Eu estava quebrado, dolorido, com o rosto coberto de sangue e me sentindo a pior pessoa do mundo. O que eu faria? Pra onde eu iria? Pra quem eu podia pedir ajuda? Eu dirigia sem rumo pela cidade. As pessoas nos carros me olhavam assustadas, como se eu tivesse saído de um filme de terror. Quem dera fosse apenas ficção aquilo.
Eu pensei em Pedro, mas depois lembrei que ele provavelmente só me bateria mais. Eu pensei em Rafael, mas me lembrei que ele agora namorava, que não podíamos nem mais sermos amigos porque a namorada dele não aprovaria uma amizade com seu ex-namorado. Eu pensei em Alice, mas lembrei que ela faria perguntas demais, se envolveria demais, e eu não queria isso. Eu pensei em ir para o hospital, mas lá eu teria que explicar o que aconteceu comigo.
Eu temei comigo mesmo que tudo o que precisava fazer era tomar um analgésico e descansar. Eu comecei a dirigir para casa. Meus irmãos e minha mãe estavam em Porto Alegre. Meu pai estava trabalhando e a empregada só chegava perto da hora do almoço, ainda estava muito cedo. Ninguém saberia. E assim eu fiz.
Como eu entrei pela garagem com o carro, o porteiro não me viu. Ele não contaria nada aos meus pais. Ao sair do meu carro, senti novamente a falta de ar e as dores. Eu me segurei na lateral do carro e tive que esperar por alguns minutos até ter forças pra continuar meu caminho. Com dificuldade, fui caminhando arqueado até o elevador e me escorei na parede dele enquanto ele subia. Ao chegar ao meu andar, novamente com muita dificuldade, peguei minha chave e abri a porta do meu apartamento. Me virei, tranquei a porta e me escorei nela por um momento de olhos fechados, criando forças pra próxima caminhada até o meu quarto. Meus olhos se abriram com o barulho daquela xícara se espatifando no chão. Meu pai me encarava completamente branco, como se todo o sangue tivesse sumido do seu rosto. A xícara de café que ele segurava tinha virado mil pedaços no chão. Nos encaramos por alguns poucos segundos sem reação.
Estava tudo acabado. Ele estava me vendo todo ensanguentando, sujo e quebrado. Que explicação aquilo poderia ter? Eu teria que lhe contar tudo. Ali, na frente dele, na frente daquele homem que sempre me pareceu uma muralha de força, eu comecei a chorar. Minhas lágrimas caiam pesadamente e minha garganta começou a se fechar. Eu não tinha mais forças para continuar com aquilo. Meus olhos se fecharam como se tentassem expulsar toda aquela dor. Meus joelhos cederam e eu caí no chão sem forças.
_Bernardo!
Meu pai correu até mim e levantou meu tronco.
_Bernardo! Acorda! O que aconteceu?!_ ele estava desesperado.
Eu nunca o tinha visto naquele estado. Abri os olhos e vi seus olhos vermelhos, à beira do desespero também. Sua camisa, antes impecavelmente branca, agora estava toda manchada com o sangue do meu rosto. Ele achava que eu estava morrendo. Eu não conseguia lhe responder que eu ia ficar bem, que eu só precisava descansar um pouco. Me faltava ar, me faltavam forças para me concentrar até em falar ou em manter os olhos abertos.
Meu pai era um homem forte. No auge do seu desespero, ele me pegou no colo e saiu correndo comigo para o elevador. Eu já tinha dezenove anos, eu era bem alto, eu deveria estar pesado, mas mesmo assim ele conseguiu. Não que eu duvidasse que ele conseguiria. Além de ser um homem forte, na hora do desespero surgem forças que você não poderia acreditar que tinha.
Minhas lembranças dali em diante ficaram embaçadas. Eu começava a sucumbir às dores. Eu me lembro dele me colocar no banco de trás do seu carro e sair dirigindo como um louco da garagem. Lembro de ouvir muitas buzinas, dele e dos outros, enquanto tentava correr pelas ruas engarrafadas da manhã de uma grande cidade. Chegando ao hospital, ele novamente me carregou pra fora. Lembro de olhar em seus e ver lágrimas represadas. Eu nunca o tinha visto daquele jeito. Ele entrou na emergência gritando, mas eu não conseguia saber o que ele gritava. Talvez nem fizesse sentido o que dizia. Eu me lembro de ouvir “meu filho” muitas vezes. Logo, várias pessoas trajando roupas verde-água estavam em volta de mim. Começaram a mexer em mim e me colocaram numa maca. Me senti me deslocando rapidamente.
