Eu vinha planejando aquela conversa há meses na minha cabeça, mas no final nada saiu como o esperado. Deveria ser só eu e minha mãe, talvez o meu pai também se ele quisesse me apoiar. Deveria estar só a gente em casa, sem meus irmãos por perto. Eu deveria prepará-la antes. Eu deveria escolher um momento que ela estivesse calma e de bem com a vida. Eu deveria ensaiar o fatídico discurso um milhão de vezes na minha cabeça, tendo uma saída para cada possível reação que ela viesse a ter. Mas eu não fiz nada disso, não deu tempo. No momento mais inesperado e inadequado possível, eu disse. Eu soltei meu grande segredo. A pessoa que de quem eu mais temia a reação agora sabia que eu era gay. E o seu olhar me amedrontava.
Ninguém ousou dizer nada nos segundos seguintes à revelação. Mesmo sem olhá-los, eu sentia Caio e Tiago prendendo a respiração. Laura parou de chorar no mesmo instante. Meu pai mudava os olhos de mim para a minha mãe e vice-versa. E resistindo a todos as minhas reações possíveis, eu não abaixei a cabeça ou desviei os olhos. Eu sentia medo, angústia, ansiedade, um milhão de coisas, mas eu permaneci a encarando. Eu não a olhava como se a enfrentasse, não havia confronto no meu olhar. O que meu olhar dizia era “estou lúcido e muito ciente do que acabei de dizer aqui”. Em contrapartida, o que eu via no olhar da minha mãe era raiva represada. Presa e pronta para explodir. Ali, eu tive certeza que todos os meus temores não foram em vão: aquela não seria uma conversa fácil.
Eu não posso negar que eu esperava exatamente a reação que ela teve: ignorar. Minha mãe desviou o olhar, pegou o prato dela e de Laura, de quem ela estava perto, e levou para a cozinha, nos dando as costas. Eu fechei os olhos e suspirei fundo me preparando mentalmente para a batalha que viria a seguir.
_Bernardo..._ sussurrou Tiago ao meu lado e colocou a mão sobre o meu braço, como se me pedisse para parar.
Mas eu não podia parar. Era um caminho sem volta. Se ela ia aceitar ou não, ainda era um mistério para mim. Só havia uma certeza: naquela noite ela saberia de toda a verdade. Minha mãe voltou à sala e, sem olhar ninguém nos olhos, pegou mais dois pratos e levou para cozinha. Ela ia mesmo fingir que eu não disse nada de mais? Era fácil assim para ela ignorar o assunto? Eu não ia deixar! Eu não era mais aquele garoto assustado que deixa as coisas mal resolvidas. Ela logo voltou da cozinha para pegar os dois últimos pratos.
_Eu sou gay._ falei novamente.
Eu vi seu lábio tremer quando ouviu, mas não me olhou ou respondeu. Deu as costas e voltou pra cozinha com os pratos. E aquilo me deu uma repentina raiva. Tanto trabalho pra chegar ali e agora ela ia me ignorar? Ele ia fingir que eu nunca disse nada? Tanto tempo criando coragem para aquele momento e o que eu recebo é aquilo, indiferença?
_Eu sou gay! Eu sou gay! Eu sou gay! Eu sou gay! Eu sou gay! Eu sou gay! Eu sou gay! EU SOU GAY!_ falei subindo tom de voz até se transformar num grito.
Era o meu grito da liberdade! A última barreira estava no chão, mas eu não me sentia tão livre quanto achei que deveria sentir. Eu continuaria gritando se não fosse o som de um prato quebrando. Mas o som não era de um prato que caiu da mão de alguém. O som era de um prato que foi arremessado com força contra o chão.
_Bernardo!_ ralhou meu pai, mas não me importei.
Da cozinha veio a minha mãe. Me deu medo, eu nunca a tinha visto daquele jeito. Ela estava muito vermelha, seus olhos cheios de lágrimas e ela tremia. Ela olhava fixamente para mim do outro lado da sala.
