O ano de 2007 começou estranho para mim. Tinha muita coisa acontecendo ao mesmo tempo.
Na primeira semana de janeiro, eu viajei com minha família para uma praia pernambucana, mas eu não aproveitei direito. Enquanto eu os via aproveitar o céu aberto e o mar azul, eu me deitava numa espreguiçadeira e ficava refletindo sobre tudo o que estava acontecendo comigo.
Em primeiro lugar, a morte de Eric continuava a assombrar meus pensamentos, mesmo já passado quinze dias. Eram duas dores diferentes: saudade e arrependimento. A saudade não era só do corpo dele, mas dele e da fuga da realidade que ele me proporcionava. Por outro lado, o arrependimento era de ter dado a ele tão pouco em troca. Por mais que eu quisesse expulsar aquela ideia da cabeça, eu não conseguia parar de pensar que eu poderia ter salvado ele. Eu poderia ter me apaixonado por ele, ou ao menos ter lhe oferecido uma amizade plena. Talvez assim eu teria descoberto mais cedo sobre o seu problema e o teria ajudado. Ah, se eu pudesse voltar no tempo...
Em segundo lugar, havia Pedro. Eu continuava com raiva dele por ter mal dito Eric, mas essa raiva começou a dar lugar a paranoia. E se ele contasse para o resto dos nossos amigos? E se eu virasse a nova piada da turma? Isso foi me criando um medo imenso sobre o que aconteceria quando as aulas voltassem. Porém, eu não estava arrependido de ter dado um basta naquela situação. Eu não conseguia mais aguentar mais suas piadinhas homofóbicas, por mais que eu o considerasse um amigo no fundo. Contudo, eu deveria ter dosado minhas palavras, com certeza. Ah, se eu pudesse voltar no tempo...
Em terceiro lugar, havia Rafael. O luto é engraçado. Se pela própria definição ele é uma coisa ruim, ele tem o lado bom de unir as pessoas. Eric, indiretamente, tinha nos unido uma vez, e agora a sua morte nos unira novamente. Não, não voltamos a namorar, isso nem mesmo entrou em discussão, mas voltamos aos tempos de amigos como éramos antes de começarmos a namorar. Nós andávamos conversando bastante por celular e MSN nos últimos dias. O motivo disso é que tínhamos uma dor parecida que só nós dois podíamos entender: o arrependimento de não ter ajudado Eric quando ele precisou. Rafael já tinha me contado que tinha visitado Eric dias antes e percebeu que ele não estava muito bem. Não sei qual de nós dois carregava o maior peso nas costas neste sentido, mas era reconfortante não ter que carregá-lo sozinho.
Alice não aprovava o que estava acontecendo. Quando voltei de viagem, nos sentamos numa praça para conversar.
_Isso não é saudável, Bernardo.
_O que exatamente não é saudável?
_O relacionamento que você e Rafael estão criando. Vocês não são amigos, vocês são apaixonados um pelo outro. Vocês estão carregando um ao outro sem perceber que vão acabar ficando juntos de novo.
_E isso é ruim?
_Uai, me diga você. Você já resolveu os problemas que ele te apontou?
Abaixei a cabeça em resposta. Não, eu ainda era o mesmo, com meus medos e minhas mentiras. Em vez de ajudar, a morte de Eric só fez agravar o problema. Era como se eu tivesse perdido a única pessoa que realmente me entendia. Ele era a minha muleta. Ele, de um jeito torto, era quem me ajudava a caminhar pelo meu caminho tortuoso cheio de erros.
_Então,_ ela continuou _vocês vão cair no mesmo erro.
_Não é bem assim. Não acho que vai acontecer da gente ficar junto de novo. Pelo menos, não agora.
_Por que?
_Sei lá. Com a morte do Eric, é como se alguma coisa entre nós tivesse quebrado, sabe? Nós dois tratamos ele mal, cada um do seu jeito, e agora o fantasma dele paira sobre nós.
_Isso é bobagem.
_Não, não é. Não ria, mas eu não consigo pensar em Rafael como namorado agora porque eu vejo como uma traição ao Eric.
_Bernardo..._ ela falou me reprovando.
_Eu sei, não é um pensamento saudável, mas é o que eu sinto agora. Não dá pra ficar com o Rafael. E posso estar muito enganado, mas acho que ele sente a mesma coisa
Ela deu um longo suspiro e desviou o olhar de mim.
_Vou dizer isso como amiga, não se ofenda.
_O que?
