Eu estava em um outro plano. Era essa a minha sensação. Eu não fazia mais parte desse mundo, eu não estava ligado à Terra ou à realidade. Eu fazia parte agora de uma realidade inventada...
Acordei sonolento e grogue com a luz já invadindo a persiana do quarto. Demorei um pouco para me situar, e sorri satisfeito ao me lembrar de estar do quarto de Rafael. Como era diferente da primeira vez que transei com Eric. Se naquela vez eu me senti sujo e fugi, agora eu me sentia tão leve quanto podia ser e tinha vontade de eternizar aquela sensação.
Senti a ausência de Rafael e por um segundo me alarmei com medo de tudo aquilo ter sido fruto da minha imaginação, mas me tranquilizei quando ouvi sons vindos de algum lugar do apartamento. Não fui procurá-lo de imediato, aproveitei para me espreguiçar e me enrolar naqueles lençóis. O cheiro de Rafael invadia meus pulmões como uma droga terrível e poderosa, tendo a euforia como efeito. Eu me lembrava de termos acordado em algum ponto da madrugada para tomarmos banho, onde voltamos a transar. Depois voltamos para o quarto, trocamos a roupa de cama, deitamos e ficamos nos beijando até pegarmos no sono novamente. E aquilo parecia cada vez mais surreal para mim. Para me lembrar de aquilo era real, identifiquei aquele som baixinho que invadia o quarto como o cantarolar de Rafael. Não me aguentei. Vesti uma cueca, entrei no banheiro e lavei minha boca, já que não tinha trazido escova de dente, e, com muito cuidado para não fazer barulho, fui andando pé ante pé até a cozinha, onde Rafa se encontrava. Ele não me viu de imediato, então me encostei na parede e fiquei o observando. Ele estava sem camisa atrás de uma bancada mexendo numa panela no fogão. Cantarolava alguma melodia alegre. Eu estava muito apaixonado por ele. Foi impossível não sorrir e entregar minha posição. Ele me olhou e sorriu também.
_Ah, não vale! Era para eu levar na cama.
_Nada, deixa a cama para outras coisas._ respondi.
Aos poucos eu ia pegando intimidade com ele, e já começava a fazer esse tipo de brincadeira. Fui chegando mais perto para beijá-lo, mas levei um susto ao me aproximar.
_Rafael! Você está pelado!
Ele não tinha se dado ao trabalho nem de colocar uma cueca, cozinhava pelado na cozinha.
_O que que tem? Ninguém vai me ver além de você. E você gosta do que vê, não?_ riu malicioso.
Ele ainda chacoalhou a cintura, fazendo seu pau, ainda mole, se balançar de um lado para o outro. Não podia negar que era uma visão muito excitante. Além de achar o corpo de Rafael lindo, eu sempre tive um fetiche por caras em estado natural, ou seja, nus fazendo coisas banais, sem estar necessariamente excitados. Se eu não tivesse certeza absoluta que nunca tive intimidade o bastante com ninguém para revelar isso, desconfiaria de uma armação de Rafa.
_Gosto muito!_ respondi me aproximando e lhe dando um beijo.
Era pra ser só um pequeno agrado, mas ele já me agarrou pela cintura e me prendeu contra a geladeira enquanto me beijava ferozmente. Foram precisos alguns minutos para que ele me soltasse.
_Você é louco!_ falei _E se alguém entrasse aqui?
A cozinha do apartamento era conjugada à sala, de modo que se alguém entrasse no apartamento, não teríamos aonde nos esconder.
_Não se preocupe._ respondeu calmamente, mas sem me soltar _Meus pais não voltam até amanhã à noite, a empregada não vai aparecer antes de segunda-feira e, por via das dúvidas, deixei minha chave na porta, assim ninguém conseguiria abri-la por fora.
_Você é um gênio do mal, Rafael...
_Tudo para te manter aqui como meu prisioneiro.
_Seria lindo, mas uma hora eu terei que voltar para casa, sabe?
_Sim, mas não hoje. Você é só meu esse fim de semana.
_Não posso dormir aqui de novo, Rafa.
_Por que não?
_Porque eu tenho pais que ficam muito em cima?
_É só você ligar para eles._ falou me oferecendo um telefone sem fio que ele puxou de trás de si.
Eu teria muitos bons argumentos para rebater sua proposta, mas eu não queria. Eu queria ficar com ele. Queria prolongar ao máximo aquela fuga da realidade. Demorei um pouco a convencer minha mãe, mas por fim consegui.
