Paris, 2 de dezembro de 2007
Acordei naquele domingo abrindo os olhos bem devagar. O tempo corria devagar fora da minha janela, então decidi não me apressar também. Eu não tinha nenhuma tarefa de faculdade pra fazer, me permitindo enrolar na cama por mais alguns minutos. Fazia um friozinho gostoso, mais ou menos seis graus, que era perceptível mesmo com o sistema de aquecedor do apartamento. Olhei pra cama ao lado e a encontrei vazia e desarrumada. Ricardo já devia ter levantado. Olhei no relógio e já passava das nove da manhã. Decidi me levantar, mas não sem antes dar uma boa olhada pela janela, meu novo ritual matinal. Como era fim de semana, poucos carros corriam pela avenida lá embaixo. Vesti uma roupa decente e fui até o único banheiro do apartamento fazer minha higiene matinal.
_Bonjour, bom dia, good morning, buenos dias._ cumprimentei ao entrar na cozinha.
Aquela salada de idiomas era a marca registrada do nosso apartamento. Éramos seis garotos morando num apartamento de três quartos no Treizième Arrondissement em Paris: Peter e Jonah, dois americanos, o chileno Gael, o mexicano Chico, e eu e Ricardo, o outro brasileiro. Todos nós éramos intercambistas numa faculdade de engenharia próxima ao apartamento. Não éramos todos amigos muito próximos, mas respeitávamos nossas diferenças culturais. Lógico que isso valia para os outros quatro, não pra Ricardo.
_Bom dia, Bernardinho._ falou me dando um beijo na bochecha e me arrancando um sorriso.
Os outros já tinham se acostumado com o jeito que Ricardo me tratava. Ricardo era um paulistano de vinte anos de idade. Alto e magro, como eu, ele era bem branco. Seus cabelos tinham um tom muito intenso de castanho, o que combinava com seus olhos cinzas. Mas o que mais me encantava nele era sua alegria. Diferente de Rafael que era totalmente passional, sendo extremo na alegria e na raiva, Ricardo era só alegria. Eu já o tinha visto sério, mas nunca triste. Era o tipo de pessoa que conquistava todos a sua volta, fazendo dele o líder natural da nossa turma. E ele me arrastou pro centro das atenções junto com ele. Era natural que nos juntássemos, afinal, éramos os únicos brasileiros da faculdade e dividíamos um quarto. Resultado: Ricardo virou meu novo melhor amigo. E como ele era sempre convidado pra todo e qualquer evento que um conhecido organizava, eu era sempre arrastado junto com ele. E eu conheci tantas pessoas interessantes, tantos lugares maravilhosos e tantas histórias incríveis. Eu me sentia vivo.
_E o que vamos fazer hoje?_ ele perguntou.
_Não sei._ respondi abrindo a geladeira _Deixa eu pelo menos comer primeiro que a gente decide.
_Vamos comer na rua?
_Pode ser._ falei com preguiça de cozinhar.
É caro comer na rua, ainda mais quando você é um estudante, mas nos dávamos àquele luxo de vez em quando. Vestimos nossas roupas de frio e descemos. Era um prédio antigo, sem elevador, mas logo os três andares de escada tornaram-se rotina, não incomodavam mais. Ao abrirmos a porta da rua, fomos recebidos por uma lufada de vento frio. Ricardo e eu compartilhávamos uma preferência pelo frio, então aquilo só nos animou ainda mais. Escolhemos um café próximo ao apartamento e fizemos nosso pedido. Sentamos ao ar livre mesmo, na rua.
_Como andam seus amigos?_ ele perguntou enquanto bebericava seu chocolate quente.
_Na mesma._ respondi fazendo o mesmo _Pedro continua atacando e Alice está totalmente dividida entre ele e o namorado.
_Será que esse namoro dura ainda?
_Não dou mais dois meses. Não com Pedro lutando com tanto empenho.
