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Os dias foram se passando e chegou meu último dia no hospital. O policial não apareceu e achei que ele tinha se esquecido de mim. O médico veio me ver depois do almoço e me liberou. Eu estava pronta para sair dali; era para eu estar feliz, mas não estava. Eu não tinha para onde ir, nem roupa para vestir.
Logo depois que o médico saiu, tomei um banho. Quando voltei para minha cama para tentar decidir o que faria, o policial chegou. Ele me trouxe minhas coisas que estavam comigo quando cheguei: minha carteira com meus documentos, quase mil reais em dinheiro, uma calça jeans e um par de tênis. Perguntei sobre meu celular e ele disse que provavelmente ficou no chão onde eu caí.
Ele me deu uma sacola que continha um conjunto de roupas íntimas e uma camiseta, dizendo que comprou para mim. Agradeci e fui ao banheiro me trocar. Quando voltei, ele pediu para eu me sentar, pois precisava conversar comigo, e assim eu fiz.
Ele explicou que demorou para voltar porque estava resolvendo algumas coisas. Contou que tinha se separado há pouco tempo e comprado uma casa para morar, já que deixou a outra para a ex-esposa e a filha. Disse que foi ao meu antigo colégio e confirmou o que eu havia falado: que eu era uma ótima aluna e sempre fui muito quieta.
Ele apresentou sua proposta: ele me daria um lugar para morar e me ajudaria nos estudos em troca de eu cuidar da casa dele, já que ele não tinha tempo por causa do trabalho. Perguntei se ele estava me propondo morar com ele, e ele confirmou, mas pediu para eu não pensar besteira. Ele ficaria em um quarto e eu em outro; eu só teria que fazer os trabalhos domésticos e estudar, só isso.
Perguntei por que ele estava fazendo aquilo. Ele disse que me ver quase morta nos braços dele mexeu muito com ele, que torceu muito para eu sobreviver. Ficou feliz por eu ter conseguido ficar viva e bem. Ele ficou intrigado ao saber que eu era de uma família rica, o que o deixou curioso. Quis saber minha história e, depois de ouvir, resolveu me ajudar. Ele disse que, como também precisava de ajuda, se eu aceitasse, poderíamos ajudar um ao outro.
Sinceramente, fiquei desconfiada, mas não tinha muitas opções e aceitei. Ele então perguntou se eu usava drogas, e eu disse que não, que nem cheguei a experimentar. Ele disse que me levaria para sua casa, mas que, se eu pisasse na bola, me entregaria ao chefe dele. Concordei, achei justo.
Depois daquela conversa, minha vida mudou totalmente de novo. Minha desconfiança sumiu com o passar do tempo; Marcos era uma pessoa boa e realmente só queria me ajudar. A casa dele era simples, mas eu tinha um teto, um lugar para viver sem precisar fazer coisas erradas. Eu fazia tudo dentro de casa; Marcos teve que me ensinar algumas coisas porque eu não sabia cozinhar muito bem ainda. Jéssica tinha me ensinado algumas coisas, mas outras eu ainda não sabia.
Voltei a estudar. Marcos comprou algumas roupas para mim, mas eram poucas, pois ele havia feito um empréstimo para completar o dinheiro que tinha para comprar a casa, e seu salário era contado. Ele teve que vender o carro e comprou uma moto usada, até me ensinou a pilotar.
Nos três primeiros meses, trabalhei meio período em uma padaria na rua onde morávamos, mas Marcos pediu para eu parar e focar apenas nos estudos, pois, se quisesse ir para uma universidade, teria que ter as melhores notas possíveis para ganhar uma bolsa integral. Marcos era como eu, meio calado, e não falávamos muito sobre assuntos pessoais, mas eu sabia que ele tinha uma filha que estudava fora do Brasil e, não sei por que, mas não falava com ele.
Nas férias do meio do ano, dei uma volta perto da favela onde vivia para ver se encontrava alguém conhecido e saber notícias dos meus amigos, mas não vi ninguém. Não cheguei muito perto por medo de arrumar problemas; não queria arriscar a oportunidade que tinha.
