De algum modo estranho, eu soube que naquele momento o meu namoro com Rafael tinha chegado a ponto fatal. No seu olhar eu via que alguma coisa se quebrou. Aquele golpe era a gota d’água, e agora o copo transbordava.
Ninguém ali tinha coragem de falar nada. Eu e Eric, ainda lado a lado, ficamos imóveis a espera da reação de Rafael. Alice observava tudo com cuidado, já ciente que aquilo não acabaria bem.
_Que história é essa de você ter uma foto agarrada com meu namorado?!
O tom de voz de Rafael era raivoso, muito pior do que o que eu tinha presenciado na minha festa de aniversário alguns meses atrás. Olhei para os lados com medo de alguém ter ouvido, mas ainda estávamos um pouco afastados das demais rodinhas de conversa.
_Que tal levarmos essa conversa para outro lugar, rapazes?_ falou Alice.
Ela puxou Rafael para o andar superior do salão, que estava vazio e mal iluminado. Eu e Eric os seguimos calados. Eu tremia. Eu não sabia como ter aquela conversa com Rafael, como contar que escondi dele minha amizade com Eric nos últimos meses. A omissão virou uma bola de neve e essa bola de neve estava vindo me acertar.
_O que diabos a foto do meu namorado está fazendo no seu quarto?!
Eu me preparei para intervir, mas Eric se adiantou:
_O que tem de mais? É só uma foto.
Ele falou isso impassível. Ali, eu percebi que ele também guardava muita mágoa de Rafael pela maneira como tudo tinha acontecido. Só então eu percebi que Eric me usaria para machucar Rafael exatamente como o mesmo tinha feito a ele. Meu coração virou uma pedra de gelo quando eu pressenti para onde aquilo tudo caminharia.
_É só uma foto?! Seu filho da puta!
Tive que me colocar no meio dos dois quando Rafael partiu para cima de Eric com a intenção de socá-lo.
_Você vai defendê-lo?!_ perguntou enquanto eu o segurava.
_Aqui não é lugar para isso, Rafa!
Com dificuldade, consegui empurrar Rafael para longe de Eric, mas ele ainda bufava de raiva.
_Qual o problema de ter um foto do Bernardo?_ perguntou Eric se fazendo de inocente.
No seu olhar eu vi o brilho do prazer em torturar Rafael.
_Para com isso, Eric.
_Assuma com suas ações, Bernardo._ ele respondeu _Você sabia da foto.
_Como assim você sabia da foto?!_ perguntou meu namorado.
Então, eu vi toda a minha mentira desmoronar.
_Essa foto não existia quando nós dois saíamos com ele._ ele continuou _Que foto é essa?
_Nada de mais._ interferiu Eric _Nós estávamos conversando no sofá, eu peguei a câmera e tirei uma foto de nós dois.
_Quando isso aconteceu?
Eu via a raiva em seus olhos aumentarem a cada segundo que eu permanecia em silêncio. Eu não tinha forças para explicar para Rafael...
_Vamos embora, Eric._ falou Alice o puxando _Vamos deixar eles conversarem em paz.
_Não, eu quero assistir.
_Não é uma opção. Vamos!_ e seguiu puxando ele de volta para a festa.
Antes que pudesse completar uma frase, vi as primeiras lágrimas descendo pelo rosto de Rafael. Eu o tinha levado ao limite, eu o havia ferido fatalmente.
_Responde!_ gritou _Quando vocês tiraram essa foto?!
_Nas férias de julho._ respondi com a voz começando a se embargar de lágrimas também.
Ele colocou as mãos na cabeça e começou a rodar em volta de mim.
_Eu não acredito! Como você pôde?!
_Eu nunca mais tive nada com o Eric depois que começamos a namorar, Rafa! Eu juro!_ falei tentando afastar para longe aquela possibilidade da cabeça dele.
_Não?! Então?!
_Lembra quando começamos a namorar e eu te pedia para resolver as coisas com ele e você se negava? Eu não aguentei. Eu fui procurá-lo. Eu tinha que fazer alguma coisa, Rafa.
_Quer dizer que a culpa é minha?!
_Não! Não existe culpa aqui, porque nada aconteceu!_ agora eu já chorava de verdade _Se existe um culpado, sou eu por não ter te contado.
Ele riu ironicamente.
_Você acha que errou em me esconder isso? Isso foi só a cereja do bolo!