_Vocês três,_ falou meu pai para meus irmãos _para o quarto.
_Não, pai. Eu vou ficar com o Bernardo._ falou Tiago.
_Não foi um pedido. Vão!
Tiago me olhou penalizado, mas não se atreveu a contrariar nosso pai. Nem eu queria que ele o fizesse. Assim que ele se levantou, Caio e Laura o seguiram e cada um deles foi pro seu quarto.
_Teresa, sente-se, por favor._ pediu meu pai.
Mas ela não sentou. Permaneceu na mesma posição me encarando. Eu novamente não abaixei a cabeça e a encarei de volta. E então, eu voltei a repetir:
_Eu sou gay, mãe.
_Para com isso!_ ela gritou em resposta.
Sua voz era a mistura de um grito muito fino e estridente, mas baixo, como se ela temesse que as pessoas nos ouvisse.
_Eu não quero ouvir esse tipo de coisa dentro da minha casa mais! Você não foi criado assim.
Eu me segurava para não chorar, mas estava difícil.
_Pelo amor de Deus, mãe. Você é médica, você sabe que não uma coisa não tem nada a ver com a outra.
_Eu não quero saber! Vá para o seu quarto agora e eu vou esquecer que isso aconteceu.
_Não!_ respondi.
Ela me olhou com estranheza. Eu nunca a tinha respondido. Aliás, eu era o filho que menos entrava em conflito com ela.
_Como assim “não”?_ sibilou com raiva como se eu fosse uma criança pirracenta.
_Eu não vou para o meu quarto. Você vai me ouvir até o fim. Você pode até não aceitar, mas hoje você vai saber de tudo.
Ela deu uma risada sem graça. Então, ficou bem claro para mim aquela noite: ela sempre soube.
_Você sempre soube, não é?_ perguntei com os olhos cheios de lágrimas.
Ela não respondeu, ficou apenas me encarando da mesma posição que estava. Mas era uma admissão, afinal, quem cala consente. E, com mais força do que nunca, me veio a revolta. Ela sempre soube? Quanto mal ela poderia ter evitado se tivesse me colocado para ter uma conversa franca? Eu poderia ter evitado passar por toda uma trajetória de erros e quedas.
_Se você sempre soube, por que nunca me disse?_ perguntei já chorando.
Ela não me respondeu. Ela fechou os olhos e abaixou a cabeça. Mas ela não parecia estar arrependida ou triste com aquela conversa. Ela parecia apenas reunir forças para ter aquela conversa.
_Você tem noção de quanta coisa poderia ter evitado?_ perguntei e me virei pro meu pai _E você também? Você também sabia ou pelo menos desconfiava. Por que nunca me disseram nada?
Meu pai coçou a cabeça.
_Porque é complicado, Bernardo. Eu já te falei que estou bem com essa questão, mas eu estou bem com essa questão hoje. Não é fácil ver que seu filho de oito, nove anos é diferente dos outros.
_Você já sabia?_ perguntou minha mãe para o meu pai em tom de acusação.
_Do mesmo jeito que você também sabia, eu suponho._ ele respondeu.
_Não foi isso que eu perguntei._ ela disse se aproximando dele _Vocês já tiveram essa conversa antes?
Meu pai suspirou fundo. Suspirei aliviado de ao menos por alguns segundos o foco da raiva dela não ser eu, ainda que a briga que estava prestes a acontecer me tivesse como motivo principal.
_Sim, Teresa._ ele respondeu.
_Desde quando você sabia?
_Desde antes da viagem dele.
Ela levou as mãos da cabeça e olhou para o teto, como se custasse a acreditar no que acabara de ouvir.
_Você não pode omitir uma coisa dessas de mim!_ ela falou exasperada _Eu sou sua esposa! Eu sou a mãe dele!