_Você tem uma doença, Bernardo. Não é saudável o modo como você se vê e leva a vida. Você deveria pensar seriamente na possibilidade de começar a se consultar com um psicanalista.
Eu já tinha pensado na hipótese. Eu cheguei a um ponto onde eu precisava de ajuda profissional, mas não era o momento para isso.
_Eu sei, eu já pensei nisso. Mas não agora.
_Por que?
_Tem muita coisa acontecendo. Eu preciso por minha cabeça no lugar pra conseguir conversar com alguém sobre isso. No momento, está tudo uma bagunça aqui dentro._ falei apontando a cabeça.
_Se você diz...
[...]
Eu e Rafa jogávamos conversa fora sentados no chão do meu quarto. Não tinha ninguém na minha casa, mas eu não me preocupava com isso. Acho que por ter a noção que não aconteceria nada entre nós, eu perdi o medo de alguém encontrá-lo ali comigo, pois não teria nada para ser flagrado. Era como se eu levasse Alice ou Pedro lá. Lógico, não esperava que minha irmã entrasse no meu quarto sem bater:
_Bernardo, cadê a câme...
Eu e Rafael nos assustamos e demos um pulo de onde estávamos sentados.
_Eu já falei pra você não entrar aqui sem bater!_ falei bravo.
_Ai, que tudo!_ ela falou animada me ignorando _Vocês voltaram?
Rafael ficou corado de vergonha e eu devo ter ficado também.
_Não, Laura. Nós somos apenas amigos._ falei rapidamente _Não vê que estamos vestidos dessa vez?
Nós rimos e relaxamos.
_Que desperdício. Você tem que dar um jeito no Bernardo, Rafa. Ele anda todo cabisbaixo pelos cantos ultimamente.
_Bom, eu posso ajudá-lo como amigo._ ele respondeu rapidamente.
_Vocês quem sabem._ respondeu _Só vim pegar a câmera com as fotos da viagem.
Ela logo encontrou a câmera e saiu do quarto mais rápido do que entrou. Depois que ela se foi, eu e Rafa passamos um bom tempo em silêncio. Era o constrangimento pelo fato da minha irmã ter comentado sobre a nossa proximidade. É lógico que pensávamos naquilo, mas nunca tínhamos tido uma conversa sobre o assunto.
_Alice acha que estamos cometendo um erro por querermos sermos amigos depois de tudo._ comecei.
A gente não se olhava. Estávamos encostados na parede lado a lado.
_Talvez..._ ele falou _Como isso aconteceu?
_Eric nos uniu de novo.
Nós dois rimos por instante, antes de mais um longo silêncio.
_Nós não mudamos..._ ele comentou.
_Sim... Eu achava que eventos extremos, como a morte de alguém próximo, mudava a gente, mas tô vendo que não é bem assim.
_Muda sim, só não podemos esperar uma coisa muito repentina. Acho que a morte do Eric está mudando a gente sim, mas é um processo lento.
_Estamos mudando para melhor ou para pior?
_Não sei._ respondeu pensativo.
Eu ainda amava Rafael. Muito. A presença dele me causava cócegas no estômago, a ausência dele me causava aflição e o cheiro dele era como uma droga para o meu cérebro. Mas agora era diferente. Tinha alguma coisa entre a gente. Não nos tocávamos. Não trocávamos olhares apaixonados, por mais que ainda fossemos apaixonados um pelo outro. Éramos como um velho casal que se acostumou a presença um do outro e se aquietou. Perdemos a chama.
_Rafa...
_Diga.
_Não ria. Você sente, de vez em quando, como se o Eric ainda estivesse aqui...
_Entre nós._ ele completou rindo _Sim, eu sinto.
_É estranho._ falei rindo também.
_A última travessura do Eric: ele nos separou.
_Ele sabia das coisas._ respondi rindo.
Ríamos, mas não havia alegria ali. Estávamos tristes, estávamos de luto. Nos prendemos àquela amizade inesperada porque não havia no que mais nos segurar. Tínhamos que nos abraçar para não deixar que nos afogássemos num mar de agonia silenciosa como Eric.