_Mas você é uma coisa, hein? Pondo pilha pra ele insistir.
_Você tem que ver a química entre eles. Quase soltam faíscas!_ respondi rindo _Se você visse, me daria razão.
_Eu acredito em você. E Rafael?
_Na mesma também._ respondi suspirando.
_Namorando a tal menina ainda?
_Sim...
Sim, Ricardo sabia sobre Rafael. Aliás, ele sabia sobre tudo. Logo nas primeiras semanas que eu havia chegado em Paris, eu comecei a me arrepender de ter me mudado pra França. Por mais que eu já fosse fluente no idioma, os professores falavam muito rápido e às vezes eu perdia coisas na aula, o que era frustrante. Eu não me acostumei rapidamente com a cidade, ficando perdido mais de uma vez no seu imenso sistema de metrô. E sem contar a saudade que eu senti de todos. Principalmente de Rafael, nunca havia passado tanto tempo longe dele depois que o conheci. Para os outros eu ao menos eu podia ligar ou conversar pela webcam, mas com ele, nem isso. Numa noite, depois de uma pequena reuniãozinha após a aula, eu acabei bebendo demais. Não o bastante pra dar vexame, mas foi só deitar na minha cama para as lágrimas virem. Ricardo levantou preocupado e se sentou junto comigo.
_O que foi?_ ele perguntou preocupado.
_Tudo, cara. Aqui não é como eu achei que seria. Era pra eu mudar de vida, fazer tudo diferente.
_Como assim?
E eu contei tudo. Tudo mesmo, incluindo a tentativa frustrada de suicídio. Eu nunca teria me aberto com ele sóbrio, o conhecia há tão pouco tempo, mas fiquei feliz por ter feito. Depois de ouvir tudo, Ricardo se deitou ao meu lado embaixo da coberta, me abraçou e dormiu comigo enquanto repetia:
_Você não está sozinho. Eu tô aqui.
Eu lembro de acordar de madrugada e ele ainda estar grudado ao meu corpo. Sentir seus braços apertando minha cintura e sua respiração quente na minha nunca me excitou, mas não tomei nenhuma atitude. Eu não queria confundir as coisas e estragar tudo. Apenas relaxei e aproveitei o carinho. Quando acordei de manhã, ele não estava mais na cama. Procurei ele pelo quarto e o encontrei já vestido. Ele me jogou uma roupa.
_Vamos sair._ ele avisou.
_Pra onde?
_Andar por aí._ ele me deu um sorriso lindo _Pra se apaixonar por Paris, você precisa conhecer Paris.
E aquilo se tornou nosso ritual. Sempre que tínhamos um tempinho sobrando, caminhávamos sem rumo pela cidade e conversávamos sobre tudo. Assim, eu descobri Paris e me apaixonei por ela.
[...]
Depois do café, caminhamos pelas margens do rio Sena, um dos nossos programas favoritos. Poucas pessoas faziam o passeio junto conosco. Já era dezembro, o tempo estava frio, mas nós não ligávamos. Em quase uma hora de caminhada falando sobre toda a sorte de bobagens, chegamos aos Jardins de Luxemburgo. Era um dos locais mais bonitos da cidade e elegemos ele como um de nossos favoritos. Sentei na grama e deixei que o vento frio me acertasse no rosto. Sem nenhuma vergonha, Ricardo deitou na grama com a cabeça em meu colo.
Lá estávamos, dois caras deitados juntos num local público. Naqueles momentos é que eu via como aquela cidade estava me fazendo bem. No Brasil, eu teria surtado e empurrado a cabeça de Ricardo pra longe. Mas não ali. As pessoas passavam e nem pareciam nos ver. Elas estavam muito preocupadas com suas próprias companhias pra se preocupar com a dos outros. Eu poderia beijar Ricardo ali e ainda sim ninguém nos olharia.