Marcos ficava pouco em casa; praticamente só ia jantar, tomar banho e dormir. Ele me falou que era policial federal há mais de 20 anos e que estava trabalhando em conjunto com a polícia civil há seis na guerra contra o tráfico, mas que ficava mais na sede da polícia civil do que nas ruas. Disse que, no dia em que me conheceu, foi uma das poucas vezes em que subiu uma favela.
Eu continuava focada nos estudos; minhas notas eram perfeitas. No colégio, eu ficava só no meu canto, não falava com ninguém, apenas cumprimentava. Em novembro, Marcos estava bem animado. Ele me disse que a filha dele iria voltar para o Brasil nas férias e que queria muito vê-la para resolver um mal-entendido que fez com que ela parasse de falar com ele. Ele estava com muita saudade dela e até me mostrou uma foto; era uma menina morena muito bonita, provavelmente no início da adolescência. Pelo jeito, ele amava muito a filha.
Eu já tinha ganhado a confiança dele; ele deixava dinheiro para eu fazer compras, eu que fazia o depósito da pensão da filha, e era uma boa grana. Eu já saía na moto sozinha. Marcos disse que assim que visse que eu sabia pilotar o suficiente para ter uma carteira, arrumaria uma para mim. E assim ele fez. Não sei como, mas ele era policial e só me levou a uma autoescola uma vez. Eu assinei uns papéis e pronto. Ele disse que isso era errado, mas tinha certeza de que eu sabia pilotar melhor que ele, então me ajudou.
No último final de semana de novembro, numa quinta-feira à noite, Marcos me falou que na terça da semana seguinte a filha dele estaria de volta. Ele estava muito animado. Na sexta, ele foi trabalhar e eu fui ao colégio pegar o resultado das minhas últimas notas. Voltei toda feliz porque foram as melhores possíveis; provavelmente conseguiria uma bolsa para estudar no próximo ano.
Voltei para casa, arrumei tudo que tinha que arrumar e passei o resto do dia vendo TV e lendo. No início da noite, fiz o jantar e fiquei esperando Marcos chegar do trabalho para mostrar minhas notas. Ele havia dito que iria me ajudar a conseguir a bolsa, que conhecia algumas pessoas que podiam ajudar.
Achei estranho, porque ele chegava no máximo às dez da noite, e deu meia-noite e nada. Fiquei no sofá e acabei dormindo ali. Acordei toda torta no outro dia; Marcos não tinha dormido em casa. Fiquei bastante preocupada, pois ele raramente fazia isso e, quando fazia, me avisava.
Passei o dia todo preocupada, mas achei que talvez fosse algo do trabalho e que ele não conseguisse avisar. O dia passou, a noite chegou e nada dele aparecer. Não consegui dormir direito e comecei a pensar que algo grave tinha acontecido para ele sumir assim.
Assim que o dia amanheceu, fui até a padaria. Eu tinha feito amizade com os filhos do dono, Aline e Claudio. Assim que entrei, vi Aline no caixa, fui até ela e expliquei a situação, perguntando se podia me emprestar o telefone ou o celular para eu ligar para o Marcos ou para a sede da polícia civil para saber o que tinha acontecido. Ela me emprestou o celular e disse para eu ficar à vontade.
Liguei para o celular de Marcos duas vezes, mas nem chamou; foi direto para a caixa postal. Aí liguei para a sede da polícia civil, onde ele passava a maior parte do tempo. Depois de três tentativas, fui atendida. Expliquei quem estava procurando e o homem que me atendeu pediu para eu esperar um pouco. Depois de uns cinco minutos, ele voltou e perguntou quem eu era e qual era minha relação com Marcos. Expliquei e ele me deu a pior notícia que eu poderia receber: Marcos foi baleado quando estava voltando para casa. Ele sofreu uma tentativa de assalto e tentou reagir; conseguiu matar um dos assaltantes e feriu o outro, que foi preso, mas, infelizmente, levou dois tiros no abdômen e não resistiu.