E foi assim que o meu ano começou. Quando Rafael terminou comigo, eu tinha dito que aquele não tinha sido o fundo do poço, apenas o começo de uma longa descida. A morte de Eric tinha sido só mais um capítulo. O afastamento simbólico de Rafa era mais um. Quando Alice comentou sobre o psicanalista, ela pensou em depressão. Eu não pensei, mas talvez ela tivesse razão. Muitas coisas começaram a ser tiradas de mim e eu não tinha ninguém a quem culpar, com quem gritar para extravasar minhas frustrações. Não sei em que momento aquilo começou a tomar conta de mim, mas acho que foi mais ou menos por ali, após a morte de Eric. Por fora, eu ainda estava bem, praticava todas as minhas atividades escolares e sociais normalmente. Mas por dentro, alguma coisa estava mudando, como bem observou Rafael. E para pior. Por mais calmo e centrado que eu possa parecer, minha cabeça sempre foi um turbilhão de coisas. Meus pensamentos estavam sempre a mil, seja na forma de paranoia ou felicidade. Eu tinha essa coisa muito particular de me autoanalisar e me autoquestionar sobre as minhas atitudes, mas eu fui perdendo isso. Por dentro, minha cabeça começava a se acalmar e a apatia começava a tomar conta de mim. Como eu disse, foi uma coisa muito sutil, que começou como um pequeno cansaço mental. Mas aquilo ia se apoderar de mim...
Eu acho que posso classificar o ano de 2007 como o pior da minha vida. E ele foi também, sem dúvida, um dos mais cruciais para eu me tornar a pessoa que sou hoje.
[...]
Quando as aulas retornaram, em março, eu ainda estava com medo de como seria reencontrar Pedro. Eu tinha muito medo do que ele ia contar para as pessoas. Para adiar um pouco mais o meu sofrimento, ele faltou ao primeiro dia de aula. Rafael, apesar de mais próximo de mim novamente, se sentou com seus novos amigos, Marcos e Carolina, mas não me ressenti. Sentei ao lado de Alice e encarei a cadeira de Pedro vazia.
_Você vai ter que conversar com ele._ ela falou ao me pegar olhando.
_Eu sei, mas não sei se ele vai querer me ouvir.
_Uai, faça ele te ouvir na marra.
_Eu nem mesmo sei o que dizer. Eu não estou exatamente arrependido. Eu só queria que ele não dissesse nada pra ninguém._ falei sussurrando a última parte.
_Ei, vocês dois, prestem atenção aqui, é importante._ falou o professor.
Era o Heitor, coordenador do curso. Eu e Alice viramos para ele constrangidos. Ele começou a falar da importância do nosso terceiro período, que deveríamos a começar a pensar em estágios e intercâmbios, mas eu me desliguei. Minha cabeça estava longe. Eu pensava no quão estranha era aquela sala sem Eric. Todo mundo já sabia o que tinha acontecido, e ouvi algumas pessoas comentando. Mas todos seguiram com a vida. Foi como se um desconhecido tivesse morrido no outro lado do mundo. Aquilo soava tão mal para mim...
[...]
_Vem, vamos conhecer nossos calouros!_ falou Rafael.
Nosso curso só tinha uma entrada por ano, no início do ano. Assim, aqueles eram nossos primeiros calouros. Eu não estava muito animado para passar trote nos outros, apesar de aquele dia não ser do trote propriamente dito. Era só um primeiro contato. Mas eu também não estava no clima para conhecer gente nova. Deixei que Rafael e Alice me levassem.
Chegando na sala deles, me deparei com versões mais novas de nós mesmos. Apesar de, na média, só um ano mais novos que a gente, o que era quase imperceptível, a cara deles entregava que eram calouros. Eu via medo nos olhos deles, eles se encolhiam com nossa presença, mesmo que nós não prendêssemos fazer mal algum a eles. Nós, por outro lado, tínhamos o peito arfado e um ar de confiança que se adquire após se acostumar com algum lugar, após tornar aquele lugar seu habitat natural.
Nenhum daqueles calouros me chamou a atenção de alguma forma, a não ser um. À primeira vista, não reparei em ninguém em especial, mas depois, observando cada um separadamente, meus olhos pararam naquele garoto. Foi magnético. Ele era baixinho, muito branco, rosto magro e tinha pelos bem lisos no braço. Seu cabelo era castanho escuro e liso, apesar de bem bagunçado. Ele me atraiu sexualmente. Eu quis muito ter aquele menino. Acho que eu o encarei por tanto tempo, que ele olhou para mim de volta. Ele entendeu o que eu queria. E ele também queria, pois abriu um sorriso muito discreto com o canto da boca. E ele tinha aqueles olhos... Eram tão verdes, tão vivos! Mas tinha alguma coisa especial neles, como se fosse um fogo, um brilho diferente. Eu não conseguia ler seus olhos, mas se conseguisse, eles diriam:
“Eu vou fazer da sua vida um inferno.”