_Eu não contei justamente por causa desse tipo de reação.
_A culpa é minha então?
_Sim._ respondi antes do meu pai.
Ela voltou sua atenção a mim novamente.
_Justamente por ser assim, você foi escolhida para ser a última a saber.
Eu não estava no meu melhor momento e pensando com clareza. Caso contrário, eu escolheria palavras melhores. Eu só jogava lenha na fogueira.
_Última a saber? Quem mais sabia disso?
_Laura, Caio, Tiago, Alice, Pedro, Rafael... Paris inteira...
_Você não tem vergonha?!_ ela gritou comigo.
_Nem um pouco.
Eu não pretendia irritá-la ainda mais. O que aconteceu foi que juntamente a um novo modo de pensar sobre mim mesmo e a vida, houve uma troca do meu mecanismo de autodefesa. Se antes a minha tática favorita era me esconder ou passar despercebido, agora era contra-atacar. Ferir meu opositor na mesma medida que eu era ferido.
Como ousa me desrespeitar?
_Você está me desrespeitando._ respondi firme _Você me olha como se eu tivesse acabado de revelar que matei alguém, que estuprei alguém, sei lá. Como se eu fosse uma escória.
_Eu não te criei para ter um desvio de caráter!
_Então criou bem, porque eu não tenho um!_ respondi no mesmo tom.
_Abaixe a voz. Ela é sua mãe._ advertiu meu pai com uma voz severa.
Não estava satisfeito com aquela situação, afinal, ela deveria me respeitar também. Mas obedeci e abaixei o tom de voz.
_Eu não tenho um desvio de caráter._ continuei _Eu sou gay, só isso. E demorou vinte anos para eu ficar em paz com isso, então não venha com esse tipo de argumento. Eu me fechei para esse tipo de pensamento.
_Você está sujando o nome dessa família!_ ela gritou.
_Não, não estou._ falei tentando manter a calma _Essa família não tem do que se envergonhar de mim. Eu não tenho do que me envergonhar. Se você se envergonha, talvez o problema seja você e não eu.
E antes que eu pudesse reagir de alguma forma, eu a vi vindo em minha direção muito rápido. Só ao sentir minha cabeça se virando bruscamente e o ardor na minha bochecha, me dei conta do tapa na cara que levei. Assustado, olhei para ela. Eu esperava encontrar alguma chama de arrependimento no seu olhar, mas tudo o que vi foi raiva. Ela estava pronta para continuar a me bater. Mas eu não era mais aquele garoto. Ninguém mais ia me bater, nem mesmo a minha mãe.
_Teresa! Você enlouqueceu?_ falou meu pai exasperado correndo para perto de nós dois.
Com o barulho do tapa, meus irmãos saíram dos seus quartos e nos olhavam atentos. Qual seria o próximo movimento?
_Não encosta mais em mim._ falei me afastando ao máximo dela.
Eu comecei a chorar, mas foram lágrimas silenciosas. Lágrimas do mais profundo ressentimento. Ressentimento de ser alvo da incompreensão daquela criatura que deveria ser a que mais me amava no mundo. Somente ao sentir o tom das minhas palavras, vi alguma espécie de dor nos olhos da minha mãe, mas não me comovi.
_Eu cansei disso._ falei limpando minhas próprias lágrimas.
Naquele momento, eu tinha tanta dor e ressentimento preso dentro de mim, que foi impossível segurar ou medir minhas palavras. Eu precisava falar, ou se não iria morrer.
_Eu cansei de ser bonzinho._ continuei _Cansei de ser aquele que nunca diz “não”. Cansei de ser aquele que está sempre apto para ajudar a todos, mas a quem sempre é negada ajuda. Cansei de ser um fantasma, pelo qual todos passam sem notar a existência. Cansei de me esconder, de me frear, de me anular. Cansei de poupar os outros.
Toda a minha família me olhava assustada e atenta. Eles nunca tinha me visto falando daquele jeito.