Ele veio pra cima de mim e parou a alguns poucos centímetros do meu rosto.
_O problema é você ter ido procurar ele! Isso é traição!
_Não aconteceu nada!
_Continua sendo traição!
_Mas ele precisava de mim, Rafa!
_Não! Você precisava dele!
Olhei para ele sem entender.
_Você precisava que ele continuasse gostando de você. Você é assim, Bernardo! Você quer que todo mundo goste de você, então para isso você veste o papel do amigo perfeito, do aluno perfeito, do filho perfeito. É por isso que você engole a homofobia do Pedro, porque você tem medo de que ele não goste de você. Por isso você tem medo de se assumir, porque corre o risco de quebrar a imagem da perfeição e as pessoas deixarem de gostar de você. Você procurou Eric porque não suportava a ideia de que ele pudesse guardar mágoa de você.
Eu ouvi atento. Era a mesma conversa que me levou a última briga com Alice. E ele parecia estar com aquilo entalado na garganta há muito tempo.
_Eu já te disse uma vez e vou repetir: isso não vale a pena! Você está se matando para manter esse seu personagem. E sua estratégia está fadada ao fracasso. Você está se ferindo para satisfazer as expectativas dos outros. Isso é loucura!
_Rafael, eu...
_E você está me machucando no processo.
Era tudo verdade. Era o que eu fazia, fingia ser um personagem para que as pessoas gostassem de mim. Afinal, quem gostaria de um viado? Eu não podia ser como eu era de verdade porque isso significaria abrir mão de como as pessoas me tratavam, de como elas me olhavam com admiração ou carinho. Eu não estava pronto para abrir mão disso. E se não fosse o bastante eu fazer aquilo comigo mesmo, eu estava arrastando Rafael para dentro daquilo comigo.
_Rafael... Eu te amo, eu nunca quis te machucar.
Ele já estava mais calmo. Aquela raiva em seus olhos tinha ido embora. No seu lugar, ficou um olhar de profunda mágoa e decepção, o que era ainda pior.
_Eu acredito que você me ame e que você nunca quis me machucar, mas machucou mesmo assim.
Ele caminhou até uma grande janela e encostou a cabeça observando a tempestade que caia lá fora.
_Essa coisa toda com Eric, a mentira, a traição por você ter ido procurar ele mesmo sabendo que eu não gostaria, foi só a gota d’água. Você me machuca desde que eu me permiti me apaixonar por você. Aquela noite na boate com Alice e Pedro, você me machucou ao se afastar de mim. No começo do nosso namoro, você me machucou ao se mostrar desconfortável com nosso relacionamento. Acha que eu nunca percebi? Depois você passou a me machucar toda vez que fingia que eu era apenas seu amigo, sem deixar que eu te tocasse ou te beijasse. E aí, você começou a me machucar por não deixar que eu fizesse parte da sua vida, por me esconder do seu mundo. Mesmo quando sua irmã nos descobriu e nos aceitou, você continuou me escondendo dela, implicando por eu conversar com ela. Você já me machucou demais.
Ele não olhava para mim enquanto falava. Ele olhava para rua, para a chuva, mas seu olhar estava perdido no horizonte. Eu não conseguia respondê-lo. Como se argumenta contra a verdade? Eu tinha feito aquilo tudo, e no fundo eu sempre soube o que estava fazendo. Chegamos ao momento que eu tanto temia: o momento que ele se cansou de ser machucado.
_Eu te amo, Bernardo.
Ele falou e caminhou de volta para mim. Seus olhos estavam encharcados.
_Eu também te amo, Rafa._ respondi sinceramente.
_Mas está muito difícil. Eu não aguento mais ser machucado.
_Me perdoa, Rafa. Eu sou uma bagunça, eu...
_Sim, você é uma bagunça e você precisa se arrumar para isso dar certo.
_Eu...
Ele pegou as minhas mãos e as apertou entre as dele de forma carinhosa. Ele sorriu um sorriso frouxo e continuou:
_Eu te perdoo, Bernardo. Eu te perdoo por tudo, por Eric, por me ferir, por me esconder.
Eu sorri tentando me enganar que tudo ia ficar bem, mas era lógico que não ia pelo tom que ele falou.
_Com uma condição.
_Qual?_ perguntei.