_O que aconteceu com ele?_ perguntou uma voz desconhecida.
_Eu não sei!_ era a voz do meu pai _Ele chegou em casa assim!
_Será que foi assalto?_ falou a voz desconhecida.
_O celular, a carteira e a chave do carro ainda estão no bolso._ falou uma outra voz desconhecida.
Eles descobririam. Não havia como esconder. Tudo foi por água abaixo. Pobre do meu pai, passando por tudo aquilo e ainda teria que escutar tanto. Me afligi pelo que viria em seguida. Com a dor física crescente e a minha mente em estado de esgotamento, meu corpo cansou e eu desmaiei enfim.
[...]
Abri meus olhos com dificuldade. Eu me sentia tonto. Eu estava com o pijama do hospital e deitado na enfermaria. Havia outras pessoas nas camas por perto. Meu braço estava ligado a uma máquina que fazia pingar soro. Olhei atordoado em volta. Uma enfermeira jovem e meio gordinha veio sorridente para mim.
_Que bom que você acordou.
_Cadê meu pai?
_Ele foi até em casa buscar uma roupa pra você vestir. Graças a Deus você não teve nada demais, apenas hematomas e esse corte no seu rosto. Não quebrou nada. O médico vai te dar alta hoje mesmo.
Eu olhava atordoado em volta tentando me situar.
_Você desmaiou devido a uma queda de pressão. Situações limites fazem isso com a gente. Estamos te dando um analgésico de porte médio e ele vai conter a dor.
_Ah...
_O que aconteceu com você?
Foi só ele falar isso e tudo voltou a minha mente. O pai de Tom me batendo e me xingando. Toda a dor emocional voltou e meus olhos se encheram de lágrimas.
Desculpe!_ a enfermeira falou assustada _Não é da minha conta. Descanse um pouco, seu pai já vem.
Passou mais alguns minutos e meu pai apareceu. Ele parecia cansado. Ele tinha trocado de camisa, mas ainda havia algumas manchinhas de sangue no seu pescoço. Seu olhar estava abatido. Eu nunca o havia visto assim. Nem parecia meu pai. Quando seus olhos se encontraram com os meus, eles pareceram se aliviar. Ele veio correndo e começou a passar a mão nos meus cabelos.
_Você está bem?
Meu pai nunca foi uma pessoa carinhosa. Ele não era autoritário e severo como o meu avô materno, mas tampouco era daqueles pais que abraçava e beijava os filhos a todo momento. Não era uma coisa ruim, era apenas a personalidade dele. Por isso era assustador vê-lo assim, me acariciando. Seu olhar sempre foi firme e decidido, e sua expressão era de pura força. Mas agora ele parecia outra pessoa.
_Sim, estou melhor. Desculpa pelo susto.
_O que aconteceu, meu filho?
_Você falou com a minha mãe?_ perguntei.
_Não, não consegui achá-la. Mas depois eu vou ligar de novo.
_Não fala com ela._ eu pedi e ele me olhou ressabiado _Pelo menos, não por enquanto.
_Por que? O que aconteceu, Bernardo?
Eu tremi. Eu teria que ter a tão temida conversa com ele. Como escapar? Não conseguia pensar em nenhuma mentira, nada que pudesse explicar aquela situação.
_Não agora, não aqui._ falei desviando o olhar _Em casa.
Ele voltou a me fitar com a expressão séria que lhe era de costume. Eu não ousei olhá-lo diretamente, mas eu podia jurar que de alguma forma ele sabia. Ele era inteligente. Ele estava montando a história sozinho na sua cabeça.
Naquele mesmo dia à noite, o médico me deu alta. Apenas me prescreveu alguns analgésicos e pediu que eu voltasse em alguns dias para tirar os pontos do corte no meu supercílio.
No carro, indo pra casa, meu pai se virou pra mim.
_Eu quero saber o que aconteceu. Já estamos a sós.
Eu comecei a ficar inquieto no carro e ele percebeu. Como escapar daquilo?
_Em casa, pai...
_Não. Agora._ ele falou firme.