_E eu fazia isso porque eu achava que o problema é comigo. Eu achava que todos iam me odiar e me renegar, então eu me esforçava ao máximo para ser bonzinho, porque quem sabe isso viria a aplacar um pouquinho do ódio. Eu vivia a minha vida em função de agradar os outros, de fazê-los gostarem de mim. Isso não é vida.
Olhei triste pro céu lá fora, refletindo brevemente sobre tudo que passei até ali.
E se eu morresse amanhã?_ falei me lembrando do dia que quase me matei _O que diriam de mim? “Filho perfeito. Irmão amoroso. Grande companheiro. Ótimo estudante”. Isso é tão triste, tão frio e impessoal. Que marca que deixaria no mundo se morresse hoje? Que falta eu faria? Nenhuma, porque sempre teria alguém para ocupar o meu lugar, sempre teria alguém disposto a viver em função de agradar os outros. Somos muitos...
_Para de falar bobagens, Bernardo._ pediu Tiago, mas não lhe dei atenção.
_Então, eu fui a Paris e me apaixonei. Pela cidade e por um cara. E foi tudo tão surreal!_ ri visitando as lembranças que Ricardo deixara em mim _Eu voltei há poucos dias, mas ainda parece que foi tudo um sonho muito louco. Nós correndo apaixonados por Paris. Trocando beijos, de mãos dadas, dançando na rua...
Só então eu voltei a encarar a minha mãe, que me olhava atordoada.
_E sabe do melhor? Ninguém se importava! Vocês têm ideia do quanto isso é libertador? Perceber que o problema não é você, mas o mundinho que te cerca? E voltei para o meu mundinho aqui, contra todas as recomendações do que seria o mais saudável a se fazer. E eu voltei com uma missão: eu vou construir o meu mundo de novo. E desta vez, eu vou construí-lo do modo certo, doa a quem doer.
Todos eles me olhavam atentos, mas assustados. Eu nunca tinha dito aquelas coisa para nenhum deles. Eu nunca tinha lhes fornecido o meu lado da história. Eu nunca lhes mostrei a minha dor.
_Isso é um pouco egoísta? Talvez, mas eu já cumpri minha cota de altruísmo para uma vida inteira. É hora de pensar em mim. Eu quero deixar uma marca na vida, uma marca nas pessoas que me cercam. Eu voltei da França decidido a viver sem medo da morte, a me arriscar sem medo da dor, e a amar sem medo da represália._ olhei no fundo dos olhos da minha mãe quando disse isso _E não vai ser você que vai tirar isso de mim. Você não tem esse direito
Eu mesmo fiquei atordoado com minhas palavras. Eu não esperava por aquela avalanche emocional. Era pra tudo ser diferente. Eu precisava de ar. Abri a porta do apartamento e corri. Corri sem rumo pela noite. Nenhum deles me seguiu. Talvez por entender que eu precisava de um tempo sozinho, talvez por estarem atordoados demais para agir.
Aquela noite sem estrelas e sem vento, estranha, terminou comigo na cama de Pedro. Ele me olhava atento e caridoso enquanto Alice acariciava meus cabelos. Dormi vencido pelo cansaço sob os cuidados dos meus amigos.
Eu sabia desde o início que o momento que eu contasse para minha mãe que sou gay seria difícil. Eu nunca esperei lágrimas e abraços compreensíveis dela. Mas eu esperava uma conversa séria e franca, onde nós dois exporíamos nossos pontos de vistas e nossas opiniões, para assim chegar a um acordo. Tudo o que eu consegui naquela noite foi soltar a dor que eu guardava dentro de mim, embora eu ainda não saiba se foi uma coisa boa ou não. Não se enganem, a derradeira conversa com a minha mãe aconteceria um dia, só não seria naquela noite. Era apenas o início da mais longa e dura batalha que enfrentei na vida.