Senti o chão sumir debaixo dos meus pés naquele momento; só não caí porque escorreguei na parede da padaria e me sentei em uma cadeira. Respirei fundo e perguntei sobre o corpo, se alguém tinha ido ao hospital ou algo assim. O homem me disse que a ex-esposa e a filha tinham ido ao hospital e que o velório já estava acontecendo. Perguntei onde e ele pediu para eu esperar um pouco. Logo voltou e me explicou em qual cemitério o corpo estava sendo velado. Agradeci e desliguei. Com o resto das forças que ainda me restavam, devolvi o celular para Aline e agradeci. Ela me perguntou o que tinha acontecido, pois eu estava mais branca que o normal, e eu expliquei e saí dali.
Fui para casa, vesti outra roupa e fui para o velório. O corpo estava sendo velado em uma capela dentro do cemitério. Havia muita gente ali, a maioria policiais. Entrei e fiquei de longe observando, mas não conhecia ninguém. Quando me aproximei mais, vi uma mulher loira e uma garota morena abraçada com ela, as duas chorando muito. Imaginei que eram a ex-mulher e sua filha. Quando a garota levantou o rosto, tive certeza de que era a filha de Marcos, mas ela não era uma pré-adolescente; provavelmente tinha a minha idade. Achei melhor não me aproximar, pois ninguém me conhecia ali. Fiquei a uma certa distância, olhando ao redor para ver se via alguém conhecido, mas todos aqueles rostos eram estranhos para mim. Quando olhei novamente para o local onde estava o caixão, a garota levantou o rosto e olhou na minha direção. Acho que ela me viu ali, mas abaixei a cabeça e não fiquei olhando.
Não consegui segurar as lágrimas. Queria ir lá me despedir do meu amigo, mas fiquei com medo. Depois de um tempo, a mulher e a garota saíram de perto do caixão, provavelmente foram beber água ou ao banheiro. Aproveitei e me aproximei. Foi difícil ver meu amigo ali, deitado sem vida; seu rosto estava muito diferente, nem parecia o Marcos. Fechei os olhos e fiz uma pequena oração. As lágrimas já cobriam meu rosto. Me despedi do meu amigo e saí dali.
Voltei para casa e me acabei de chorar sentada no sofá. A vida realmente não era fácil para mim; mais uma vez eu perdi uma pessoa que gostava, e estava sem rumo na vida. Chorei muito o resto do dia e não consegui dormir à noite. Os dias foram passando e eu não comia nem dormia direito. Passava os dias sentada no sofá, olhando para o teto e pensando no que fazer da minha vida. Com certeza, logo alguém iria aparecer e eu teria que deixar aquela casa. Achei melhor sair antes, só para tentar recuperar minhas forças um pouco e sair dali.
Já fazia uns oito dias que Marcos tinha partido e eu estava deitada no sofá, acabando de cochilar, quando acordei com alguém batendo na porta. Fui ver quem era. Quando abri, vi a mulher loira que imaginei ser a ex de Marcos e a sua filha. A ex já foi entrando e começou a me xingar, dizendo que eu deveria sumir daquela casa, pois a casa era dela e eu não ia pegar mais nada do Marcos. Ela foi falando e me xingando com um monte de nomes. Eu não estava entendendo nada, me assustei e não sabia como reagir. Ela me deu um tapa no rosto e, como eu estava meio fraca, caí. Ela veio para cima de mim.
A garota pulou na frente dela e não deixou que ela fizesse mais nada. A mulher foi reclamar, mas a garota falou que era para ela voltar para casa, já que não sabia conversar com os outros. Ela tentou argumentar, mas a garota nem quis ouvir e a colocou para fora, dizendo que depois iria para casa, mas que era para ela ir naquele momento.
Ela me ajudou a levantar e eu agradeci. Ela se desculpou pela mãe e disse que ela andava meio desequilibrada, mas que isso não justificava o que fez. Eu disse que estava tudo bem. Ela comentou que sentia muito, mas que o que a mãe falou era verdade: eu teria que sair da casa.
Bom, eu não tinha opção, só concordei e falei que só iria pegar minhas coisas e iria sair. Nesse momento, a única coisa que pensei foi: sair para onde? Eu teria que ir para a rua, não tinha outra opção!
Continua...
Criação: Forrest_gump
Revisão: Whisper