Era como ele sempre falava com a gente quando éramos crianças. Ele não precisava gritar, apenas a força da sua voz era o bastante para impor respeito. Não vendo saída, com meu mundo prestes a desabar de vez, comecei a chorar. Ele não se comoveu. Ele sabia que tinha alguma coisa errada.
_Você foi assaltado?_ perguntou sem me olhar, se concentrado no trânsito.
Balancei a cabeça negativamente.
_Foi algum colega seu de faculdade?
Eu hesitei em responder.
_Responda._ ele falou _Eu posso muito bem ligar para Alice e perguntar. Mas eu quero ouvir de você.
_Não, não foi um colega.
_Então, quem foi?
Eu fechei os olhos. Não tinha mais como escapar daquilo.
_O pai de um colega.
Eu não precisei dizer mais nada. Era como se ele sempre soubesse. Era como se eu tivesse lhe dado a última peça do quebra-cabeça. Ele rangeu os dentes e apertou com força o volante do carro.
_Onde ele mora?
_Não, pai..._ falei choramingando.
_Onde ele mora?!_ ele gritou.
Nunca tinha visto meu pai gritando, ainda mais comigo. Eu me encolhi no banco amedrontado.
_Por ali..._ falei começando a guiá-lo em direção à casa de Tom.
O que ele ia fazer? Meu coração parecia que ia sair pela boca a qualquer minuto. Em pouco tempo, chegamos à casa de Tom.
_Desce._ ele falou firme.
_Não, pai, eu...
_Eu disse pra descer.
Eu não tive como negar. Desci do carro tremendo de medo do que viria a seguir. Ele desceu também batendo a porta. Ele bateu a campainha e fez sinal pra que esperasse ao seu lado. Eu achei que alguém fosse atender no interfone e nos impediria de entrar, mas não, alguém abriu o portão. E era o pai de Tom. Só a sua figura foi o suficiente para eu me lembrar de tudo o que tinha acontecido naquela manhã, como se eu pudesse ter esquecido por um segundo sequer. Instintivamente, me recolhi atrás do meu pai. Aquele senhor me olhou com raiva.
_É ele?_ perguntou meu pai sem tirar os olhos do pai de Tom.
Eu não respondi, pois antes de qualquer coisa, o pai de Tom falou primeiro:
_Você é o pai desse viadinho?
Eu não vi mais nada. O meu pai, sempre tão centrado e frio, partiu com tudo para cima daquele homem. Eu olhei incrédulo. O meu pai era um homem forte, ele começou a socar aquele cara e não deixou que ele lhe acertasse um golpe sequer.
_Eu vou te ensinar a bater nos filhos dos outros!_ ouvi meu pai falando entre rosnados e barulhos de soco.
_O que é isso?!_ gritou uma voz feminina.
Duas sombras saíram de dentro da casa: uma mulher de meia idade, que devia ser a mãe de Tom, e o próprio. Ao olhar nos seus olhos, encontrei a única pessoa ali mais assustada do que eu.
_Eu vou chamar a polícia!_ gritou a mãe de Tom.
Meu pai saiu de cima daquele homem e, ainda com raiva na voz, apontou o dedo pra mulher e disse:
_Chama! Aproveita e conta pra polícia como esse desgraçado espancou meu filho e mandou ele pro hospital.
Ele estava suado e ofegava muito. O pai de Tom gemia contorcido no chão e virado de barriga pra baixo. A mulher não sabia o que fazer.
_E prestem bem atenção._ falou meu pai apontando o dedo para Tom em especial _Se qualquer um de você chegar perto do meu filho novamente, eu juro que não vou parar com alguns poucos socos. Estão avisados.
Ele saiu como uma besta pra fora e me puxou com ele. Entrei no carro assustado. Era tudo surreal demais. Eu não acreditava no que meus olhos tinham visto.
Apertando o volante com força, o meu pai se virou pra mim ainda com raiva nos olhos:
_Você pode ser o que quiser na vida, Bernardo, eu não me importo._ ele foi falando e fui escutando assustado com o seu tom _Mas tem uma coisa que eu não admito. Eu não te criei pra ser um covarde. Eu não te criei pra ser fraco. Você deixou que aquele homem te batesse o quanto quisesse, e sabe lá Deus o que ele te disse. Você é fraco, Bernardo, e eu não poderia estar mais decepcionado com você do que estou agora.
Aquelas palavras me marcaram fundo...