_Pronto, agora eu sou oficialmente seu prisioneiro até amanhã.
_Meus maiores sonhos se realizando.
_E o que você anda aprontando aqui na cozinha, senhor?
Ele foi até a geladeira e tirou um bolo de chocolate de tamanho médio.
_Você se lembra de quando eu falei que era meu favorito?_ perguntei.
_Eu presto muito atenção em tudo o que você me fala. Fiz questão de aprender a fazer um bolo muito decente para você.
_Você que fez?!
_Sim! E ainda não acabou.
Ele voltou à panela que estava no fogão e derramou seu conteúdo sobre o bolo, se revelando uma calda de chocolate ainda fervente.
_Desse jeito vou querer permanecer em cativeiro para sempre.
_É a ideia!
[...]
Depois de almoçarmos bolo de chocolate, deitamos na sua cama e ficamos em silêncio acariciando um ao outro. Era um silêncio diferente. Não era um daqueles silêncios estranhos quando não se tem nada para ser dito. Era um silêncio reconfortante onde nada precisava ser dito. Nos bastava ouvir a respiração do outro.
Foi ali, naquele momento preciso enquanto Rafael tocava meus cabelos e eu sentia o calor do seu corpo no meu, enquanto os barulhos da cidade ecoavam de algum lugar lá fora, que eu percebi que eu amava aquele garoto. Eu sei que eu já havia dito aquilo a ele na noite anterior, e não havia mentido, mas a percepção daquilo era outra coisa. Eu realmente sentia um amor imenso por aquele cara e já não sabia mais viver sem ele. Eu não tinha ideia de como podíamos ter um futuro, se escondidos ou escancarados, isolados do mundo ou como um casal suburbano, com um casal de filhos ou de goldens retrievers, apenas sabia que um futuro sem Rafael já não era mais uma opção. Aquilo mudava tudo.
_Por que você está chorando, Bernardo?_ ele perguntou assustado me segurando pela cabeça.
Eu não sei em que ponto dos meus devaneios eu começara a chora, mas agora eu percebia que lágrimas rolavam silenciosamente pelo meu rosto.
_Eu te amo.
Foi tudo o que eu conseguia dizer e puxei sua cabeça para um beijo calmo. Ele ainda me olhava confuso.
_Eu te amo e isso é muito assustador para mim.
Ele foi começar a falar, mas eu o impedi.
_Eu não costumo me abrir com ninguém com frequência. Então, agora que peguei o embalo, deixa eu terminar.
Ele consentiu. Eu me sentei na cama de frente para ele, respirei fundo e comecei:
_Eu nunca amei ninguém na vida, Rafael. Nem um coleguinha de escola, nem uma menina bonita, muito menos Eric. Eu amo meus pais e meus irmãos, mas é um amor diferente, é um amor que sempre esteve lá, deste o momento que me entendo por gente, um amor com o qual me acostumei durante os anos. Do mesmo modo, amo meus amigos, mas é um amor também diferente, fraterno, distante. Com você é diferente. Com você esse amor foi construído dia após dia. Um dia eu acordei sentindo uma força descomunal dentro de mim, uma vontade de posse, uma saudade, um carinho sem tamanho por você, e isso era amor.
Ele me escutava muito atentamente com um sutil sorriso nos lábios.
_E isso me assusta muito! É uma coisa grande demais, parece maior do que eu. Eu nunca achei que esse tipo de coisa existisse. Eu não sei lidar com isso. Eu não sei como seguir com isso. Eu estou perdido. Tudo o que eu imaginava da vida veio abaixo por sua causa. Você virou meu mundo de cabeça para baixo e me deixou sem direção. Eu te amo, e isso me assusta...
Eu tinha desabafado para ele o que já vinha rondando minha cabeça por dias, mas que eu não conseguia ter colocado em palavras nem mesmo para Alice. Agora, minhas cartas estavam na mesa, eu estava me expondo por inteiro para ele.
Fiquei esperando por sua reação. Rafael suspirou fundo, deitou-se na cama e ficou encarando o teto. Quando fui questioná-lo, ele começou:
_Eu te amo há muito tempo, Bernardo. Eu não sabia muito bem como lidar com isso. Eu já havia me apaixonado por garotas, mas o que eu sinto por você não se compara com aquilo. E isso me assustou também. Eu posso parecer muito forte e decidido para você, mas é um disfarce. Eu sei que o mundo é perigoso, que as pessoas não gostam de nós, que nós podemos ser agredidos por andar de mãos dadas na rua. Imaginar um futuro com outro cara também me desnorteia, por mais que eu já tivesse aceitado minha sexualidade há muito tempo.