Era por causa daquilo que eu tinha ido a Paris. Eu poderia ser eu mesmo. Eu não precisava fingir ser uma pessoa que eu não era com medo de represálias. Ninguém ligava pro sexo da pessoa que eu gostava. Não havia o temor que algum conhecido nos visse e nos atacasse. Mesmo se um dos nossos colegas eventualmente passasse por ali, ele não se importaria. Não estávamos fazendo nada de errado, estávamos? Se fosse no Brasil, talvez estivéssemos, e essa é a grande diferença. Analisar porque países igualmente cristãos e conservadores como França e Brasil tratavam a questão da homossexualidade de modo tão diferente é uma questão social muito complexa. Mas era inegável que existisse essa diferença.
_No que você está pensando?_ Ricardo perguntou sem se levantar.
_No Brasil.
_Saudades?
_Não.
Sim, eu tinha saudade dos meus amigos, da minha família e de Rafael, mas eu não estava com saudade do meu país, e isso é uma coisa muito grave. Posso citar aqui mil problemas da França, como as constantes quedas de energia, o excesso de cigarro em qualquer lugar que você vá, ou o tempo sempre chuvoso, mas posso rebater com outros mil problemas mais graves do Brasil. Porém, mais do que as diferenças do dia a dia, era a diferença como a situação da homossexualidade era tratada que mexia comigo.
_Então?_ ele perguntou curioso.
_É que, sei lá._ falei tentando organizar meus pensamentos _Eu estou mudando, não sou a mesma pessoa que embarcou no Brasil. Foram mudanças que essa cidade me fez, e por isso eu tenho medo que elas se percam quando eu voltar. Eu tenho medo disso aqui ser somente um breve sonho.
Eu não era mais o mesmo Bernardo. Sabem aquele Bernardo que sempre me referi, aquele Bernardo de verdade que eu sempre internalizei? Então, eu achei ele. Não é como se eu tivesse mudado de personalidade de uma hora pra outra, mas alguma coisa aconteceu. E acho que essa alguma coisa foi a perda do medo. Eu era fraco e covarde, mas essa fraqueza e covardia eram frutos da prisão de medo que eu construí para mim. Mas eu não tinha mais medo. Não tinha mais pessoas pra me julgarem. Eu estava livre.
_Ora, você pode se mudar pra cá._ ele respondeu.
_Só se eu trouxesse todo mundo pra cá junto comigo.
_Inclusive Rafael?
_Inclusive Rafael.
Eu tinha a consciência que aquilo tudo era passageiro. Por mais que eu tivesse descoberto e me apaixonado por aquela cidade, eu sabia que aquele não era meu lugar. Por mais que tivesse me adaptado ao dia a dia parisiense, eu sabia que não pertencia àquela realidade. Eu tinha medo de, ao fim daqueles doces meses de intercâmbio, eu regredisse e voltasse a me fechar.
Pois pense nele como seu motivo pra você não se perder da pessoa que você está se descobrindo._ Ricardo falou _O que ele faria se estivesse aqui, deitado nos eu colo apreciando o começo do inverno nos Jardins de Luxemburgo?
_Ele nunca me deixaria sair daqui._ falei rindo.
_Pois então! O lugar não importa tanto quando a companhia vale à pena. Seja uma companhia que vale à pena quando voltar.
Ricardo sempre parecia ter as palavras certas pra me dizer. Em poucos meses ele chegou e ocupou com propriedade o posto de amigo. Eu não sei como estaria se não fosse ele.
_O que você quer fazer agora?_ perguntou.
_Que tal Montmartre?
_Pode ser.