_Que você saia daqui de mãos dadas comigo e me assuma. Que você escancare a porta do armário. Que você me apresente para a sua família como seu namorado, como o homem que você ama. É só isso que eu te peço, que você me deixe fazer parte do seu mundo.
Meu sorriso se desmanchou e eu soltei as suas mãos das minhas. E voltei a chorar, agora de modo audível, soluçando. Eu queria tanto dar a ele o que ele queria! Eu queria ser o namorado que ele merecia que eu fosse! Eu queria ser digno daquele amor! Mas eu não era forte o bastante. Eu não queria lutar, eu me julgava fraco demais para aquela batalha. Eu não podia lhe dar o que ele queria.
_Eu não posso fazer isso, Rafa...
_Eu sei, eu já imaginava.
Ele voltou a chorar de cabeça baixa, mas lutou para manter a voz firme.
_Sem modéstia agora, Bernardo. Eu sou um cara legal. As pessoas gostam de mim, me consideram carismático, inteligente, bonito. E eu gosto de ser assim. Então, eu mereço alguém que possa me exibir, não?
_Sim..._ respondi ainda soluçando.
_E você não pode me dar isso, pode?
_Não...
_Então, nós não temos futuro, Bernardo. Eu não vejo como podemos continuar sustentando um namoro. Você vê?
Balancei a cabeça negativamente. Nos olhávamos nos olhos enquanto falávamos tudo aquilo. Ele veio até mim e me abraçou. Ele me apertava com força entre seus braços enquanto beijava o alto da minha cabeça. Me apertei contra a sua cintura sentindo que era um dos nossos últimos momentos juntos.
_Tem algo muito errado no modo como você escolheu para viver, meu amor._ ele falou ainda me abraçando _E eu sinto muito não ser capaz de te ajudar nisso. Eu realmente espero que você saiba melhorar e superar seus medos. Eu realmente espero que nossos caminhos voltem a se cruzar no futuro, quando formos pessoas melhores. E se isso não ocorrer, eu espero que você encontre alguém que te entenda e te aceite como você é.
Ele se soltou de mim, me deu um último selinho muito carinhoso e caminhou em direção a saída. Eu tinha parado de chorar e apenas o observava ir embora da minha vida. Mas antes ele se virou e exibiu seu melhor sorriso:
_Você é a pessoa mais fantástica que eu já conheci na vida. Eu espero que um dia você perceba isso.
E foi-se. E eu fiquei. Fiquei lá assistindo o meu grande amor me dar as costas e sair da minha vida. Se tivesse sido uma grande briga, eu ainda poderia correr para pedir seu perdão ou deixar que ele me batesse até que se aliviasse, mas não. Tudo terminou em paz, sem brechas para uma reconciliação. Como viver agora que eu não o tinha mais entre meus braços? Como seguir se eu não tinha mais seus beijos para me alegrar? Como voltar ao cinza depois de experimentar as cores?
Num lampejo de loucura ou lucidez, pus-me a correr de volta à festa atrás dele. Rafael era meu vislumbre de felicidade e eu não podia deixá-lo partir! Eu correria e o beijaria na frente de todos ali!
Mas alguma coisa travou as minhas pernas: o medo. Eu não passava de um covarde, um ser patético incapaz de lutar pela própria felicidade. Caí de joelhos ali e chorei. Mais do que de tristeza por perder Rafael, eu chorei de raiva de mim por ser como eu era, por ser gay, por ser covarde, por ser uma daquelas pessoas idiotas que deixam o amor partir da sua vida.
Não sei quanto tempo fiquei ali, mas em algum ponto eu senti alguém me abraçar. Eu queria me iludir que era Rafael voltando para mim, mas eu reconheci de imediato o perfume de Alice. Ela se sentou no chão e deixou que eu apoiasse a cabeça seu colo, e ficou passando a mão no meu cabelo enquanto eu chorava todas as lágrimas que ainda me restavam.
_Ele foi embora, Alice...
_Eu sei... Vai ficar tudo bem.
_Não, não vai...
_Vocês darão um jeito de resolver isso.
Eu sentia como se houvesse um buraco no meu peito. Era a pior dor que eu já havia sentido. Eu achava que tinha chegado ao fundo do poço, mas eu estava enganado. Dali em diante, eu tinha um longo caminho ladeira abaixo.
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Aff impossível não chorar novamente lendo tudo isso :(
Rafael eu te amoooo mtooo! Queria mto poder te conhecer e namorar vc!
Enfim :~