Ele me olhou, pegou minha mão e a pousou sobre seu peito.
_Eu não tenho as respostas que você procura, meu amor. Não sei de dizer para onde seguir. Tudo o que eu posso de oferecer é minha companhia nessa jornada de descobertas. Vamos deixar acontecer o que tiver que acontecer. Vamos com calma, um passo após o outro. Eu te amo, e não pretendo de deixar partir.
Não tinha muito o que dizer, apenas me abaixei e o beijei. E ficamos ali, nos beijando calmamente deitados nus um sobre o outro. Podem ter passado minutos ou horas, ou mesmo dias, eu não sei. Não havia nenhum outro lugar em que eu quisesse estar. Rafael era tudo o que eu precisava no momento.
[...]
O resto do fim de semana se passou naquela doce rotina de sexo, carícias e silêncios. Se eu pudesse ficar preso com ele o resto da vida ali, eu ficaria. Ser seu prisioneiro como ele havia sugerido. Mas, infelizmente, uma hora ou outra o encanto tem que acabar.
_Eu não queria que você fosse embora..._ ele falou manhoso.
_Eu também não queria interromper isso, mas temos que voltar ao mundo real.
_Prefiro essa nossa realidade inventada.
Ri do seu jeito de falar. Estávamos no seu quarto e eu acabava de colocar minha última peça de roupa. Ele me abraçava por trás, ainda nu, e me dava beijinhos na nuca e nos ombros.
_Pode ser assim pra sempre, Bernardo. É só a gente querer.
Me peguei aflito com seu comentário. Eu queria Rafael para sempre comigo, sim. Mas não conseguia me ver envelhecendo com ele como um casal. Eu ainda tinha preconceitos e barreiras muito fortes dentro de mim que iam de encontra àquilo.
_Rafael...
Ele me virou de frente e me interrompeu antes que eu pudesse falar alguma coisa.
_Eu sei dos seus medos, eu vejo nos seus olhos as suas dúvidas. Mas você precisa admitir para você mesmo uma coisa: você me ama, e você não quer viver sem mim. Você mesmo disso isso, mas tem relutância em acreditar. Me dê uma chance de te mostrar que podemos enfrentar o mundo juntos._ ele fez uma pausa e pegou nas minhas mãos _Bernardo, você aceita ser meu namorado?
Palavras com o poder de me tirar o fôlego. Namorado... Eu não estava preparado para aquilo. Sim, eu amava Rafael, mas eu não queria oficializar isso, gritar aos sete ventos. Não havia necessidade disso.
_Eu não sei quando vou conseguir ser seu namorado, Rafael, não sei nem mesmo se um dia vou conseguir. Não vou poder de dar as mãos em público, muito menos te beijar. Não vou poder te apresentar à minha família oficialmente. Não vou poder usar uma aliança, pois as pessoas perguntariam. Então, para que tornar isso oficial?
_Pra eu ter certeza que você é meu._ respondeu sério.
_Eu sou seu. Sou só seu há muito tempo.
_Firmar namoro é isso. Garantir que o outro será só seu e de mais ninguém. Não tem nada a ver com exibir a relação ao resto do mundo._ ele recomeçou com a voz novamente doce _Então, Bernardo, vou perguntar de novo e dessa vez dê a resposta certa. Você aceita ser meu namorado?
Eu não tinha vontade de namorar. Não queria oficializar nada, pois não me representaria nada novo. Seria apenas mais um peso para carregar. Mas eu não conseguiria magoar Rafael e negar seu pedido. Como naquele seu plano para se vingar de Eric, eu faria qualquer coisa para fazê-lo feliz, pois esse era nosso ciclo. Eu vivia para fazer Rafael feliz.
_Sim, eu aceito ser seu namorado, Rafael._ respondi com um sorriso.
Ele sorriu de volta e começou a beijar todo o meu rosto. Ri do seu jeito infantil de demonstrar felicidade.
_Eu prometo que vou te fazer muito feliz!
Minha felicidade não estava nas mãos dele, mas sim nas minhas próprias, e eu tinha consciência disso. Eu precisaria travar uma longa luta contra mim mesmo para conseguir ser feliz naquele novo cenário tão incerto.
Eu queria ser feliz, mas eu tinha forças para isso?