tentando descontrair o ambiente, sem sucesso. _E tá ficando tarde, e vocês parecem estar esquecendo que amanhã temos aula.
_Tá, mas eu levo vocês em casa, tô com o carro do meu pai.
_Não,_ falou Alice _vamos de ônibus.
_Mas...
_Tchau, meninos. Vamos Bernardo._ e saiu me puxando pela mão.
Eu sabia que no momento em que saíssemos do campo de visão dos meninos, eu ouviria muito. E não estava errado:
_Que diabos foi aquilo?!_ perguntou Alice nervosa quando já estávamos na rua.
_O que?
_“O que”?! Não se faça de lerdo! Você e aqueles idiotas rindo do Eric.
_O que você queria que eu fizesse? Eu não podia defender ele.
_E por que não?
_Iam desconfiar de mim!
_Deixa de ser paranóico!
_Tá falando assim porque não é com você!
A conversa já tinha virado briga àquela altura.
_Eu sei, se fosse comigo eu já tinha tomado uma atitude, tinha parado com essa covardia.
_Não é covardia, é auto-proteção! Eu já falei que nunca mais foi ficar com nenhum cara, então pra que deixar que as pessoas saibam de um errinho de uma noite meu?
Ela riu debochada.
_Você acha mesmo que vai conseguir se manter “hétero”?_ falou fazendo sinal de aspas para a última palavra _Mesmo que você consiga nunca mais dormir com outro cara, o que eu duvido muito, você vai viver afogado num mar de infelicidade. Vai estar sempre sufocando os próprios desejos e se escondendo dos outros. Eu tenho pena da pessoa que você está tentando ser!
E assim ela saiu sem dar nem tchau em direção a um ponto de taxi. As palavras dela bateram fundo. E o que mais doía era que eu sabia que eram verdadeiras. Eu sabia que não conseguiria sufocar quem eu era, mas o medo das conseqüências me cegava e me fazia tentar, independente do que meu subconsciente dizia.
Peguei um ônibus ainda atordoado pelas palavras de Alice. Me machucava também ter brigado com ela. Ela era a única com quem eu podia contar naquele momento. Sem contar que ela foi a primeira, e até aquele momento a única, a gostar de mim por inteiro, sem meu disfarce. Eu não queria ficar brigado com ela. Assim que a visse daria um jeito dela me perdoar, mesmo eu não me arrependendo de ter me juntado a Pedro no achincalhe a Eric. Eu não tinha outra opção!
De tão concentrado em meus pensamentos, nem me lembrei de olhar quem era no telefone antes de atender:
_Alô?
_Finalmente consegui. Parece que está fugindo de mim
Era ele, Eric. Meu estômago voltou a ficar gelado. Parece que tinha sido combinado, de tão perfeito que foi seu timing. Respirei fundo e tentei me concentrar no que falar para ele.
_Oi Eric, tudo bom?
_Tudo e com você?
_Estou bem. Então... Você sumiu, né?
_Me desculpe, aconteceu tanta coisa.
_Mas não dava tempo nem de me acordar para dar tchau.
_Outra vez, me desculpe.
_Está tudo bem mesmo?
Suspirei. Aquela era a hora, não podia esperar por outra brecha.
_Não, não está. Aquilo tudo não me fez bem. Minha cabeça está uma bagunça. Eu não posso levar isso adiante.
_Mas...
_Tchau Eric e, de novo, me desculpe.
E desliguei sem esperar resposta. Como tirar um band-aid, quanto mais rápido você acaba com aquilo, menos doloroso é. Eu não estava orgulhoso das coisas que estava fazendo com Eric, mas era necessário. Eu não queria aquilo, eu não queria ser assim. Eu não queria que meus amigos rissem de mim pelas costas. Eu sentia muito pelo Eric, mas eu não me arrependia de nada. Depois de mim, ele foi a primeira vítima do meu medo.