Nos levantamos e voltamos a caminhar lado a lado. Resolvemos pegar o metrô pra atravessar a cidade, embora Paris não seja uma cidade grande (de ponta a ponta, tem doze quilômetros). Engraçado, na nossa primeira semana, conhecemos praticamente todos os pontos turísticos da cidade. Isso foi muito bom, porque dali em diante, nos ocupamos em conhecer as regiões mais bucólicas e afastadas da cidade. Entre elas, o bairro de Montmartre era um dos que mais gostávamos. Era o bairro boêmio, cheio de ruas estreitas, artistas de rua, restaurantes apertados, prostitutas e gente jovem. Não lembrava nada a imagem glamourosa que as pessoas têm da cidade, e é por isso mesmo que gostávamos. Nos sentíamos bem à vontade ali. Era uma região que os turistas gostavam por causa do Moulin Rouge e da igreja de Sacré Coeur, então Ricardo e eu andávamos bem colados um no outro, como um casal. Eu não pensava nisso, mas era a impressão que causávamos. Vejam bem, isso seria o suficiente pra me fazer pirar e despertar minha paranoia, mas não ali. Podiam pensar o que quisessem.
Uma garota negra, aparentando não ter muito mais do que a nossa idade, tocava melodias doces no seu violino. Encantando pelo seu som, eu parei e fiquei admirando a sua música. Ela me olhou e sorriu. Começou a tocar uma melodia um pouco mais animada, ainda que romântica. Ricardo não perdeu tempo, ele me puxou pra frente dele, colocou as mãos na minha cintura e começou a me guiar numa dança lenta. Eu sorri da sua ousadia e doçura, o que o fez sorrir também. Outros cinco ou seis casais ali por perto fizeram o mesmo. Sem preocupações, deixei que ele me levasse pela melodia.
Ricardo era bonito. Tinha a mesma altura que eu, mas era um pouco mais branco. Seus cabelos levemente ondulados e castanhos caíam pela bochecha e pela lateral do rosto, lhe dando um visual despojado. Ele tinha uma barba bem rala, quase invisível, que se encorpava um pouco na região do cavanhaque. Ele sempre usava roupa com um ar de batido e velho, mas que lhe davam um charme especial. Naquele dia em especial, ele usava um jeans surrado, all-star, um suéter azul-marinho, um cachecol cinza e um sobretudo preto que vinha até seus joelhos.
Eu já tinha visto Ricardo beijar um menino na festa uma vez. Não conversamos sobre isso, pois não precisava. Não tínhamos a necessidade de ficar colocando rótulos um no outro. Mais tarde, depois de lhe contar a minha história, ele me contou que namorou um garoto por três anos e terminou pouco antes de se mudar. Não caíamos na cama um do outro imediatamente como animais ensandecidos, mas sempre houve um clima entre a gente. Sempre que eu olhava pra ele e ele me sorria de volta, eu pensava “um dia...”. E acho que ele também. Nos fazíamos companhia naquela cidade estrangeira, não estávamos indo a lugar nenhum durante os próximos meses, então, por que apressar as coisas? Se fosse pra acontecer, aconteceria.
“E Rafael?” vocês dizem indignados
Rafael ficou no Brasil com Carolina. Não que eu o amasse menos ou tivesse desistido da ideia de reconquistá-lo, mas ele não cabia ali. Eu precisava viver um pouco, descobrir outros amantes e outros mundos antes de me entregar a Rafael. E eu nunca prometi fidelidade a ele, muito menos o fiz prometer.
E foi assim, numa tarde calma, fria e nublada de domingo que, ainda dançando lentamente, Ricardo encostou seus lábios nos meus. Não teve pressa, não teve medo, não teve pensamentos no futuro. Tudo o que eu sentia era o som do violino e língua dele encontrando muito de leve com a minha, num beijo extremamente romântico.
Paris me fez descobrir um novo Bernardo, um que eu sempre quis descobrir. Mas eu só consegui isso no momento que abri meu coração para aquela cidade. E era isso que eu devia fazer, deixar meu coração aberto para tudo que a vida pudesse me oferecer. Se Paris tinha me trazido um novo Bernardo, por que não poderia me trazer um novo amor?